“As nossas lágrimas secam porque as deitamos fora, mas o que está dentro de nós nem o tempo consegue apagar. Eu sei de coisas que tu ainda não sabes e tu sabes coisas que eu ainda não aprendi, daí a importância de compartilharmos o que sabemos. Quando soubermos o que se passou em Angola, ela será melhor para todos”.
POR MAKWAKUA PEDRO
Por essa altura, há 47 anos, Luanda vivia um ambiente político ferveroso, que fazia pressupor que algo de grande impacto poderia ocorrer a qualquer momento. Não se sabia ao certo o que seria. Mas, tudo estava muito estranho, e percebia-se até no movimento reduzido quer de pessoas quer de viaturas nessa noite de 26, que algo de grande impacto poderia ocorrer. E com o amanhecer do dia 27, os nossos receios dissiparam-se… Daí para frente instalou-se a confusão. Assistiram-se comunicações inflamadas por via dos órgãos de comunicação social (rádio e televisão sobretudo) contra um grupo de supostos culpados apelidados de fraccionistas e golpistas, a um movimento frenético de viaturas militares e até tanques de guerra, sobretudo conduzidos e apinhados de cubanos patrulhando as ruas, a que se seguiram prisões, perseguições, tortura, mortes, descobertas de cadáveres carbonizados, fugas para as matas, reuniões, comicíos… Compulsados os factos, hoje já não se tem duvidas que estava em marcha um plano de tomada do poder encabeçado por Lucio Lara, Iko Carreira, Onambwe & Cia que deixou um rasto de milhares de angolanos, mas também alguns cidadãos de nacionalidade portuguesa, assassinados e presos. Nem mesmo companheiros de luta foram poupados. E uma dita manifestação de massas em frente à Rádio Nacional na manhã do dia 27, que deveria seguir para o Palácio onde se encontrava Agostinho Neto, sabe-se agora, foi afinal a ‘armadilha’ preparada por esse grupo para pôr em marcha um projecto de ‘depuração’ do MPLA da ala comunista e de suposta protecção de Agostinho Neto, que decorridos 47 anos, ainda mantém o país refém de uma elite despudorada que se distanciou do povo e se transformou num sistema que faz de Angola sua propriedade.
E foi assim que iniciou a execução do plano macabro do golpe de estado:
Na sombra do descontentamento social e da expectativa de uma revolução bem sucedida, foi preparada uma operação de forma encoberta, sistemática, e meticulosa, coordenada por um conjunto diversificado de grupos, com funções e objectivos precisos.
O primeiro passo foi a formação de um grupo de vigilância, encarregado de fazer o levantamento da conjuntura, estudar cuidadosamente o palpitar da nação e identificar as aberturas do sistema. Se os apelidarmos de grupo de levantamento não andaremos longe das tarefas que executaram. Os seus integrantes moviam-se discretamente, reuniram informações e tentaram não levantar suspeitas. Também preocuparam-se em se preparar para mostrar uma imagem externa mais neutra, no meio da Guerra Fria.
Lúcio Lara foi o mentor do golpe
A sua tarefa imediata foi acompanhar todos os acontecimentos políticos em todas as áreas e sectores, avaliando, apurando e fazendo estimativas quanto ao impacto político e esboçando mudanças tácticas para acompanhar a evolução de qualquer situação e influenciar o seu progresso. Levantavam informações nos campos político e social e fixavam manobras dos Grupos de Acção (células do MPLA) directamente ligados a si, principalmente nos sectores de estudantes e intelectuais, operários, função pública e forças armadas, sem esquecer a comunicação social.
Este grupo foi responsável pelo planeamento estratégico, informações e por preparar a elite ascendente para a acção. O líder nacional deste e de outros grupos interligados foi, sem dúvidas, Lúcio Lara. A equipa do comandante Iko Carreira produzia os trabalhos tácticos e estratégicos e fornecia as directrizes, acabando por criar um calendário para a acção. Estes e alguns outros proporcionaram a estrutura organizativa e de planeamento político da elite ascendente, e também a sua rede de informações. Desenvolveram as tarefas civis e militares necessárias para a campanha do golpe.
