SISTEMA OPRESSOR

O tempo prova que ao Presidente terá faltado visão e inteligência políticas para perceber que, sem a legitimidade histórica do seu antecessor, a efémera popularidade adquirida (mais por demérito do PR anterior que por mérito próprio), dificilmente duraria um mandato inteiro, se não desse passos concretos para a destruição do Sistema, ou seja, para a mudança do modelo político económico e social.

LUZIA MONIZ

O “Sistema” angolano, ou seja, a prática política da cúpula da governação autocrática, desadequado em relação às leis e normas do País e aos tempos (era da comunicação e do digital), transforma a realidade política nacional num espaço retrogrado.

Esse Sistema, com origens no regime de partido único e nas práticas do colonialismo português, onde a opacidade e o secretismo em questões de Estado e a violência securitária e intimidadora contra opositores, eram normas, persiste hoje, tal como ontem, como forma de um grupo se perpetuar no Poder.

O Estado actual, alicerçado a partir de guerras (contra o colonialismo e civil fratricida), está centrado na intolerância política, alavanca do absolutismo, em que o contraditório e o protesto políticos são coartados ou simuladamente permitidos.

Contrariamente ao Sistema Político, definido pelas Ciências Sociais como a forma de governo de um Estado, quer dizer, o conjunto de instituições políticas e relações entre si, por meio das quais esse Estado se organiza para o exercício do Poder, o Sistema angolano em análise é opaco e resume-se a um grupo muito restrito, sem existência legal ou oficial.

Essa anomalia jurídica, temporal e política está nas antípodas do que deve constituir um regime democrático, apesar do Sistema usar invólucros de democracia para a sobrevivência e aceitação mundial do regime autocrático que criou.

Para isso, adopta alguns símbolos muito caros aos regimes democráticos, como a realização periódica de eleições, naturalmente manipuladas, porque a prática política de quem detém o Poder é completamente avessa aos princípios democráticos. 

Para além da legião de acéfalos, uma espécie de “guardiões do templo”, o Sistema sustenta-se também do medo que impõe como medida de controle da sociedade em geral, particularmente de políticos, jornalistas, magistrados, intelectuais, revoltados e contestatários. Medo da morte, da prisão, da indigência, do desemprego e da perda de privilégios. 

Entre os guardiões do templo, o destaque vai para os profissionais da capturada comunicação social de capitais públicos que, fazendo uso de mentiras e propaganda, funcionam como garante desse controle social, da manutenção e da prosperidade do Sistema que administra todos os recursos financeiros do Estado e usa o dinheiro público para premiar lealdades, algumas das quais caninas, e sancionar deslealdades.

Os juízes, transformados em meros figurantes, manietados e feitos cumpridores de “ordens superiores” emanadas do Sistema, são prisioneiros sem coragem de lutar pela sua própria e soberana libertação profissional e desmantelar essa estrutura de longos tentáculos, tal como o polvo. 

As instituições do Estado, designadamente governo, parlamento, justiça e partidos políticos, são instrumentos de que o Sistema se serve para o simulacro de regime. Instituições que entram no jogo do faz-de-conta e pouco ou nada fazem para alterar o status quo, como acontece com a oposição institucionalizada que parece actuar para que (apenas) se aligeire a natureza totalitária do regime. 

Tais instituições ignoram que sem o desmantelamento radical do regime autocrático, adopção de nova Constituição que traduza a realidade sociológica do País, contra as desigualdades, as assimetrias políticas, regionais e geracionais, dificilmente o Sistema, que cria e se alimenta do autoritarismo, será destruído.

Papel do Presidente 

O primeiro grande sinal do Presidente João Lourenço no sentido da manutenção do Sistema foi dado, no princípio do seu mandato, em 2018, quando decidiu proteger o antigo vice-presidente da República (peça crucial do Sistema), acusado pelas autoridades portuguesas de corromper activamente um magistrado, no âmbito do processo judicial que ficou conhecido como “Operação Fizz”.

