Desde os tempos de estudante do Curso Superior de Agronomia da Universidade de Luanda, na primeira metade dos anos 70, Paulo Freire deixou de ser apenas um nome, para mim. Passou a ser alguém de quem eu precisava conhecer mais e mais as ideias, porque a cada nova leitura, ou troca de ideias a propósito dos seus métodos, crescia em mim a admiração por esse professor, tão “amoroso” quanto revolucionário.
Entre outras, muitas, dívidas que eu tenho para com Paulo Freire, uma delas é a inspiração para mergulhar no contexto e dele “ir submergindo” carregada de sentidos e motivações para a acção. Contrariamente ao que muitos autores sugerem, e praticam, eu argumento – e procuro praticar – que, em vez de oferecer insights sobre a condição humana, os cientistas sociais devem abordar a contingência e a complexidade das sociedades modernas, começando por aquela que melhor conhecem, e dos seus modos de vida. Essa seria a grande contribuição para estimular abordagens interdisciplinares, porque os desafios de hoje não podem mais ser entendidos ou enfrentados de forma isolada. A inovação e o diálogo interdisciplinar criam sinergias a partir das interfaces entre distintas áreas do conhecimento engajadas num propósito comum.
Mais recentemente, tenho mobilizado o legado de Paulo Freire para a construção do conceito de Humanidades Públicas, o qual, partindo do reconhecimento e da valorização de saberes produzidos fora dos ‘muros’ da academia, se aplica a projectos e iniciativas que tornem o conhecimento da academia mais acessível ao público em geral, promovendo o debate público e colectivo sobre questões de bem-comum, como direitos, democracia, ambiente, desenvolvimento, solidariedade, confiança, sustentabilidade, etc. Por essa razão, um projecto em Humanidades Públicas implica produzir conhecimento.com com pessoas, colectivos, organizações, movimentos, instituições. É nesta óptica que o conhecimento se torna produto de um processo de co-autoria.
Muito sumariamente, o que aprendi com Paulo Freire?
O que aprendi com as Pedagogias de Paulo Freire e que procurei aplicar:
➢ pensar a realidade como processo, em constante definição e não como algo estático;
➢ a consciência humana como uma construção;
➢ o sujeito como fruto da criação cultural, nunca individual;
➢ o ser humano como histórico e inacabado, sempre pronto a aprender;
➢ a centralidade do diálogo para fazer funcionar o papel libertador da educação;
➢ a concepção metodológica que institui uma nova relação entre educador e educando;
➢ a concepção “revolucionária” da educação como consciencializadora e libertadora, ao contrário da “educação mecanicista”, mnemónica, e contábil, que cria um exército de pessoas não pensantes;
➢ a oralidade / a palavra como instrumento de transformação do Homem e da Sociedade, o processo de educação como indissociável da conscientização política, ou seja, o processo de ensino-aprendizagem envolve, e implica, a transformação de homens e mulheres em sujeitos de transformação social; as pessoas devem saber ler não apenas letras, mas ler o mundo, a partir de uma perspectiva crítica e autónoma/emancipatória;
➢ a ideia da Escola Viva, enquanto espaço democrático, dialógico e criativo;
➢ a necessidade de coerência e consistência entre teoria e prática, entre o discurso e a acção, entre a vida pessoal e a vida pública;
➢ o respeito pelos saberes empíricos, os saberes de mundo, vivências e experiências, dialogando com o senso comum e considerando diversas capacidades e maneiras de criar, criticar e crescer;
➢ a necessidade de conhecer o mundo para transformá-lo: reflexão, crítica e reconhecimento.
Quase 5 décadas depois, continuo a aprender com Paulo Freire
Nas experiências a partilhar amanhã, ficará ainda mais evidente uma das ideias centrais em Paulo Freire: os processos educativos permitem, simultaneamente, tornar possível às pessoas, e aos grupos em que participam, afirmarem-se a partir das suas experiências de vida e do lugar onde constroem as suas visões de mundo, mas também a sua inserção na sociedade como agentes de transformação. Segundo Freire (1980, p.25)(2), “a educação para a libertação é um acto de conhecimento e um método de acção transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a realidade”.
Para ser eficaz a formação deverá visar o aumento dos conhecimentos, o desenvolvimento das competências e a melhoria das atitudes, tanto na perspectiva metodológica quanto nos arranjos práticos e nas decisões relacionadas com a sua preparação. Metodologicamente, as abordagens interactivas, flexíveis, pertinentes e variadas, privilegiam as vivências, os conhecimentos, as experiências de quem quer que esteja no papel de “formando”, mas também de quem desempenha o papel de “formador”. Por isso, qualquer formação, em qualquer área, deve ser implementada por formadores cuidadosamente preparados, e atender ao princípio da especificidade do público destinatário, adequando a formação à avaliação prévia das necessidades específicas do grupo, para responder com pertinência, pragmatismo e flexibilidade.
Nas formações sobre Direitos Humanos em que frequentemente participo, tenho sempre presente que Paulo Freire (1991)(3) alertava que a Educação em Direitos Humanos requer uma práxis crítica e reflexiva, antecipando como as principais consequências esperadas:
✓ o desenvolvimento de uma identidade colectiva onde o sentimento de pertencimento ao grupo permite uma convivência democrática e crítica, onde todos se respeitam;
✓ a melhoria na autoestima dos indivíduos e maior confiança nos relacionamentos e na tomada de decisões;
✓ o reforço de habilidades na resolução de conflitos; e
✓ o aumento da capacidade de argumentação, com base no pensamento lógico fundamentado nos conhecimentos adquiridos durante os processos educativos.
Uma das ideias que continua a inspirar-me é a urgência de uma nova escola, enquanto esfera pública democrática. É que, como afirmava Paulo Freire, a prática educativa nunca é neutra, mas sempre política. Por este aprendizado, obrigada Mestre!
(1) Ideias extraídas do texto original, homónimo, publicado em Com a Palavra, o Professor: Vitória da Conquista (BA), v.8, n.22, setembro-dezembro/ 2023.
NOTA: Embora resumindo ao essencial o que gostaria de partilhar da minha aprendizagem com, e da minha gratidão para com Paulo Freire, tive de dividir o texto em duas partes, a segunda será partilhada amanhã, 20 de Setembro;
(2) Freire, P. 1980, p.25.
(3) Freire, P. 1991, p.28.
19 Setembro 2024