27 DE MAIO DE 1977. A DERROTA DO POVO ANGOLANO (Parte 1)

O ambiente propício ao golpe

Por que motivo não houve resistência ao golpe de 27 de Maio de 1977 em Angola?

POR CARLOS BENTO

A responsabilidade em apontar vencidos na derrota de Maio de 1977, derrota que não foi apenas dos indicados, mas de todos os democratas, todos os revolucionários e todos os trabalhadores angolanos, ainda não está determinada por factores diversos e principalmente por ter havido, da parte dos vencedores, liquidação total das pessoas que detinham a informação mais relevante sobre o que ocorria na sociedade angolana da época e sobre o envolvimento de cada grupo social e organização em relação a cada controvérsia. Mesmo a maior parte da documentação que os indicados como vencidos possuíam se encontra na posse dos vencedores, que se vêm negando a desclassificá-la ou dar acesso a qualquer informação, independentemente da origem. Negam-se, inclusivamente, a permitir a criação de uma Comissão da Verdade, porque receiam ser apanhados na sua própria rede. Por outro lado, investem no desaparecimento físico das pessoas ainda vivas e com alguma informação para, depois, surgirem como (re)salvadores da Pátria.

Quartim de Moraes aconselha: Há sempre, na dinâmica dos processos históricos, um momento em que determinada tendência assume a força de uma irresistível avalanche. O interesse está em determinar quando e como ocorreu essa ‘decisão’ objectiva”. E remata:a questão inicial exige outro esclarecimento. Quem resiste a um golpe espera derrotá-lo. A história regista resistências ditadas pelo heroísmo em que a esperança de sucesso era praticamente nula (MORAES 1995)(1). Disse isto referindo-se ao presidente Salvador Allende, que morreu sob as bombas do golpe fascista coordenado pelo ditador Pinochet.

A nós interessa-nos: quando e como a derrota das exigências populares, no dia 27 de Maio de 1977, se tornou irremediável?

A inevitabilidade do golpe

As exigências populares manifestavam-se através dos interesses das amplas massas populares, rurais e urbanas, contra os interesses dos estreitamente nacionalistas, apenas interessados em assumir o poder, substituir o regime colonial e crescer e fortalecer como burguesia nacional associada a esconsos interesses de classe e do capitalismo internacional, cada vez mais à vista.

Vou servir-me de alguns exemplos para mostrar o enfado de Lúcio Lara e outros quanto ao que fazer depois da independência do país. Rui Pena Pires(2) declara: Ele tinha uma posição muito social-democrata, […]. Em termos nacionalistas era muito radical, mas quando se falava de outras coisas para além da independência, as suas posições eram mais próximas do movimento social-democrata europeu do que, propriamente, do socialismo. Das conversas que tive com o Lara, o que mais me impressionou, depois de uma manhã inteira a passeá-lo pela cidade, foi ele ter dito uma coisa do género: isto mudou muito, não sei como vamos governar isto” […].

Para o mesmo livro, Pepetela ditou: Tinha uma ligação com eles, participei na estrutura do Comité Central dos CAC(3) por alguns meses. Discutíamos, fazíamos reuniões. Eles eram claramente maoistas. Eu seria de facto mais ‘guevarista’ que outra coisa, com muita dose de anarquia, mas naquele momento achava que a solução era estar com os maoistas, embora não me identificasse com muita coisa que tinha acontecido na China. No contexto internacional, estava mais com a China do que com a União Soviética. Isso, portanto, unia-nos. […] eu e muitos outros sempre fomos contra a União Soviética.”

É preciso que não nos esqueçamos que estávamos em plena Guerra Fria, onde a China se aliara com os EUA contra a URSS e o movimento de libertação nacional. Havia mais um, membro do Bureau Político do MPLA, com ligações estreitas com os CAC, de seu nome Carlos Rocha (Dilolwa). Em todo este contexto, poderemos afirmar com propriedade que havia gente dentro do MPLA que melhor estaria na FNLA, apoiada pela China.

