KO eleitoral e o Pacto de Nação

Conversa na Mulemba

Fernando Pacheco

A insistência do MPLA no controlo desmesurado e inaceitável da comunicação social pública pode trazer-lhe certas vantagens eleitorais, mas alimenta cada vez mais a ideia de que as eleições de Agosto próximo não serão justas. Tudo indica que o partido no poder não está capaz de medir os riscos de uma estratégia que até pode ser benéfica a curto prazo, mas tem tudo para dar errado mais adiante. Não apenas para si próprio, mas também para o País. 

Essa atitude, muito pior do que vimos antes de 2017, aliada ao uso e abuso dos bens públicos em seu proveito – o argumento de que os deputados da oposição também o fazem é simplesmente ridículo – só mostra que se está a ser pouco inteligente, ou que se tem medo do adversário – e todos sabemos como o medo é mau conselheiro.

Em períodos conturbados como este – um agente policial terá afirmado que vivemos uma “instabilidade eleitoral” para justificar o impedimento do trabalho normal de uma jornalista ao serviço do prestigiado Mosaiko – Instituto da Cidadania que emitiu um comunicado de protesto com o qual me solidarizo – o nível de reivindicação dos cidadãos relativamente à participação política tende a aumentar, mas não é desejável que o espaço entre a sociedade política e a sociedade civil seja reduzido. Esse foi um dos erros cometidos em 1991, quando, com a abertura do regime, pretendeu-se politizar demasiado a sociedade, sem a preocupação de se socializar a política. Isso teve efeitos no modo como se encarou a democracia e repetiu-se no pós-guerra e ainda hoje explica certos comportamentos por parte de algumas instituições que deveriam zelar pelo cumprimento da lei.

A sociedade política assim configurada acabou por se revelar inepta nos processos constitucional, de reconstrução e de reconciliação nacional e na diversificação da economia, nos quais se depositavam justificadas esperanças. No final das contas, na aposta de um modelo de desenvolvimento que representasse uma estrada com duas faixas de rodagem: a construção de um Estado de direito e de uma democracia participativa ou substancial, isto é, com forte envolvimento dos cidadãos e suporte na nossa realidade social e cultural. Tentemos perceber porquê.

Como escrevi num texto dos anos 90 sobre democracia e sociedade civil, um sistema político democrático como o que se impôs aos angolanos, sem reflexão e sem debate envolvendo os actores cívicos, baseado apenas em eleições multipartidárias e em mecanismos de representação que pouco dizem ao cidadão comum, não chegam, por si sós, para estabilizar um regime verdadeiramente pluralista e participativo. O Parlamento é um bom lugar para a coexistência de opiniões divergentes, onde se pode aprender a domesticar as paixões, os ódios e a intolerância, mas não é o único, principalmente nas sociedades pluralistas e diversificadas e sem cultura democrática como a angolana. Então será necessário fazer recurso a outros espaços democráticos, formais e informais, e a práticas educativas promotoras de hábitos e costumes de tolerância, de convivência pacífica entre os cidadãos e de respeito pelos direitos dos outros – e este devia ser um dos papéis da comunicação social pública. Mas também é preciso que as autoridades e os governos aprendam a respeitar os cidadãos e a servi-los, a negociar com eles em vez de dar-lhes ordens, pois o papel do Estado no desenvolvimento da cidadania é fundamental.

Por tais razões, e dados certos malefícios que a Lei Constitucional de 1991 e a Constituição de 2010, bem como as maiorias qualificadas desde 2008 – que podem ser considerados KO´s eleitorais como o agora pretendido para Agosto –, têm trazido como o indesejado “o vencedor leva tudo” (the winner takes all), mais do que desejar simples alternâncias do poder legislativo e executivo, a sociedade haverá que repensar de forma crítica o Estado e a democracia, no quadro da herança colonial e nas condições nacionais prevalecentes, respeitando princípios de equidade de direitos e oportunidades e construindo mecanismos de representação e de participação cívica, a par dos de competição política.       

Socorrendo-me, como o fiz no texto referido, de uma análise de Arend Lijphart, direi que pode haver, entre outros, dois entendimentos distintos de democracia: o modelo maioritário (liberal ou de Westminter), sugerido para sociedades consideradas relativamente homogéneas do ponto de vista cultural, religioso, étnico, nacional ou linguístico; e o consensual mais apropriado às sociedades pluralistas e diversificadas. Nestas, a regra da maioria pode implicar, por vezes, a ditadura da maioria e a confrontação civil, em vez da democracia. Então, é necessário fazer recurso ao consenso em vez da disputa, estimular a concertação e não o divisionismo, procurar, enfim, ampliar a legitimidade das maiorias governativas. Paul Ricoeur vai mais longe, preferindo o compromisso, que é um ideal da acção, em vez do consenso, que para ele é apenas um ideal do discurso. O modelo consensual (ou do compromisso) assenta assim em elementos limitadores da regra maioritária: a separação formal e informal de poderes, o bicamaralismo equilibrado, o favorecimento de sistemas multipartidários (e não bipolarizados), a representação proporcional, e a descentralização política e o desenvolvimento local, com processos a partir de “baixo”, sem que isso signifique a subalternização do debate, do direito à diferença, da inovação e da criatividade. É disso que tenho falado nas minhas incessantes propostas em favor de um pacto nacional. Não se pode, pois, reduzi-las a uma mera partilha do executivo, como se pretende fazer crer. 

Nestas circunstâncias, portanto, há que ter em conta a questão das minorias, pois, afinal, Angola é um conglomerado de minorias. Nos primórdios do nosso país independente, a noção de povo, porque conotada com a de classe social, significou a exclusão de grupos, camadas ou outras classes. Ora, uma minoria, em democracia, não pode ser privada dos seus direitos políticos, e tem sempre o direito de fazer lembrar ao resto da sociedade que também faz parte do povo e, logo, os seus interesses, opiniões e convicções devem ser levados em conta nos processos legislativos e executivos. Se os princípios, desejos e aspirações das minorias são sistematicamente ignorados ou desprezados nos processos de decisão colectivos, a democracia maioritária torna-se impraticável, há riscos de instabilidade e de perda de legitimidade por parte das maiorias, principalmente quando essas minorias têm elevado peso no contexto económico, social e cultural de um país, o que pode levar, em circunstâncias extremas, ao desejo de criação de novos Estados onde essas minorias possam tornar-se maiorias, e à confrontação e à guerra. 

A ambição de um KO eleitoral revela tentações totalitárias mais do que desejos democráticos. E ainda que já não seja para o período pré eleitoral, um pacto para um projecto nacional afigura-se pertinente, não apenas visando a estabilidade a curto prazo. É que em sociedades pluralistas e diversificadas não se pode ver simplesmente uma divisão entre maioria e minoria, mas também o tal conglomerado de minorias e, nessas circunstâncias, os consensos e compromissos surgem como atitudes mais prudentes e, afinal, mais democráticas.

*Publicação autorizada pelo autor

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