Para evitar que esse julgamento atacasse a espinha dorsal do Sistema, a sua cúpula socorreu-se, com sucesso, de diversos expedientes, com realce para a ameaça de corte de relações com Portugal. E, com isso, conseguiu impedir que Manuel Vicente fosse julgado pela justiça lusa.

Se quisesse se libertar do Sistema, o Presidente teria de reconhecer, logo de início, quando a sua popularidade estava no auge, o seu papel de beneficiário privilegiado e obreiro dessa estrutura, assim como a revelar de forma transparente os ganhos por si obtidos, e, em seguida, adoptar medidas para a demolição desse Sistema.

O tempo prova que ao Presidente terá faltado visão e inteligência políticas para perceber que, sem a legitimidade histórica do seu antecessor, a efémera popularidade adquirida (mais por demérito do PR anterior que por mérito próprio), dificilmente duraria um mandato inteiro, se não desse passos concretos para a destruição do Sistema, ou seja, para a mudança do modelo político económico e social.

Não tendo dado nenhum desses passos, para preservar os seus privilégios materiais e sociais, ao novo Presidente só restava manter o Sistema e entrar em negação com o seu discurso de investidura em que dizia ser sua “responsabilidade a construção de uma Angola próspera e democrática, com paz e justiça social”.

A partir daí, faz “ouvidos de mercadores” perante os angolanos de diferentes regiões, idades e grupos sociais que continuavam e continuam a clamar por liberdade, justiça social e dignidade humana.

E, para não estar sujeito a chantagens de outros colegas da estrutura que o engordou política e economicamente, deixa de manifestar qualquer hostilidade ao Sistema, assumindo-se, pelo contrário, como seu mais dilecto protector. 

Vítimas  e desmantelamento do endocolonialismo

O Sistema atinge directa ou indirectamente toda a sociedade e os seus efeitos vão para lá do território nacional. Todos os angolanos, incluindo os líderes, são vítimas desse Sistema. 

Uns obedecendo às tenebrosas “ordens superiores”, um estratagema do Sistema para fugir a explicações sobre decisões e medidas absurdas, perigosas ou criminosas como chantagem, perseguição ou eliminação de potenciais ou efectivos adversários.

A maioria da população é vítima da opressão e repressão e da miséria do regime criado por esse Sistema e cuja manutenção absorve muitos dos recursos financeiros que deveriam servir para melhorar a vida das populações e contribuir para o desenvolvimento do País.

Os efeitos colaterais atingem até os próprios construtores e líderes do Sistema que, vezes sem conta, têm de fugir do País para ter alguma vida tranquila, de cidadão normal. Contudo, nem sempre conseguem porque, mesmo no estrangeiro, vivem apanicados com a hipótese de serem confrontados por compatriotas seus indignados com as atrocidades do regime. 

Tal como na Máfia liderada por D. Corleone, tão bem retratada nos filmes da trilogia “O Padrinho”, de Francis Ford Coppola, baseados na obra homónima de Mário Puzo, também no Sistema angolano, a lealdade é recompensada e a “traição” paga-se, por exemplo, com privação da liberdade ou morte. 

Para liquidar completamente esse Sistema clientelar, é necessário desmantelar o actual regime, centrado nas desigualdades, que cria impunidades para políticos, oficiais da Justiça (o caso Joel Leonardo é paradigmático), forças de defesa e de segurança, promovendo desta feita a corrupção.

O problema do Sistema, que tem o suborno e a corrupção como meios para a sobrevivência do regime, não está apenas na pessoa que lidera, chame-se ela José, João ou Adão. 

Está, sobretudo, dependente do grau e capacidade do chefe para compreender que libertar a sociedade é libertar-se a si próprio e, para tal, precisa de desmantelar o monstro, as desigualdades, a opressão, as diferentes formas de discriminação, enfim, o endocolonialismo.

2 Comments
  1. …acabar com o sistema é acabar com um modus vivendi…

  2. …acabar com o sistema é acabar com uma forma de vida que está a fazer cultura por cá🇦🇴😭…

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