OS QUE PARTEM FAZEM NASCER O NOVO E SÃO APENAS OS PRIMEIROS A GRITAR QUE HÁ ALGO ERRADO

“O bom jovem fica mesmo aqui e faz as suas críticas para nós melhorarmos o trabalho. Aquele que vai não faz falta”.

Luísa Grilo, ministra da Educação

POR YOLENE VIEIRA*

Dizem que quando o vento sopra de um lado só, até as folhas mais fiéis se soltam do galho. Não por desamor, mas porque o corpo tem memória, e a alma tem sede. Falar da juventude que parte é tocar num rio que não corre só por cima da terra, mas por baixo da pele, das veias, da história de um povo que, mesmo de olhos fechados, continua a sonhar com janelas abertas.

Ouvi as palavras da Sra. Ministra. Como quem ouve um tambor antigo numa noite sem lua. Havia nelas um som que me pareceu familiar. Talvez o som da saudade travestida de certeza. Talvez o eco de uma terra que chama pelos seus, mas não percebe que já não fala a mesma língua do seu silêncio.

O bom jovem, disse: é o que fica. Mas e se o bom jovem for também aquele que parte sem nunca deixar? Aquele que leva o nome do seu bairro colado à carne, que recita o hino com lágrimas nos olhos enquanto limpa pratos noutro continente? Há raízes que caminham. E há árvores que, de tão fixas, morrem sem nunca ver outro céu.

Há uma história antiga que os mais velhos contavam nas margens do Kwanza. Falava de um pássaro chamado N’tambi, que, por não encontrar frutos em sua árvore, alçou voo para outras copas distantes. Diziam que partiu triste, mas voltou sábio. Trouxe nos olhos outras paisagens e no bico novas sementes. Ninguém ousou chamá-lo de traidor. Antes, foi visto como aquele que aprendeu a florir em várias terras, e por isso, soube depois ensinar a resistir à estiagem.

O jovem que parte não é sempre o que vira as costas. Às vezes, é o que estende os braços para mais longe. Às vezes, é o que escutou o sussurro do mundo e entendeu que a dor também se atravessa com os pés. Há vales que só se compreendem do alto. E há amores que só se revelam na distância.

Dizem que há quem se vá para se reencontrar. Que certos pássaros não deixam o ninho por ingratidão, mas porque sabem que, se ficarem, morrerão sem nunca ter cantado. E eu, aqui em Alverca, sei bem do que falo. Não saí porque odeio Angola. Saí porque a minha fome de dignidade começou a gritar mais alto do que o meu medo da saudade. Vim porque, ao contrário do que se pensa, o exílio não é ausência de amor, é, muitas vezes, o seu grito mais desesperado.

A ministra falou de quem dorme debaixo da ponte. E é verdade: há muitos que atravessam fronteiras com os bolsos vazios e os sonhos rasgados. Mas será que devemos medir o valor de alguém pelo colchão em que dorme ou pela bravura de continuar? Quantos dos nossos pais não dormiram sobre sacos de palha de milho, em tempos mais duros? E quem os chamou de menos angolanos por isso?

Não, quem parte não é sempre o fraco. Às vezes, é o mais corajoso. Aquele que, ao ver o chão a fugir debaixo dos pés, decide inventar outro solo. É como aquela fábula antiga que minha avó contava sobre o peixe que se lançou à terra. Diziam que era louco, mas ele só queria aprender a respirar de outro modo. E foi esse peixe que depois ensinou os outros a saltar.

O jovem que parte leva na mala mais do que roupas. Leva a língua da mãe, o cheiro da rua onde cresceu, os ditados que ouviu do tio, as dores que não foram tratadas. Ele não vira estrangeiro: ele vira espelho. Porque onde quer que vá, ainda vê Angola refletida no olhar. E se por acaso lava pratos, é porque o prato no seu país estava vazio demais.

Por que partimos? Por que deixamos o solo que nos viu nascer? Porque o corpo tem um instinto que a retórica não alcança. E esse instinto chama-se sobrevivência. Não é covardia. É urgência. É como o bezerro que se afasta da manada para procurar água. Ele não deixou de amar o grupo. Apenas amou mais a vida.

Segundo a ministra, os quadros verdadeiros são os que ficam. Mas o que é um quadro? Será que só é quadro quem preenche uma sala com papéis e reuniões? E os que, de fora, mandam livros, sustentam famílias, constroem escolas, curam feridas com remessas e conhecimento novo, esses não são quadros também? Ou são apenas sombras do que poderiam ter sido?

Permita-me recordar uma cena do Evangelho, quando José e Maria fugiram com o Menino para o Egipto. Fuga. Migração. Necessidade. E no entanto, ninguém ousou dizer que não amavam Nazaré. Eles fugiram porque sabiam que, para viver, era preciso sair. Às vezes, a terra natal é Herodes, e o estrangeiro, um abrigo temporário.

A história de Angola também foi feita de partidas. Em 75, como disse. Em 80. Em 90. Mas o retorno, nunca acontece se o país continua a ser o mesmo que expulsou. As voltas só se dão quando há promessas de pouso. Os filhos que regressam são como pombas com folhas de oliveira. Mas só voltam se encontram janelas abertas e não muros de julgamento.

E se quem parte não faz falta… então para quem estamos a construir o país? Só para os que resistem entre a lama e o lixo? Só para os que calam e suportam? Não. Um país é casa de todos, mesmo dos que vivem nos seus corredores mais distantes. E se um filho deixa a casa para procurar cura, isso não o torna menos filho. Torna-o sobrevivente.

