A BANDALHEIRA DA REGEDORIA

JAcQUEs TOU AQUI!  

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Conheci há muitos anos, na povoação de Cassai, do actual município de Muconda na Lunda-Sul, um jovem professor de posto. Muito novo naquela altura, eu também não lhe ficava atrás, em termos de idade. O Ernesto, assim se chamava, era de uma simpatia cativante. O facto de eu ser condutor às ordens do pelotão – comandado pelo alferes miliciano Flávio Delgado, um cabo-verdiano que é hoje um dos meus melhores amigos – e fazer semanalmente deslocações a Nova-Chaves (sede da Companhia VH ali estacionada e a que pertencíamos), e também por dar uns bons toques de bola, faziam de mim, não escondo a vaidade, um tipo popular na zona naquele período.

Tornei-me amigo do Ernesto e sempre que podia levava cartas suas para Nova-Chaves (actual Muconda) e, vice-versa, trazia para o Cassai as que os seus familiares e amigos lhe escreviam. De vez em quando, eu próprio recebia uns bilhetes do Ernesto, o que me fazia convencer que o Ernesto gostava mesmo de escrever.

A nossa convivência chegou ao ponto de fazermos, nas folgas que sempre tínhamos, uns passeios a pé, em horas bem definidas. Rondávamos, primeiro a casa do secretário do chefe do posto, um português que amigara com uma negra de olhos muito vivos, natural de Teixeira de Sousa. A moça mostrava estar farta da vida de quase cativeiro que fazia. Os sorrisos traiçoeiros da Catarina endereçados à tropa eram prova disso. Depois dessa cuidadosa ronda inicial, descíamos devagar, até chegarmos à jangada que fazia, incansável, de-cá para lá, de lá para cá, a travessia do majestoso e respeitável Rio Cassai. Ficávamos extasiados sempre que nos deparávamos com o panorama oferecido pela correnteza do Cassai e dos movimentos da jangada. 

Havia, contudo, uma outra intenção que nos levava ali. Apreciar de perto a beleza da mulher do jangadeiro, uma jovem tchokwé de presença espectacular. Chamava-se Itwevu, tinha dentes brancos a enfeitar-lhe o sorriso lindo e era alvo da cobiça de muita juventude. Sem nunca olhar seriamente para nós, fazia questão de estar sempre perto do felizardo marido, um kota de considerável idade. 

Volto aos bilhetes do Ernesto para dizer que até não me ficaria mal se os classificasse como cartas. Era coloquial nas entradas, tratava-me sempre com uma cortesia excepcional, sem limites. Eu era o amável, benévolo e estimado amigo. A quem perguntava invariavelmente, então como vai a bandalheira da regedoria com as moças? 

Eu, dizia ele ainda, a equivalência, confesso que nunca soube o que pretendia ao usar a palavra, é por ter ido a Vila Teixeira de Sousa, sem isso avistaria as meninas. Não ficava por aqui a sua satisfação de informar e rematava com uma peculiar manifestação de alegria, ai que vida santa, juntamente as misericórdias! 

Eu entendia perfeitamente o que o Ernesto me queria transmitir. Exteriorizava a sua felicidade por estar vivo, de ter amigos e poder falar livremente. Tentei traduzir. Bandalheira para ele era a movimentação da urbe, a exibição das miúdas, as oportunidades de namoro que lhe enchiam o peito jovem e carente de amor. Nunca lhe respondi por escrito, porque tinha mais facilidade em dar-lhe notícias pessoais da regedoria quando estávamos juntos. Deste modo, durante uma boa temporada, bandalheira era também vista por mim com aquele significado festeiro de encontro, reunião de amigos, nunca com o de velhacaria, canalhice e sacanagem que lhe pertencem de pleno direito, por obediência à língua que utilizamos.

Perdi o rasto do Ernesto quando regressei a Luanda. Uns meses antes disputamos um jogo de futebol em Teixeira de Sousa. Se bem me lembro, a nossa equipa era constituída por Mário Palege, Pavão, Pimentel, Gregório, Lacuerda, Carneiro, Bento Ruço, eu próprio, Clavícula, entre alguns outros. Mostramos a nossa habilidade vencendo o jogo. Sempre marquei golos nesses jogos. Era rato de área. Depois, na festa do clube local, com “porto de honra” e tudo, aconteceu a parte triste da jornada. O furriel Isaac da Conceição, um caluanda puro que não jogava mas dançava como poucos, foi avisado que não podia exibir aqueles passos do museke, umas passadas que não eram autorizadas ali. Tempos difíceis do colonialismo! 

Dois ou três dias antes do ataque da UNITA a Vila Teixeira de Sousa (actual Luau) no dia de Natal de 1966, passei novamente por essa vila. Através da famosa jangada do Rio Cassai, vi pela última vez o jangadeiro e a sua bela mulher e deixei aquelas paragens para, pouco tempo depois, já em Luanda, ser desmobilizado do exército português. Não cheguei a despedir-me do Ernesto.

Passaram-se os anos e volta e meia lembro-me ainda dele. Com saudade da época e da bandalheira da regedoria. Nunca deixei de sorrir ao lembrar aquele passado incrível. Como a vida me tornou diferente depois daquele tirocínio no Leste de Angola! Fui contando aos meus amigos estas e outras peripécias que a vida militar me proporcionou, nos momentos em que o anedotário se soltava de cada um de nós e era utilizado nos serões e farras destinadas a alimentar sonhos de felicidade. 

Entretanto, a vida fez-me conhecer em Luanda, um outro jovem amigo. Daqueles que não se esquecem e ficam para sempre. Chamava-se Gustavo Manuel da Costa. Sim, esse mesmo, o grande jornalista, o nosso Gustavo Costa, o querido e inesquecível companheiro. O marido da Paula e pai do Sílvio e do Tiago. 

Os que tiveram a felicidade de conhecer e lidar com o Gustavo podem atestar o que afirmo. Era daqueles que facilmente captava nomes e cenas e que, graças à sua fabulosa imaginação e um vocabulário incrível que nascia da sua espontaneidade e talento natural. Transformava elementos bizarros de certas peças em quadros duma criatividade insuperável. 

Foi depois de lhe contar as cenas do Cassai e do Ernesto e dele as ter fixado bem que estabelecemos um plano sem palavras, uma espécie de acordo tácito mas silencioso. Passamos então a apelidar, em momentos especiais mas cientes da verdade que havia no trato, a nossa querida terra e as absurdas e extravagantes cenas que por lá se registam, por Bandalheira da Regedoria. A ideia ficou só connosco e hoje, que eu saiba, apenas eu e outros dois amigos, utilizamos o termo.

O Gustavo disse-me algumas vezes, falando assim, seriamente. “Apesar de o hábito não fazer o monge, já me habituei a ser julgado por uns certos camaradas, pelas provocações da minha escrita. Fingem magistralmente que são amigos, mas atropelam-nos ao menor deslize. Não entendem que não me dedico exclusivamente a falar mal do meu país nem sequer dos seus dirigentes. O nosso país tem uma enormidade de coisas boas para se falarem. Falo delas com orgulho, só não falo bem das coisas menos boas e dos homens muito maus que também tem”.

Há momentos em que sinto muito a falta do Gustavo. Hoje é um desses dias. Vai fazer três anos que ele partiu e ainda não me habituei à sua ausência!

Com uma lágrima no canto do olho despeço-me de todos os amigos e leitores, com a amizade e o respeito habituais. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 23 de Março de 2025 

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