Com a colaboração dos seus “oficiais” militares (DISA) e civis, este grupo estabeleceu, em 1976, um sistema de informação para controlar a influência “comunista” no interior do MPLA e para distribuir as informações, de forma regular, aos seus homens-chave e demais pessoal que consideraram importante. Compilaram dossiers dos indivíduos que consideravam comunistas e identificaram-nos numa estrutura supostamente subversiva. Fazendo parte da equipa o director do jornal oficial, da TV e da rádio, produziam actividades diárias de propaganda na imprensa, de forma sistemática.
No grupo de oficiais militares que colaboravam com Iko Carreira na sua actividade conspirativa encontravam-se o Ludi, o Onambwé, o Ndozi, o Delfim de Castro, o Hélder Neto – dar a maior atenção à actividade deste homem e da sua equipa em todo este processo, quando abrirem os arquivos! –, o José de Matos, …, contando também com a perícia dos seus membros.
Havia outro grupo que operava na linha da frente da preparação da acção, ajustando estrategicamente as narrativas e amplificando o descontentamento através de meios subtis. Os seus esforços visaram semear as sementes da dissidência e reunir os desiludidos em torno de uma causa comum, já assumida pela protoburguesia ansiosa de poder, tudo isto sob o disfarce de um discurso público legítimo. A função deste grupo era a manipulação da opinião pública por todos os meios disponíveis, dissimulando os objectivos a que se propunham.
Para dissimular o seu verdadeiro propósito utilizaram palavras como “divulgação”, “revolução”, “as lagartixas”, “ninguém toca no velho”, … A conquista da opinião pública nacional e internacional era a essência da sua acção política, principalmente a cubana. No que respeita à opinião pública nacional, a projecção de doutrina também implicava na guerra psicológica e ideológica que este grupo moveu, também como actividade de suporte a outros grupos responsáveis pela mobilização militar e a grupos da classe média.
Campanha de guerra psicológica organizada
No domínio da guerra da informação, se formou um grupo que tratava de publicações, mais ou menos regulares, como a voz do movimento do golpe em preparação, divulgando propaganda e material incendiário para alimentar as chamas dos seus objectivos escondidos. Operando através de canais oficiais, mas de forma anti estatutária e anti programática, visaram militantes honestos, trabalhadores e grupos demográficos (dos bairros periféricos) importantes para espalhar a sua mensagem e desestabilizar as estruturas de poder ligadas a si, já existentes (Grupos de Acção, Comissões Populares de Bairro). O grupo tentava alcançar o apoio de grupos apáticos ou de quem pudesse ser útil às metas da elite burguesa nascente/crescente. Disseminava material impresso e visual com a mensagem ideológica “apropriada” aos seus interesses de classe. Conduzia com perícia uma campanha de guerra psicológica organizada. Sempre que possível, distribuía material cuidadosamente anticomunista, manipulavam informação operacional através de órgãos de informação internacionais (Vida Mundial, Afrique-Asie, Expresso, O Jornal, Página 1) e artigos elaborados por agências especializadas.
A abundância de literatura marxista nas nossas livrarias era óbvia a qualquer observador. O que aconteceu a seguir ao golpe de estado? Acabaram com a literatura revolucionária nas livrarias e prenderam os livreiros (Centro do Livro Brasileiro e Lello); institucionalmente, deixaram de utilizar termos como “luta de classes”, “esquerda”, “direita”, “classes sociais”, “modo de produção”, “forças produtivas”…
Por último, mas não menos importante, formou-se um grupo que serviu de centro da luta ideológica da operação golpista, aprofundando-se na conspiração contrarrevolucionária e elaborando a sua visão para o futuro. Este grupo era composto fundamentalmente por intelectuais e estrategas, e foram os homens da moral anticomunista e da orientação estratégica necessária para conduzir o seu movimento ao objectivo que traçaram.
Este grupo produziu ainda análises com objectivos definidos, limitados e tácticos, visando obter resultados a curto prazo. Era a guisa ideológica da contrarrevolução no interior do MPLA. A instabilidade política e social gerada por estes grupos criaram um campo fértil para a demagogia, que muito bem souberam utilizar.