Eu, que vos falo de Alverca, também chorei por deixar a minha terra. Cada passo na calçada estrangeira foi como andar sobre brasas. Mas continuo a levar Angola comigo. Na fala, no riso, na forma de amar, no modo de contar histórias. O exílio não me apagou, ampliou-me.

Há uma lenda no deserto do Namibe que fala de uma pedra que chorava porque ninguém a entendia. Um dia, veio um viajante de longe que, ao vê-la, reconheceu nela um formato sagrado. E assim, o que era apenas pedra virou altar. Às vezes, é preciso sair para que nos vejam por inteiro.

A dor de quem parte não se vê nas estatísticas. Está nas mensagens que chegam de madrugada, nos sorrisos forçados nas video chamadas, no vazio que se esconde entre uma transferência e outra. Amar de longe é um verbo que não se conjuga com leveza.

E ainda assim, partimos. Não por sermos fracos. Mas porque, ao contrário do que muitos pensam, temos fé. Fé de que é possível reencontrar dignidade, mesmo que isso custe a pele, o nome, a solidão. E fé, senhora ministra, é também patriotismo. É amar a terra a ponto de se sacrificar por ela.

Não estamos a dormir debaixo da ponte por orgulho. Estamos a suportar a ponte sobre os ombros para que, um dia, os que estão aí não precisem sair. Estamos a varrer ruas, cuidar de idosos, limpar hospitais, porque aprendemos a dignidade do trabalho. Mesmo o mais humilde.

E esse saber, quando voltar, será ouro. Mas para voltar, precisamos sentir que a pátria ainda nos deseja. Que não somos filhos renegados. Que não nos chamam desertores, mas semeadores de um outro tipo de esperança.

Quando eu for ao Lubango de novo, não quero que me vejam como turista. Quero que me vejam como filha. Mesmo que tenha ido longe, o meu cordão umbilical ainda está preso à terra vermelha, ainda cheira à massaroca da minha avó, ainda escuta os cânticos de domingo.

Há na história da humanidade uma constante: os que partem fazem nascer o novo. Moisés saiu do Egipto. Abraão partiu da sua terra. Jesus saiu da Galileia. Nenhum desses se ausentou por fraqueza. Saíram porque era necessário. 

A senhora ministra é filha de uma terra que tem visto alguns filhos partirem. E sei que dói. Mas a dor não pode ser transformada em desprezo. Ela deve ser convertida em entendimento. Porque os que vão não são menos. São apenas os primeiros a gritar que há algo errado.

E às vezes, é o grito do ausente que acorda o presente. Porque é na ausência que se mede o valor. E nós, os que estamos longe, somos vozes que não querem ser esquecidas. Não estamos a fugir da luta. Estamos a lutar noutro campo.

Angola não é apenas um lugar. É uma ferida que pulsa no peito de cada um que saiu. É um sonho que se repete nos olhos de cada migrante. Não somos números. Somos memórias que caminham. E merecemos mais do que um “não fazem falta”.

Porque fazer falta é a medida do amor. E se não fazemos falta, então onde está a pátria? A pátria que acolhe. A pátria que chora quando um filho se vai. A pátria que espera como a mãe do filho pródigo, não com julgamento, mas com braços abertos.

Ninguém quer comer uma refeição por dia. Ninguém quer viver ao relento. Mas há quem prefira esse sofrimento ao de continuar num país que não lhe ouve. Que lhe fecha as portas. Que o chama de mau filho.

E, no entanto, mesmo aqui, continuamos a erguer a bandeira. Continuamos a falar do país com orgulho. Continuamos a ensinar aos filhos que “Angola é nossa”. Porque não deixamos de ser angolanos. Só deixámos de ser ouvidos.

E eu, que escrevo agora, não tenho ódio. Tenho lamento. Tenho espanto. Tenho a vontade de acreditar que ainda podemos mudar o tom. Que ainda podemos aprender a abraçar os que partem, como quem beija alguém que vai à guerra.

Estamos em guerra. Não com armas. Mas com o tempo, com o desemprego, com a desesperança. E cada jovem que parte é um soldado cansado, mas não vencido. Eles ainda acreditam. Acreditam que um dia Angola será mais do que terra, será casa.

Não há traição em partir. Há coragem. Há fé. Há o desejo de um regresso com história para contar. E se Angola quiser crescer, tem de acolher esses relatos. Tem de olhar para quem foi não como traidor, mas como testemunha.

Há pássaros que só cantam noutra altitude. E mesmo assim, voltam sempre ao ninho. Não para abandonar o novo céu. Mas para lembrar que ali, naquele lugar sagrado, nasceu o seu primeiro voo.

Escutemos com o coração o silêncio dos que partiram. Porque mesmo em silêncio, eles continuam a dizer: “eu amo o meu país”. Mas amor também é gesto. Amor é acolhimento. Amor é não dizer que não fazemos falta.

No entanto, se eu um dia voltar, e hei de voltar, não quero que me digam: “Finalmente voltaste, agora sim és dos bons”. Quero que me digam: “Nunca te foste, estiveste sempre aqui. Porque quem ama de verdade nunca abandona. Apenas busca, resiste, renasce.” Porque a pátria, meus senhores e minhas senhoras, é esse lugar onde todos os filhos, mesmo os ausentes, ainda têm nome.

*No Facebooc

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