O síndrome da vergonha alheia

Falhar em Preparar-se, é Preparar-se para Falhar.

Benjamin Franklin

Filósofo, escritor e cientista americano

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Acabei por decidir. A energia parece ter voltado e julgo que posso cumprir. Assim e em princípio, estarei presente nesta coluna, todos os domingos. Por isso, estou aqui hoje. E começo pelo registo da morte de Harry Belafonte, actor, cantor e activista americano, símbolo do orgulho e da esperança da juventude negra no início dos anos cinquenta do século passado. Ainda recordo as restrições e medidas de segurança impostas em Luanda, quando da exibição do filme “Carmen Jones”, de que era protagonista. Não impediram que o orgulho e a esperança se mantivessem! Que saudades! Posto isto, vou direito ao tema de hoje.

O que leva determinados compatriotas, militantes ou não do M, desse MPLA que elevámos ao esplendor da glória em épocas de luta, a defenderem de um modo doentio as políticas económicas e sociais do Executivo liderado pelo Presidente João Lourenço? Na verdade, já as defendiam com o mesmo vigor e convicção, no tempo dos falecidos Presidentes António Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos. Faz, pois, sentido, insistir nas perguntas: após experiências de triste memória, porque defendê-las hoje? Com nomeações pouco criteriosas e sem análises rigorosas, sem a avaliação dos contextos e das oportunidades, porquê? Porquê a continuidade da ausência de discussão e consensos mais abrangentes? Será unicamente, por amor e fidelidade eternas ao MPLA? Apenas isso ou algo mais?

Não se tratando de uma questão ideológica, uma vez que o MPLA é hoje um partido sem ideologia (chocante, não é?), porque será então? Não é certamente por serem mais angolanos e mais patriotas do que os demais cidadãos. Disso tenho a certeza. Mas, sobre isso, existem, no entanto, vozes discordantes, o que é natural. Enfim! Cada um com sua cabeça, cada cabeça com sua sentença.

Se por um lado e a partir de fácil observação se conclui que a aprovação de medidas extemporâneas (é o meu ponto de vista a falar), resulta de compromissos assumidos entre os decisores partidário/governamentais e os beneficiários das medidas (ocupação de cargos de topo e de prestígio, estendidos a filhos, afilhados, compadres e outros parentes da grande família); se por outro lado este quadro permite especular-se sobre benefícios representados por contratos, apoios a projectos, aplicações financeiras, negócios rentáveis e benesses de diversa ordem (uma panóplia de oportunidades para beneficiar indivíduos, empresas e instituições com fortes ligações ao partido no poder). 

Se por outro lado ainda, a gravidade se amplia porque, à partida, as iniquidades citadas fazem pressupor que são inapropriadas e não-benéficas nem prioritárias para o país; e, finalmente, a agravante verdade de existirem casos em que são mesmo bastante prejudiciais ao desenvolvimento da sociedade angolana. 

Por tudo quanto fica investigado, é legítimo que se levantem dúvidas sobre os verdadeiros propósitos dos dirigentes do MPLA. Não apenas deles, mas também da legião (talvez de alguns esquadrões) de seguidores fanáticos (fanáticos porque acomodados) que defendem as suas políticas. Mas, o que querem eles, na verdade, construir? Que argamassa se pretende utilizar, na edificação do futuro da Nação? 

Entre muitas incongruências, vem à tona o cerne da questão. Uma evidência que, infelizmente, não pode ser negada e confere força à minha teorização. Dessas operações condenáveis, emerge uma linha de actuação da qual desponta uma marca de vergonha. A corrupção e o nepotismo desenfreado em que mergulhou a sociedade angolana por via do Partido. O fenómeno é hoje reflexo de um imparável e vergonhoso tráfico de influências ao mais alto nível e da mais baixa índole. Facto que obriga, na falta de verberação apropriada, o recurso ao grito de revolta, um alerta às pessoas de bem, um pedido de cautelas para uma realidade que não pode ser escamoteada. O país está a ser vítima permanente deste saque desmedido! Angola não é pertença exclusiva dessas pessoas. Há mais gente e mais vida, para além do MPLA. A Nação não pode ser, simplesmente, enclausurada por um partido político!

