31 DE JULHO, DIA DA MULHER AFRICANA

Sem o fim da exploração da mulher pelo homem, não estaremos a honrar aqueles que foram os princípios e os valores em torno dos quais se organizaram as lutas de libertação, e em nome dos quais se mobilizaram vontades e capacidades para a luta, e que hoje poderemos considerar como os seus principais legados: os valores da liberdade, da humanização e da universalidade.

POR CESALTINA ABREU

O Dia da Mulher Africana foi instituído em 1962 no âmbito da Conferência das Mulheres Africanas, realizada em Dar-Es-Salaam, capital da Tanzânia. A sua instituição foi então subscrita por 14 países e 8 Movimentos de Libertação Nacional, representados na referida Conferência, durante a qual foi ainda criada a Organização Pan-africana das Mulheres.

O objectivo central desta organização foi genérica e sumariamente identificado como ‘a reflexão sobre o papel das Mulheres nas sociedades africanas’. Importa lembrar que, em 1962, África ainda se confrontava com os processos de descolonização total do continente. Na verdade, ainda não foi finalizado, considerando a ocupação, pelo reino de Marrocos, da proclamada República Árabe Saharaoui Democrática (14 Novembro de 1975).

Retomando a questão das lutas de libertação… Quando em 1962 governos e lideranças de movimentos de libertação apoiaram a institucionalização do Dia da Mulher Africana e a criação da Organização Pan Africana das Mulheres fizeram-no, também, devido ao reconhecimento do papel das Mulheres, não apenas naquela que é a dimensão tradicionalmente considerada como o ethos de meninas e mulheres: as tarefas domésticas e a sustentação das famílias por via de actividades realizadas, a maioria delas, fora das casas – nas lavras / arimbos, ‘cartando’ água e lenha (inclusive para o banho dos homens), cuidar das crianças e dos mais velhos, realizar uma infinidade de tarefas de apoio à produção mercantil das actividades “dos homens” – em especial, agrícolas e piscatórias –, todas elas não remuneradas. O que significa, “desconsideradas” por uma leitura simplista que avalia os proventos da família apenas na base “do que entra”, esquecendo “o que não sai” pelo trabalho feito pelas mulheres.

Embora este quadro continue a retratar os quotidianos de milhões de mulheres e meninas em África, a institucionalização dessa data representou o reconhecimento das contribuições de muitas mulheres no combate incessante contra as formas de dominação mais humilhantes que a humanidade conheceu, e nas quais o continente esteve envolvido; refiro-me à escravatura, ao colonialismo e ao apartheid. Essa data, 1962, e essa institucionalização, certamente pagaram tributo a inúmeras mulheres que em diferentes regiões do continente contribuíram para a escrita de uma História da África não só pelos africanos, mas também, pelas africanas.

Sim, pelas africanas. Porque ainda hoje, são frequentes reflexões como (cito): “(…) qual a situação dos povos africanos, conquistadas as independências formais, face à dominação imperialista? Que lutas se travam hoje (decorria o ano de 2004)? Estão ainda longe os sonhos do congolês Patrice Lumumba, do ganês Kwame Nkrumah, do guineense-cabo-verdiano Amílcar Cabral, do angolano Agostinho Neto, do moçambicano Samora Machel, do sul-africano Nelson Mandela, heróis da Humanidade, estão ainda longe os sonhos de uma África independente, unida, desenvolvida, próspera, sem exploração do homem pelo homem? (…)1”.

Vou repetir a última parte para identificar um problema tão profunda e culturalmente enraizado, reproduzido ad eternum(inclusive pelas próprias mulheres-mães-não-só-de- filhos-mas-de-filhas): (…) estão ainda longe os sonhos de uma África independente, unida, desenvolvida, próspera, sem exploração do homem pelo homem? (…). Temos de acabar com a exploração do homem pelo homem, sim, mas com letra maiúscula, referindo-nos à espécie Homo sapiens. Precisamos incluir nessa luta o fim da exploração da mulher pelo homem, caso contrário, não estaremos a honrar aqueles que foram os princípios e os valores em torno dos quais se organizaram as lutas de libertação, e em nome dos quais se mobilizaram vontades e capacidades para a luta, e que hoje poderemos considerar como os seus principais legados: os valores da liberdade, da humanização e da universalidade.

