ANGOLA E O ALTO RISCO DE CONFLITOS E DE INSTABILIDADE: A PAZ QUE NOS FALTA!

Podemos falar de angolanidade e pacificação social onde quem pensa contrário a lógica dominante é tido como inimigo da paz/arruaceiro e logo é perseguido e intimidado?

CESALTINA ABREU

O Instituto para a Economia e a Paz (IEP), think tank australiano com boa reputação internacional, incluiu Angola entre os 27 países em que identifica “risco alto de conflitos” ou “maior probabilidade de experimentar níveis crescentes de violência na próxima década”. Aos factores internos para os quais remete a projecção, junta a instabilidade nos países vizinhos, em especial a RD Congo.

Segundo o Instituto, Angola consta do rol de 27 outros países que registaram o maior défice de paz positiva no período de 2009 a 2023, no qual integram aqueles que tiveram “crise de violência extrema” como, por exemplo, a Síria, Líbia, lémen, Timor-Leste, Egipto e Burkina Faso. “Não é apenas a proporção de deteriorações que é maior entre os países deficitários. A extensão de deteriorações também é maior para países deficitários do que para qualquer outra categoria”.

A diminuta expressão do investimento privado externo que Angola de facto regista é também apontada pelo IEP como reflexo de outlooks sobre a existência de potenciais riscos de surgimento de instabilidade no país. O mesmo elemento é, entre outros, considerado em análises de risco de gabinetes de consultoria(1).

O tema da Paz é recorrente nas análises sobre a situação do/no nosso país. Em 2023, o GRAD, Grupo de Reflexão, Aconselhamento e Debate, criado pelo LAB, Laboratório de Ciências Sociais e Humanidades da Universidade Católica de Angola, realizou entre Setembro a Outubro um Ciclo de Debates sobre a Paz, tendo como referencial O Dividendo da Paz(2), que traduz o esforço colectivo para realocar os recursos destinados ao esforço de guerra em sectores que promovem directamente o desenvolvimento social e humano da população de um país. Visa construir e transmitir confiança, compromisso e credibilidade, com o objectivo geral da melhoria dos padrões de vida, quantitativos e qualitativos, sustentados no desenvolvimento do capital humano e social.

Hoje, vou partilhar aqui, algumas das questões levantadas durante as três sessões desse Ciclo de Debates(3).

  • Já podemos falar da existência de uma paz social em Angola?
  • Podemos falar de angolanidade e pacificação social num contexto de profundas desigualdades sociais como a que Angola vive?
  • Podemos falar de angolanidade e pacificação social num contexto em que cerca de 50 anos de independência e 21 do fim da guerra, ainda não se conhecem nem as visões nem o projecto societário do país?
  • Podemos falar de angolanidade e pacificação social num contexto sem conciliação nacional?
  • Podemos falar de angolanidade e pacificação social onde quem pensa contrário a lógica dominante é tido como inimigo da paz/arruaceiro e logo é perseguido e intimidado?

Passados mais de 20 anos, as expectativas parecem goradas. A sensação de fracasso, retrocesso ou recomeço permanente está muito presente. Esta realidade sugere algumas questões para a reflexão de todos:

  • Como foi construído o ‘processo de paz’ em Angola?
  • Que actores negociaram a paz?
  • Quais eram os termos de referência da negociação?
  • Quais eram as agendas destes actores?
  • Onde esteve Angola nestas negociações?
  • Que mudanças se podem observar no modo de fazer política no cenário angolano nos últimos 20 anos?
  • Que implicações as respostas a essas perguntas têm para o processo de pacificação de Angola?
  • O que é ser angolano num contexto de profundas desigualdades sociais?

A paz militar não fez desaparecer, no espectro político angolano, a figura do inimigo a quem é atribuída toda a responsabilidade de tudo o que corre mal. Esta figura é mobilizada para diferentes momentos, em função das circunstâncias e conveniências.

Por meio da manipulação, ela está presente de forma velada ou aberta em todos os momentos, corporificada em diferentes actores: partidos políticos da oposição, organizações da sociedade civil/movimentos sociais/activistas, comunidade internacional, pessoas singulares com ideias próprias, etc. Ela é usada sempre para desqualificar, inferiorizar, catalogar, desacreditar, invisibilizar ou reificar o outro.