Agostinho Neto, citado pelo ‘Libertação Nacional’, n.º 45, de 25 de Março de 1975, afirmou: Nós somos pelo Poder Popular no nosso país. Sem o Poder Popular na mão do povo não deixaremos de ser escravos”. No ‘Vitória Certa’ de 26 de Abril de 1975, Lara resolveu abrir o seu livro de burradas e esclarecer: Nós, no MPLA, dizemos que as comissões de bairro [com letra minúscula] representam efectivamente uma maneira de trazer o nosso Povo à participação do poder […]. Sabemos que não é o sr. presidente da Câmara, que viveu sempre no asfalto, que é melhor intérprete na Câmara Municipal das necessidades, em […], em habitação das populações dos musseques […], aqueles que lá vivem […] são os que melhor podem lutar, para defender, nos organismos instituídos, os direitos, as aspirações das populações […]. Chamou-se a isto Poder Popular. Mas será que estes dois vocábulos, por si só, representam um ‘carimbo’ ideológico a esta coisa simples que é a participação das populações na vida nacional? Nós não aceitamos isso!

Estávamos em plena Guerra Fria, transladada para o interior de Angola.

Guerra Fria foi a designação atribuída ao conflito político e ideológico entre as duas grandes potências, depois da II Grande Guerra: os EUA e a URSS. Chamou-se “fria” porque não houve pelejas físicas directas entre ambos. Norte-americanos e soviéticos travavam uma luta ideológica, política e económica no decurso desse período, luta que se propagou um pouco por todo o mundo.

A Guerra Fria teve uma grande influência no contexto das independências africanas. Aos novos Estados colocou-se uma necessidade: escolha do regime político a seguir e a que sistema ligar-se a nível internacional. Neste âmbito, as grandes potências introduziram nas suas estratégias a penetração em África, pois os EUA apenas tinham uma colónia em África (Libéria) e a URSS nunca as teve. A China acabou por entrar nesta “guerra”, contra a URSS, que tentou estar sempre próxima dos movimentos de libertação nacional.

Com o advento das independências africanas, surgiram os processos de descolonização e, consigo, a influência dos nacionalismos. Embora este seja um conceito com diferentes abordagens (por cientistas políticos, sociólogos ou historiadores), vamos ater-nos ao fundamental: há uma associação entre a ideologia e as manifestações nacionalistas. Assim, tornou-se necessário que os detentores do poder não se afastassem da grande massa da população e que as ideias tivessem um papel importantíssimo na sistematização política do nacionalismo. Este foi o grande factor de desentendimento entre os dirigentes do MPLA e que provocou debates profundos (para além da corrupção, roubo de bens públicos, etc…).

Para o movimento de libertação, a causa nacional tinha toda a prioridade política, reclamando o direito de estabelecer um Estado independente, ligado a determinado grupo nacional. Na diversidade, surgem grupos distintos: uns ficando pelo estabelecimento da independência e conduzindo os destinos do Estado, independentemente dos interesses das populações outrora espezinhadas; outros querendo a independência nacional com os requisitos de uma independência plena (política, económica e social, como definido no Programa Maior do MPLA). Para estes, o nacionalismo era entendido como um princípio político que coloca no cimo os valores da nação, independentemente do seu conceito.

Se quisermos socorrer-nos dos primeiros homens que influenciaram as lutas anticoloniais em África, temos de falar da Negritude e do Pan-africanismo. Foram as correntes que surgiram como forma de reabilitar a identidade dos africanos, o seu carácter arruinado, desconsiderado e rebaixado.

Um dos expoentes e actor da independência em África foi Kwame Nkrumah, que introduziu nos movimentos de libertação as componentes do Nacionalismo, do Pan-africanismo e do Socialismo. Foram estas as inspirações de Nkrumah, na senda da independência nacional do Gana e de outras lutas por independências. A Negritude teve imensa importância pois, como dizia Senghor, num contexto absolutamente cultural, la Négritude est aujourd’hui nécessaire au monde: elle est un humanisme du XXe siècle”.