Acredito que esses valores e princípios, que terão inspirado à consagração do 31 de Julho como Dia da Mulher Africana, e à criação da OPM, Organização Pan-Africana das Mulheres, bem como as histórias de luta e as contribuições de mulheres para a libertação do continente, primeiro do domínio colonial, e depois de todas as formas de opressão, precisam ser novamente mobilizados para enfrentar a opressão que acontece no âmbito das relações de dominação propiciadas pelo patriarcado ainda dominante nas nossas sociedades.

Os/as mais atentos/as facilmente identificarão aqui uma contradição: como falar em liberdade, humanização e universalidade enquanto valores que nortearam as lutas de libertação no/do continente – armadas ou por via de negociação -, e os alicerces fundacionais na construção de Nações emancipadas, se as nossas sociedades continuam a reproduzir-se em torno das mais variadas formas de dominação:

➢ dos muito poucos, mas muito poderosos, grupos de milionários sobre a maioria desprovida das mais básicas condições e oportunidades para uma vida digna;

➢ de entre essa maioria desprovida, excluída e ignorada, as mulheres são as mais pobres, as com menos visibilidade e sem voz;

➢ de minorias urbanas (melhor, urbanizadas) sobre a maioria rural, lembrando que à data das independências, a proporção de urbanos para rurais era de 25% para 75%, ou seja, a maioria absoluta. Essas maiorias, hoje excluídas, contribuíram decisivamente nos processos de luta armada não só com os seus filhos, mas também com logística, acolhimento, tratamento de feridos, transmissão de informação, não raras vezes pagando com a vida por essas prestações às causas nacionalistas. Quando das independências, as coalizões às quais pertenciam, e conduziram as lutas, foram substituídas por outras, urbanas, assentes não mais na produção e transformação a partir dos sectores primários, mas na exploração de recursos minerais não renováveis (em especial petróleo, diamantes, minérios e rochas ornamentais), o que conduziu o continente a uma condição de dependência, exportador de matérias-primas e importador de quase tudo, incluindo o básico?

➢ O imperativo dos interesses ligados ao extrativismo provocou a desestruturação da economia formal, a perda da diversificação em construção quando das independências, o consequente aumento do desemprego, e o crescendo do sector informal na maioria das nossas sociedades. Neste ambiente, destaca-se a prevalência de chefias dos agregados familiares femininos (cerca de 75%) dependentes do sector informal.

Em que momento se perdeu a ideia da Universalidade que orientou a luta? Porque essa ideia de universalidade criava as bases, juntamente com os princípios de liberdade e de humanização, para corrigir distorções produzidas pela dominação colonial, pelo esclavagismo e pelo apartheid, criando as condições e as oportunidades para sociedades inclusivas, igualitárias e socialmente justas.

Em que momento os libertadores se transformaram, eles próprios, em opressores e ‘donos’ das sociedades pelas quais diziam lutar? Em que momento se esqueceram os Manifestos e outras proclamações dos movimentos de libertação?

Precisamos reapropriar-nos desses legados e fazer deles as nossas inspirações para reorientarmos as energias e capacidades das nossas sociedades, e em particular da maior parcela delas, as mulheres.

Isso pressupõe, contudo, considerar as implicações do ‘género’ na formulação de políticas e programas, sendo necessário compreender a estrutura das relações mulher/homem, dos caminhos estruturalmente distintos através dos quais participam nas actividades políticas, económicas e sociais, e dos efeitos, igualmente diferenciados, dessas políticas e programas na vida real das famílias e das mulheres.

As distintas instâncias da socialização entre homens e mulheres em que estas dimensões se reflectem – família, escola, local de trabalho, estruturas comunitárias e associativas, entre outras -, constituem os desafios para as nossas sociedades, sendo de destacar os seguintes:

– Como enfrentar as estruturas patriarcais predominantes na família em África?

– Como desconstruir as desigualdades de oportunidades das meninas em todos os domínios, incluindo no lazer?

– Como acabar com todas as formas de opressão e de violência nos agregados?

– Como reverter a situação dominante dos papéis de usuárias para as mulheres e de gestores para os homens?

Carlos Lopes Pereira, 2004. “Socialismo ou neocolonialismo – As lutas de emancipação dos povos africanos e a actualidade do legado de Amílcar Cabral”. Comunicação em “Civilização ou barbárie – Os desafios do Mundo contemporâneo”, Encontro Internacional em Serpa e Moura, 23 a 25 de Setembro de 2004

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR