27 DE MAIO DE 1977. A DERROTA DO POVO ANGOLANO (Parte 2)

Não vamos simplesmente pensar que é necessário dar um combate sério e verdadeiro aos fraccionistas. Mas vamos actuar duma maneira prática em cada bairro, em cada cidade, em cada sanzala, em cada kimbo. Vamos procurar os reacionários. Desde que eles apareçam, vamos fazer justiça. (…) Seremos o mais breves possível para podermos resolver esses problemas, e vamos tomar decisões segundo a lei revolucionária…” – António Agostinho Neto

POR CARLOS BENTO

A força militar que esmagou os manifestantes em frente à RNA agiu com uma grande carga de violência e ódio que mais fazia lembrar os golpes fascistas da América Latina nas décadas de 1960 e 1970. Alguns assassinatos ocorreram, imediatamente, no decurso da investida militar em frente à Rádio Nacional e sobre militantes levados para as Palmeirinhas e assassinados com requintes de malvadez(6) e publicadas no jornal oficial (Jornal de Angola de 31-05- 1977) fotografias como se tivessem sido os vencidos a cometer tal crime hediondo. Estes homens foram transportados para as Palmeirinhas, espancados, cortados à catanada, deitaram-lhes gasolina e atearam-lhes fogo. Os assassinos integravam militares da DISA, polícias da CPPA e um marginal (o Joy) que, estando preso por outros crimes de assassínio, foi libertado para ajudar os algozes a torturar e liquidar quem entendessem. É-lhe atribuído o assassinato do Sambila, com catana bem afiada, tendo-o “cortado às postas”, começando pelos pés e subindo pelo corpo com primores de crueldade, sob a assistência de membros da DISA e CPPA.

Do grupo barbaramente eliminado também fazia parte um indivíduo de nome Martinho Cardoso, ex-integrante do DOM Nacional, detido em frente à Rádio Nacional de Angola, corpo reconhecido pela esposa no meio da “orgia assassina” e confirmado por um dos repressores. As aludidas fotos também aparecem na página 215 de um livro da autoria da Leonor Figueiredo (Fraccionismo: quem disse o quê no Jornal de Angola, antes e depois do 27 de Maio de 1977). Para que este tema não se torne longo temos de referir que, desde o início, os golpistas impuseram a orientação de fuzilar em massa, cortar à catanada e queimar corpos dos militantes comunistas, mesmo dos que, sem se manifestarem a favor destes, tinham uma mulher bonita, uma casa, um carro ou outro bem susceptível de ser extorquido pelos golpistas. Que o digam Veloso, Pitoco e tantos outros.

Um assunto a esclarecer em definitivo: a primeira questão abandonada logo a seguir ao “golpe perfeito” foi o Poder Popular, rasgando até a legislação sobre a matéria. Foi mais uma traição à revolução! A reivindicação da representatividade dos oprimidos resultou no seu silenciamento.

Comparações

Comparando com o golpe de 11-09-1973 no Chile, se houve resistência ao golpe, não houve em momento algum qualquer perspectiva de resistir com sucesso. Por isso a questão politicamente decisiva concerne à possibilidade de resistir com sucesso ao golpe militar”. Vale insistir que não é indiferente para o moral de uma causa, que o seu representante máximo e os militantes com maior firmeza tenham preferido morrer a abandonar os seus ideais. O único que se entregou, segundo relatos de pessoas ainda vivas(7) e outras já falecidas que se encontravam na zona, foi o representante máximo da causa popular, Nito Alves. Com que justificação? Reduzir as torturas e os assassinatos que decorriam com a maior violência, jamais experimentada em Angola.

Alianças vs desinteligências

Cabe agora à historiografia comprovar os factos ocorridos no dia 27 de Maio de 1977: a manifestação em frente à Rádio Nacional de Angola, a manifestação que se encaminhava para o Palácio Presidencial, o ataque à Cadeia de São Paulo onde já se encontravam dezenas de presos por delito de opinião.

De entre os aprisionados encontravam-se militantes do MPLA ligados ao processo do Poder Popular (um deles por ter lido um poema de Nito Alves, pasme-se…), pessoas ligadas a uma dissidência do MPLA conhecida por Revolta Activa, e militantes de uma organização clandestina, que incluía alguns membros que paralelamente militavam ou haviam militado no MPLA, a OCA(8).

Pela parte dos indicados como vencidos terá havido falta de ponderação sobre a identificação e gestão de alianças com outros grupos sociais? Havia condições para que outros grupos sociais ou organizações se juntassem na luta pelo desenvolvimento do país?

1. Entre os membros da OCA existiam uma série de jovens que se reivindicavam representantes do maoismo e/ou do radicalismo esquerdalho relacionado com Enver Hoxa. Da parte dos apontados como vencidos do golpe de 27-05-1977 houve necessidade de demarcação destes esquerdistas ou, alternativamente, vontade de afastá-los: Não podemos esquecer que estávamos em plena Guerra Fria e que os maoistas se haviam aliado às forças internacionais opostas aos movimentos de libertação, ou seja, ao imperialismo.

a. Não podemos esquecer que estávamos em plena Guerra Fria e que os maoistas se haviam aliado às forças internacionais opostas aos movimentos de libertação, ou seja, ao imperialismo.

b. Por outro lado, existia uma grande diferença de abordagem relativamente à implementação do Poder Popular. A OCA pretendia que o MPLA não tivesse qualquer relação com este poder, antes fossem eles a controlá-lo.

2. Poder-se-ia ter efectuado uma aliança com os membros da Revolta Activa, desde que conhecidos com antecedência (1974) alguns dos factos que os motivavam, nomeadamente:

a. O conhecimento da existência de armas e munições do MPLA num quintal em Dolisie, em vez de serem distribuídas pelas frentes de combate;

b. A propensão dos dirigentes do MPLA para andarem à “caça” de mulheres em vez de se preocuparem com a luta de libertação nacional;

c. Este conhecimento apenas ocorreu a posteriori através do Dr. Eduardo Macedo Santos e confirmado por outra pessoa(9) deste grupo, ainda em vida;

d. A análise deste grupo sobre a vida interna do MPLA indicava verdades, mas abordada a destempo ou falhas de comunicação e contra o dirigente máximo do MPLA, Agostinho Neto, querido pelos comunistas.

3. A determinada altura o MPLA, na pessoa do seu presidente, orientou que os Comités de luta clandestina anticolonial a si ligados deixassem de ter actividade paralela, mas alguns deles continuaram, nomeadamente os Katala Hadi, os 4 de Fevereiro e os Henda. Os CAC (depois OCA), de formação mais recente, também permaneceram em actividade, clandestina.

Considero hoje que, se houvesse ligação entre os combatentes no interior do país (os guerrilheiros e as células clandestinas) e os que estavam no exterior teria havido possibilidade de consecução de alianças com a Revolta Activa, logo em 1974. Mais tarde, já com os anticorpos acumulados pela Revolta Activa, tornou-se mais difícil pois passaria a ser mais um factor contra os marxistas-leninistas.

A única aliança que se conhece aos vencidos foi a estabelecida com Neto, uma aliança aparentemente sólida. Neto era o ídolo dos antigolpistas (comunistas). Os social-democratas golpistas, também surgiam a endeusar Neto, mas vendo e revendo os discursos deste, a prática dos social-democratas aparece-nos contrária. Os social-democratas souberam, entretanto, utilizar o terrorismo mediático para reunir os grupos amorfos (maioritários) em torno dos seus ideais e utilizar os maoistas contra os comunistas, sempre que o necessitaram, embora a principal responsabilidade da criação do culto de personalidade a Neto tenha sido obra dos antigolpistas, dos apelidados fraccionistas.

Segunda intervenção de Agostinho Neto após a tentativa de golpe (jornal de Angola)

Acusadores, acusados e perseguições

Os vencedores, social-democratas, não deixaram de acusar os comunistas de terem efectuado execuções sumárias a um grupo de comandantes da guerrilha e alguns civis. Mas hoje podemos afirmar com toda a objectividade que não foram os vencidos a fazê-lo. Foram, antes, as forças golpistas a efectuar as ditas execuções como forma de virar definitivamente Neto contra os seus maiores defensores. Este assunto será tratado em altura própria. Vale lembrar que a juventude ainda terá de investigar até que ponto terá havido incentivo e participação das forças do capitalismo internacional no golpe, nomeadamente da CIA. Também será interessante ler e aclarar as declarações de um torcionário (Cláudio Guerra) brasileiro, membro do DOPS, num livro publicado por jornalistas (Memórias de uma guerra suja), onde aquele diz ter-se deslocado a Luanda na noite de 26 de Maio, travestido de cubano, para, nas primeiras horas do dia 27-05-1977, rebentar uma bomba para acusar os comunistas por este rebentamento. Isto tudo com orientação directa dos serviços secretos e de oficiais superiores do exército brasileiros, tendo viajado num avião da Força Aérea brasileira. O que mais terá acontecido e com que origens?…