Esta intrincada rede de colaboração envolveu elencos diversificados de personagens, que vão desde civis a militares, de extremistas de direita a tradicionalistas, alguns deles com experiência feita em países que os receberam no decurso da primeira luta de libertação nacional (Argélia, Zaire, Congo, Tanzânia). Unidos pelo desejo partilhado de resistir à mudança, estes grupos díspares trabalharam cada um desempenhando o seu papel no esquema do almejado golpe de estado. À medida que as forças de resistência popular foram dando passos para que se conseguisse executar o Programa Maior do MPLA, as forças sombrias constituídas por estes grupos foram montando o cenário para a convulsão que iria remodelar o curso da história de Angola, a 27 de Maio de 1977.
A direita do MPLA, nos anos imediatamente após a independência, visou substituir a burguesia colonial, defender sistemas tradicionais de poder, autoridade e privilégios que foram desafiados por mudanças económicas, sociais, políticas e culturais. Utilizaram tácticas violentas e opressivas para suprimir diferentes (dos seus) olhares sobre a realidade, intimidaram quem pensava diferente e protegeram os seus interesses de classe. Seguiram pelo caminho do autoritarismo, do nacionalismo estreito e da preservação de hierarquias baseadas na etnia e na cor da pele. Visaram grupos marginalizados, propagaram discursos de ódio (vejam o Jornal de Angola da época) e minaram os processos democráticos populares, nos seus esforços para resistir à mudança progressista.
Iko Carreia e Agostinho Neto eram sócios numa empresa de colecta de diamantes
Estes tradicionalistas, de direita, no seu percurso de contrarrevolução, procuraram preservar instituições, valores e normas sociais de longa data (se entenda: coloniais) que estavam, cada vez mais, sob ameaça de mudança ou convulsão. Resistiram aos movimentos progressistas e às reformas para implementação do Programa Maior do MPLA, com o objectivo de defender a sua condição de classe e os seus privilégios. Estes nacionalistas-estreitos implementaram políticas conservadoras, promoveram políticas tradicionalistas e trabalharam para suprimir e reverter quaisquer mudanças que se alcançaram no sentido da transformação social (por exemplo, o Poder Popular), acabando por estabelecer uma sociedade neocolonial – que existe hoje no seu melhor.
A doutrinação através da mídia era uma medida basicamente neutralizadora. Visou lançar ou fortalecer atitudes e pontos de vista tradicionais, de direita, e estimular percepções negativas sobre o grupo defensor da democracia popular e do socialismo. Como aspecto positivo, podemos referir que argumentaram que a propriedade no país e a melhoria dos padrões de vida do povo se deveram à intervenção do Estado na economia. Por outro lado, utilizaram uma grosseira propaganda anticomunista, mascarando-a de luta contra um pretenso e inexistente fraccionismo.
Através da doutrinação específica e da opressão, a direita do MPLA tencionava moldar a consciência e a organização de outros sectores e envolvê-los na acção como uma “classe para si”, enquanto consolidava a sua liderança política dentro da elite dominante. Chegou mesmo a haver apelos individuais como, por exemplo, o de Lúcio Lara a José Vandunem, conforme publicação feita pela sua família, aquando da comemoração do 70º ano do seu nascimento. Tomava esta atitude, objectivando unir o emergente bloco do poder em torno do seu programa específico e não do Programa do MPLA. Para além do mais, o objectivo geral era modelar os vários grupos das classes dominantes e diferentes grupos sociais das classes médias num movimento de opinião, com objectivos a curto prazo amplamente compartilhados, ou seja, o afastamento compulsivo de Nito Alves, dos seus companheiros comunistas e contenção da mobilização popular.
O Jornal de Angola, dirigido por Costa Andrade (Ndunduma), dedicado à disseminação ideológica da direita, tinha como objectivo ocupar o centro da discussão ideológica e política, utilizando o terror nos seus tristemente famosos editoriais “Bater no ferro quente”. Esta mesma situação também existiu na Rádio Nacional, onde pontificavam Orlando Rodrigues e Rui de Carvalho, pela voz de Francisco Simons e mesmo Manuel Berenguel, por vezes lendo os editoriais de Costa Andrade, outras vezes divulgando os seus.