Mais contribuições dos participantes nas três sessões para reflexão:

  • A necessidade de aferir a responsabilidade do poder: até que ponto a generalização da violência não é planificada?
  • A relação umbilical entre exercício do poder, violência estrutural e a cultura do medo; na falta de paz social, a violência é um mecanismo de controlo por via do medo?
  • ‘A pobreza é uma forma de aprisionamento’; A paz, como bem público, é incompatível com a prevalência da acumulação primitiva de capital e com níveis abjectos de pobreza;
  • A paz como princípio constitucional (artigos 1, 21, 90); porque é que o direito não é eficaz contra os crimes contra a democracia?
  • Onde está em Angola, o debate sobre a justiça restaurativa? Entre a paz e a justiça há uma relação ética, porque o fim da justiça é a própria paz;
  • A paz pode ser pensada em duas dimensões. Primeiro, uma dimensão ética-normativa referente a valores e ao debate sobre o que é justo. Segundo, uma dimensão política que depende da participação, da acção cívica e da acção/agenda governativa;
  • A despenalização e despartidarização da actividade jornalística; as diferenças entre jornalismo e propaganda; o direito à informação como DH;
  • O perdão como condição de paz e futuro, ao promover a paz social numa sociedade justa. Ou seja: a justiça social é o outro nome da paz social. O perdão é a condição de possibilidade de um futuro comum;
  • A paz social constrói-se continuamente e os seus valores centrais são a verdade, a justiça, a caridade e a liberdade;
  • O poder actua segundo a sua indouta ignorância (a ignorância que se ignora a si própria). As consequências deste facto exigem uma nova apreciação pelas Ciências Sociais e Humanidades; 
  • Com uma história assente na mentira, o país caminha para uma cultura da violência e do medo. Nunca houve reconciliação; há medo da verdade. A conciliação deveria figurar na Agenda Nacional como prioridade, mas falta compromisso político;
  • Proposta de criar centros de memória, onde o diálogo tem como critério a verdade e o reconhecimento do outro;
  • A (re)conciliação pode ser pensada como um processo de desconstrução de todo o tipo representações e imaginários de violência que criam o outro como inimigo;
  • A questão da angolanidade pode ser olhada a partir de duas perspectivas. Uma é ideológica e está dominada pela partidarização. A outra é utópica, porque se propõe a elaborar e a cultivar um novo humanismo.

A finalizar, foram identificados os Pilares da Paz:

  • A paz como bem público, assente em princípios éticos e afirmada como princípio constitucional;
  • A Democracia e o Estado de Direito como condição para a realização de Direitos Humanos e do Dividendo da Paz;
  • Despartidarização do Estado e das instituições, fomentando a liberdade de ser, de estar e de expressão;
  • Reconhecer o valor do pluralismo e o valor do outro, desconstruindo a ‘figura do inimigo’;
  • O princípio da paz é a justiça social, nas suas várias dimensões (restaurativa e redistributiva);
  • A recusa de uma cultura de medo e violência estrutural;
  • O perdão, baseado na verdade, no diálogo e no respeito, como condição de futuro comum;
  • A importância da memória social e da problematização do passado;
  • A centralidade do papel da Educação Emancipatória que ensine a pensar e não a obedecer;
  • A angolanidade, não como essência acabada ou verdade imposta, mas como processo de aspiração e construção de um novo humanismo numa sociedade brutalizada;
  • Enquanto aspiração, a Angolanidade deve basear-se na tolerância, no respeito e afirmar a diversidade;
  • O humanismo plural e inclusivo da Angolanidade passa pelo alargamento de um espaço público independente e participativo.

14 Maio 2024

(1) Fonte: Africa Monitor 1452 Angola pp 1-2 www.africamonitor.net/pt/reports;

(2) FERREIRA, Manuel Ennes (2005), “Development and the Peace Dividend Insecurity Paradox in Angola”. European Journal of Development Research, vol. 17, nº. 3, pp. 509-524;

(3) Terei o maior prazer em partilhar os documentos finais desse Ciclo de Debates a quem o solicitar, indicando um email /endereço de WhatsApp de contacto.

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