Por que não houve nenhuma espécie de resistência militar ao golpe? Que não houve resistência já o sabemos. Os golpistas não tiveram necessidade de combater para triunfar. Resta-nos, então, uma questão: terá havido alguma tentativa de organizar resistência militar? Tanto quanto se tenha conseguido saber houve uma grande preocupação de Neto com a localização de Bakalof: no início da tarde de 27-05-1977, Agostinho Neto telefonou à esposa de Bakalof, Gina, para saber onde ele se encontrava, pois sabia da sua capacidade militar e de organização(10). Isto foi confirmado por um combatente da 1.ª Região Político-Militar que sobreviveu ao morticínio. Por outro lado, Bakalof só é detido no início de Novembro de 1977, com um grupo de pessoas da sua confiança (entre os quais se encontravam Dodó, Chico Jorge e Vicente Fortuna). A sua prisão dá-se por inépcia, por tolice ou por manifesta inocência. Nos calabouços, os seus detratores (DISA e alguns detidos) fizeram correr uma versão estuporada sobre a sua aproximação a Luanda. Foi uma mentirada. A verdade é que havia uma pessoa de família, vestida de bessangana(11), que se dirigia diariamente ao esconderijo onde se encontrava para lhe levar alimentos, até que a DISA começou a segui-la e descobriu onde se encontrava(12). Por outro lado, existia um detido, ex-agente da PIDE/DGS, o Camacoa, que a DISA libertou temporariamente para colaborar na busca e na repressão. Este Camacoa foi peça importante na detenção de Bakalof e demais companheiros que se encontravam com ele, embora quem tenha dirigido a operação tenha sido um oficial da DISA(13). Para além do grupo que o acompanhava, foi ainda detido um outro grupo (Zeca Canhoto, Meneses, Vítor, Lima e mais uma mulher, a Dina) que estudava as 13 Teses em Minha Defesa, de Nito, e recolhia informação e jornais para enviar para o grupo que se encontrava com Bakalof.

Houve mais um grupo isolado que se manteve escondido durante 13 anos, composto pelo guerrilheiro Bajé (Manuel Cassule) e Luís dos Passos, muito procurados na altura. Bajé já é falecido e Luís dos Passos, em entrevista recente, referindo-se aos antigolpistas, diz: como não estavam a pensar em golpe, acharam que a manifestação era suficiente para se conseguir que o regime objectivasse mudanças. E prosseguiu continuou-se a apelar para que as pessoas fossem para a Rádio, dizendo que a manifestação era lá. Eu próprio fui ao Sambizanga buscar população – coitados, muitos acabaram por ser mortos… Mas, como disse, quando a população recuou do Palácio, onde estava programada a realização de um comício de protesto, concentrou-se depois na Rádio Nacional na expectativa de ouvir alguém falar. E não houve ninguém. Quando demos por ela, os efectivos da polícia estavam a disparar contra a população. Eu tomei conhecimento disso via rádio. E o Petrof(14) foi quem comandou esse massacre contra pessoas desarmadas. Eu ouvi a comunicação num dos rádios que o Bula(15) levou. Ouvi também o Onambwé dizer “Também estás com muito medo, estás com muito medo, não é assim”? E ele (Petrof) respondia “o povo está a vir…”.

“Se tivéssemos de matar, eles estariam mortos, porque tínhamos meios, preparação e éramos especialistas nisso… se houvesse intenção de matar dirigentes, como dizem que nós é que matámos os comandantes, eu não autorizava que o Petrof fosse levado para o hospital… A maioria dos meus colegas, à excepção daqueles que foram até ao Piri (e que éramos cerca de 100), pensaram que seriam julgados… Toda essa gente foi fuzilada. Eu só escapei porque não acreditei nisso. Depois de referir que caminhos seguiram os que bateram em retirada de Luanda, após a intervenção repressiva dos golpistas, diz Luís dos Passos: “Chegados lá(16), conversámos sobre o que havíamos de fazer: guerrilha, por exemplo. Recusámos fazer guerra, mas concordámos que teríamos de estar muito organizados, o que não fizemos antes.

Continua com parte 3 (fim) sobre Violência gratuita e inusitada

Referências de consulta:

(6) Entrevista 1 – Efectuada a um dos participantes no massacre das Palmeirinhas (polícia de nome Paixão, posteriormente encarcerado), que chegou a indicar nomes de outros participantes, nomeadamente o Joy;

(7) Entrevista 2;

(8) Organização Comunista de Angola, herdeira dos CAC;

(9) Entrevista 3;

(10) Entrevista 4;

(11) Mulher de panos;

(12) Entrevista 5;

(13) Entrevista 6;

(14) Este comandante foi retirado do grupo de comandantes que depois foi assassinado em casa do Kiferro. Foi retirado como estando doente e “foi levado para um hospital” (não confirmado), conforme relatos dos golpistas. A nota é minha;

(15) Um dos comandantes depois levado para ser assassinado no quintal do Kiferro; 

(16) Ao Piri.

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