A questão é demasiado grave para que se passem paninhos de lã por cima dela. E dela podem resultar consequências de vária ordem, do foro psíquico, inclusive. Leva ao ponto de muitos de nós nos sentirmos atacados por um síndrome da vergonha alheia, aquele sentimento de humilhação que nos atinge, por actos praticados por pessoas ou instituições próximas de nós, que têm a ver, de algum modo, com a nossa vida e com a nossa dignidade. No nosso caso, são organizações dirigidas por pessoas ligadas a nós, por questões patrióticas e ideológicas que nos uniram no princípio. Trata-se de indivíduos que não têm sabido honrar nem a memória nem a vida presente de altas figuras e outros responsáveis; de combatentes que no calor da guerra edificaram este país, criaram uma Constituição, criando também e com sacrifício as demais instituições, as empresas angolanas, construindo os alicerces da riqueza, do respeito universal, com base na honestidade e na decência, com o pensamento voltado para uma futura sociedade civil justa e tendo em vista a edificação do Estado Democrático e de Direito. A que já deveríamos ter chegado.

Com eles clamamos, orgulhosamente e bem alto, pelos quatro cantos de Angola, a palavra de ordem de marca registada: Um só povo, uma só nação!

Ora, foi precisamente daí que adveio o nosso maior problema. Infeliz e compreensivelmente, vindo da luta nas matas, do maquis, que se expandiu e desenvolveu na actual sociedade urbana. Foi esse redutor pensamento de que para além de nós não existia mais ninguém. Erro crasso, que ao longo dos anos, fomos pagando caro. Os assassinatos e barbaridades em tempo de guerra estão registados a ferro e fogo na nossa história, com o mesmo impacto e violência plasmado no currículo de todas as organizações independentistas angolanas. Não colhe, por isso, qualquer referência a distinguir umas das outras. Não existem inocentes nestes processos, e resta-nos aceitar a realidade dos factos. Há ainda, para além de nós, outras realidades. Há, sim, milhões de outros compatriotas, com os mesmos direitos, o mesmo sentimento de pertença, com o mesmo passado de luta, com o mesmo direito de serem felizes. 

Face ao exposto, assiste-me ainda o direito de dizer que não é admissível a uma organização com os pergaminhos e o passado glorioso do M; a um grupo que albergou figuras intelectuais de forte personalidade e enorme prestígio, patriotas que estiveram na génese da sua criação, enveredar pelo assassinato do carácter de pessoas honestas só pelo facto de não vestirem a nossa camisola. E, ainda, e o mais importante, não conseguir dar um passo em frente, em direcção à plena liberdade dos seus concidadãos e das instituições criadas com a Independência. É triste desconseguir-se tão rotunda e vergonhosamente a implantação da verdadeira democracia em Angola! Não entendo, por muito que me esforce. É frustrante e não estou longe da verdade, quando me confronto com essa nova classe de jovens dirigentes. Buscam permanente refúgio em futilidades, ao mesmo tempo que as suas atitudes não nos desmentem, salvo raras excepções, Mostram, sem pudor, um princípio, idêntico a uma ordem superior para cumprir: dinheiro e poder, para nós, para os nossos e para mais ninguém!

Quero compreender certas posições. A defesa acérrima desse radicalismo redutor resulta nalguns casos, de fortes sentimentos alimentados desde os primórdios da luta de libertação. O patriotismo dos cidadãos dessa época conduziu-os para uma direcção. Esqueceram-se, porque não havia forma de lembrar, naquele tempo antigo e já na modernidade, que no terreno não estávamos apenas nós. Não. Em Angola vivem milhões de pessoas, com os mesmos direitos, as mesmas aspirações, com a mesma esperança de vida. Agora, os contextos são outros, o pensamento da população é diferente e, por isso, é chegada a hora de se virar a agulha.

Hoje fico por aqui. Cumprimento com a vénia de sempre os meus leitores, aguardando o nosso próximo encontro, domingo que vem, à hora do matabicho.

Lisboa, 30 de Abril de 2023

One Comment
  1. Subscrevo totalmente a visão exposta pelo Escritor Jacques dos Santos. Para todos quantos como eu cresceram, lutaram e acreditaram no MPLA desde os primórdios e o glorificaram como um verdadeiro instrumento da restauração da independência, da paz e unidade, dizia, para todos estes crentes, hoje sentimo-nos envergonhados. De repente e quando todos clamavam pela restauração do partido e do país pela mão do novo líder-JLO, vemos o partido transformado num ” antro de ambiciosos, ineptos e ladrões”.

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