Em contacto com todas estas correntes, nasceram influências ideológicas que necessitavam de sistemática aplicação e adaptação à realidade. Estes factores lançaram os grupos nacionalistas para conflitos de ideias e, concomitantemente, para uma ligação aos regimes políticos de que aceitavam apoios diversos.

É necessário não esquecer que toda esta abordagem tem que estar concentrada no terreno da história! Importante, também, lembrar a todos: para terem consciência que o conhecimento é responsável por sabermos que sempre que imaginamos estar fora da ideologia, na verdade estamos sempre dentro dela.

No MPLA já existiam ideologias consolidadas e outras absorvidas ao longo do tempo, desde a sua proclamação. Temos de observar, também, que são as ideologias que têm de dar respostas a uma imensidão de quesitos, desde o rompimento com relações de produção de exploração do homem pelo homem, até ao estabelecimento de novas relações, ao modelo económico, à natureza e lugar das liberdades e garantias individuais e colectivas, às políticas sociais, a acordos e alianças de todo o tipo. Foram todos estes factores que determinaram o estabelecimento dos posicionamentos ideológicos dos grupos presentes no partido no poder em Angola, o MPLA.

Sem ter que fazer história sobre os conceitos de posicionamento ideológico, podemos dizer que a identidade ideológica sofreu uma metamorfose profunda. Ainda na actualidade, entende-se que direita se refere a quem se identifica, em maior ou menor grau, com os valores e interesses das sociedades ocidentais, capitalistas, e a esquerda se refere à posição dos movimentos revolucionários, ou não, que contrariam a estrutura e interesses das sociedades capitalistas, a mais das vezes identificados como favoráveis ao sistema socialista.

No meio destes posicionamentos contrários, houve uma outra corrente, eduardista, que, envergonhadamente, escondia a sua posição de neutralidade ideológica relativamente aos dois grandes blocos. Era a expressão do conhecido Movimento dos Não-alinhados.

Aconteceu que nem esta posição interna, nem os países pertencentes a este grupo evitaram o embate da bipolarização entre os posicionamentos identificados com os dois blocos, mesmo com os ocidentalizários sonegando a sua identificação, para continuar a receber apoio dos países socialistas. Mas os interesses e valores defendidos pelas partes estavam claros. A aliança da direita com os maoistas era evidente. Estava dado o mote para a bipolarização!

No meio de toda esta confusão no regime implementado, a corrupção, o roubo de bens públicos e a oposição em cumprir o Programa Maior do MPLA progrediam, não sem confrontação no interior no Comité Central. Daí à manifestação de descontentamento, foi um passo.

As pessoas que se manifestavam em frente à Rádio Nacional de Angola (RNA), aquando da chegada dos tanques comandados por tropas cubanas, foram dispersas pelo tiroteio então iniciado e começaram a ser detidas, espancadas e mortas (calcula-se em cerca de 300 vítimas mortais) no próprio local, como mostra o filme realizado por uma equipa(4) da televisão angolana que se encontrava de prontidão desde o dia anterior ao golpe. O apoio externo de Cuba foi fundamental! Houve 2 tentativas de levantar os MIG(5) que se encontravam nas instalações da Força Aérea: uma por parte dos vencedores para lançar bombas sobre os manifestantes e outra por parte de um jovem piloto (desconhecido) já depois da intervenção das forças cubanas, desconhecendo-se se as suas intenções eram as mesmas. A pessoa que se opôs ao levantamento dos MIG foi mais tarde sequestrada e torturada, porém sobreviveu ao holocausto.

Publicado no Jornal de Angola, dirigido por Costa Andrade ‘Ndunduma’

Continua…

Referências de consulta:

(1) MORAES, João Quartim de. O colapso da resistência ao golpe de 1964. História – UNESP. São Paulo, v.14, 1995, p.54;

(2) FIGUEIREDO, Leonor, O fim da extrema-esquerda em Angola, pág. 65;

(3) Comités Amílcar Cabral;

(4) O denominado Ano Zero; 

(5) Aviões de combate.

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