“Não ignore a força da Natureza. Ela reage em legítima defesa”.
Miral Pereira dos Santos
Jornalista peregrino brasileiro
O rosto de Kalunga pareceu-me o de um ser bom e justo, ao contemplá-lo após o momento de pânico. Aconteceu na madrugada de terça-feira que passou. O temporal arrastou-se pelos dias seguintes. Inopinado, em surreal modo de trovoada cheia de relâmpagos. Depois do despertar estrondoso e apesar da angústia do meu coração a galope, tranquilizou-me a sua aparência benigna. Menorizei os seus brados furiosos e analisei melhor a imagem vista inicialmente como coisa horrenda, disforme e assustadora. Desconsegui ver a figura representativa do mal. Verifiquei, sim, o quanto era benigna a aparência do personagem.
Kalunga é poderoso, sabemos todos. Por justificadas razões, terá chegado zangado nesses dias a várias habitações. Não só a kubiku como o meu, que luta há anos por saneamento, elevador, luz e água regular. Drama dos instalados naqueles prédios que mal se aguentam na estrutura e temem o ruir ou a queda desamparada. Com essa hipótese há muito anunciada. Por via ou não da fúria de Kalunga, poderá acontecer um dia destes, a qualquer momento.
Kalunga chegou raivoso a vivendas, provavelmente a chalets, a palácios e palacetes. Também a condomínios luxuosos, mais certo ainda, a milhares de míseros casebres e cubatas afins, no subúrbio e redondezas. Atingiu com os seus estrondos a paisagem do ar livre, onde, num forte aviso ao povo angolano, despertou todos para a realidade desta vida complicada que se vive. Assustei-me, devo confessar.
Não terei sido o primeiro nem o único da lista. Foram bwé os insignificantes cidadãos tocados pelos efeitos dessa inesperada visita de Kalunga, o poderoso. Talvez ela fosse esperada. Mas a verdade é que ninguém, nem mesmo “S.Exa. quem de direito”, está preparado para tais visitas. No houve pessoa que não tivesse sentido medo. Pelo evento em si e porque trazia de esquebra uma forte mensagem. Uns pensaram em mentira e fraude. Outros, inclusive S.Exas., viram-se forçados a reflectir sobre a vida miserável que vivemos todos.
Mesmo que se tenha em conta a intensidade descomunal da bátega, existem responsabilidades governamentais vistas no momento da ressaca. Daí que o quadro observado seja este: os intocáveis, nunca desmerecendo a classe, continuaram maravilhosamente protegidos, e os flagelados dos arrabaldes, miseravelmente expostos. À mercê dos perigos conhecidos: lixos a feder de podres nos becos e nas valas das periferias, negligentemente estagnados, ano atrás de ano (sai governo, entra governo). Responsabilidade de uma administração desestruturada e deficiente. Sem ideias. Onde a solução (se seguirmos a regra habitual) passará certamente pela nomeação de mais uma mulher, em substituição do pobre do Homem que lá está. Sacrificado para reforço do poder do género. Espero que não, mas quem sabe?
Sujeita à vontade de quem mal decide, homem ou mulher, não importa, a populaça continua sofrendo os males de sempre. Dejectos a emporcalhar comunidades e águas putrefactas nos canais, agitadas como bandeira. A aguardar por doenças, epidemias, sarna, piolhos, paludismo, diarreias, covid, e tudo o resto que se sabe no campo das infecções.
À malta restará, provavelmente, o sonho de um miserável subsídio de pobreza. Talvez um do tipo kwenda. Sonhar é fácil, mas deixemo-nos de coisas. Isto está demais, meus! Não acham?
Pensando nisso tudo, decidi iniciar um caminho difícil. Como a estrada limpa da minha consciência. Andei um pedaço, e a meio do percurso vislumbrei de novo o vulto de Kalunga a fazer-me sinais de aproximação e a acercar-se de mim. Lançou remoque malicioso, tu que falavas tanto, porque te calas agora? O que te impede de soltar novamente a voz?
Indecifráveis como os mistérios de Nossa Senhora da Muxima, as preposições de Kalunga perturbaram-me. Senti-me menino, com as respostas presas na garganta. Disse baixinho que aprontava uma fábula para os próximos dias, para falar com gente que me entende, já que é mais fácil dialogar com lagartos e gafanhotos, do que com certas pessoas. E prometi que soltaria em breve essa prosa, de maneira a que chegasse a todos, o timbre da minha voz cansada.
Kalunga parece ter entendido e deixou-me, cogitando, mergulhado em dilema: falar ou ficar mudo. Concluí que calado, sozinho e sem companhia, correria o risco de ir atrás de gente que come e cala, que engole umas vezes e se engasga vezes sem conta; que se move de mansinho, de um jeito artificial e saltitante como caminham os invertebrados.
Já tinham passado oito meses (quase o tempo da gestação na espécie humana), sobre o dia em que havia tomado a decisão de parar de falar. Tempo demasiado para quem tem sapos entalados na garganta. Há necessidade de desabafar. Sem receio das atitudes de torpes indivíduos. Que intimidam e levam a que pessoas como eu parem de falar.
Assumo então aceitar o desafio. Ou tenho ou já não tenho estofo para aguentar com as investidas dos oportunistas; ou deixo-me ou não me deixo vergar perante filósofos de alpendre que não podem ouvir qualquer queixume contra o regime. E tomo posição, controlando as emoções. Se não tiver coragem para retrucar essas investidas situacionistas, então não ando aqui a fazer nada.
Nestas circunstâncias, meus caros leitores, aqui me têm de volta, a mexer no que considero essencial. Apontar e criticar erros, abusos e negligências e defender, na medida do que puder e for justo, os direitos da sociedade angolana. Provavelmente, não retornarei com a periodicidade a que vos habituei. Por ter perdido energias, estarei presente à vossa mesa, quinzenalmente aos domingos, à hora do matabicho.
Luanda, 23 de Abril de 2023