Estes grupos diferenciados integraram, de forma compartilhada e solidária (em reuniões em casa do Júlio de Almeida – Jujú –, numa casa no largo por trás das instalações do antigo Diário de Luanda, em casa do Iko Carreira, nas instalações da RNA e da TPA e em casas clandestinas), indivíduos como Lúcio Lara, Iko Carreira, Carlos Rocha (Dilolwa), Ludi, Onanbwé, Hermínio Escórcio, Ndozi, José de Matos (Matos Grosso), Costa Andrade (Ndunduma), Júlio de Almeida, Luandino Vieira, Orlando Rodrigues e Rui de Carvalho, Henrique Abranches, Artur Pestana, Hélder Neto, António Carlos, Pizarro, Cruz, Manuel Rui, João Abel, Mário Nelson, Henrique e João Beirão, Agante, Henrique Morais, Francisco Simons. Alguns destes participavam como meros executores e/ou municiadores de informações para análise e uso pelos estrategas.
Depois do 27 de Maio de 1977, o país radicalizou as formas da sua interpretação. Tornou-se uma nação dividida em dois países: o país oficial e o país real. O primeiro é o que existe para a elite dominante e seus aliados; o segundo é aquele a que pertence e vive o nosso povo.
O país oficial, tal como é representado pelo governo estabelecido e instituições, tenta retratar uma visão polida para o mundo, mostrando estabilidade, prosperidade e unidade. Esta visão do país reflecte-se em declarações oficiais, propaganda e eventos públicos. São mentirosos que mentem por amor à arte, compulsivos, mas é um amor que prejudica a maioria da população. Por outro lado, o país real, tal como é vivido pela nossa população, revela uma narrativa diferente, marcada por desigualdades económicas e complexidades culturais. Para ajudar a conhecer o país real, na mistura de interesses políticos com empresariais, como exemplo, já Iko Carreia e Agostinho Neto se associaram numa empresa de colecta de diamantes, a CABIE, com sede no bairro das Ingombotas – um tema para investigação jornalística.
Quando os membros do governo misturam interesses políticos com interesses empresariais, leva a diversas consequências negativas, incluindo: Conflito de interesses: os interesses pessoais ou financeiros de membros do governo em empresas, faz com que tomem decisões em seu interesse, em detrimento do bem público e minam a confiança e a integridade desse governo.
Nito Alves e companheiros eram contra o conflito de interesses políticos e empresariais
- Corrupção: a mistura destes interesses políticos e empresariais leva à corrupção, onde os seus funcionários usam o seu poder para ganho pessoal, aceitam subornos e luvas em troca de tratamento preferencial. Falamos dos tempos imediatamente após a independência…
- Prejuízo da concorrência leal: a utilização das suas posições em interesses comerciais cria vantagens injustas para si e para os seus associados, distorcendo o funcionamento da máquina sócio empresarial, principalmente quando se tratava de criar e gerir e rentabilizar empresas estatais.
- Perda da confiança pública: quando o público percebe que os membros do governo estão a agir no seu próprio interesse e não no melhor interesse da população, isso mina a confiança nas instituições governamentais e no Estado.
- Políticas ineficazes: a tomada de decisões influenciada por interesses comerciais pessoais, em vez de considerações políticas baseadas em evidências que atendam às necessidades da população, as políticas tornam-se ineficazes e prejudiciais à sociedade.
Globalmente, a atitude nociva daqueles governantes afectou o bem-estar da sociedade como um todo. Nito Alves, José Vandunem e os seus companheiros abordaram e acusaram esta mistura de interesses políticos e empresariais no governo de então, o que teve sérias implicações nas posteriores acusações que lhes fizeram, em vez de ter-se criado mecanismos para prevenir conflitos de interesses e defender a transparência e a responsabilização, numa sociedade que se pretendia democrática e popular.
Estas divergências entre o país oficial e o país real realçam as discrepâncias entre a imagem projectada externamente e a realidade vivida por quem se encerra nas fronteiras físicas de Angola. Compreender estes contrastes é importante para termos uma visão diferenciada da nação, reconhecendo as complexidades que vão para além das aparências em que nos tentaram e tentam fazer querer.
Para terminar, quero dizer que as nossas lágrimas secam porque as deitamos fora, mas o que está dentro de nós nem o tempo consegue apagar. “Eu sei de coisas que tu ainda não sabes e tu sabes coisas que eu ainda não aprendi, daí a importância de compartilharmos o que sabemos. Quando soubermos o que se passou em Angola, ela será melhor para todos”.
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