27 DE MAIO DE 1977. O SILÊNCIO NÃO LIBERTA NEM SERVE A RECONCILIAÇÃO

Não há nenhuma borracha que apague o passado, mas temos lápis para, no presente, poder traçar o futuro.

NOTA DA REDACÇÃO

Decorridos 47 anos, mas ainda condicionados pelo medo da verdade ou pelo peso do sentimento de culpa que os vencedores sob protecção do MPLA ainda carregam, Angola tem no 27 de Maio, uma data que assinala dos mais sangrentos capítulos da sua história do pós-independência. 

Porque nos temos engajado em DESAMARRAR o passado, apesar da falta de contribuição dos vencedores do conflito entre dirigentes e militantes desse movimento (na altura), que acabou por ceifar a vida de milhares de inocentes que não tinham sequer qualquer relação com as ‘makas deles’, trazemos hoje e até ao dia 27 de Maio, mais três contribuições de sobreviventes da purga, que publicaremos, de forma alternada.

Como fazemos referência também, embora tenhamos vivenciado esse percurso, não somos actores nem juízes, e gostaríamos de ouvir de igual modo o lado dos vencedores, ainda que, sem recurso à divulgação da identidade. Mas, infelizmente, por amarras colocadas pelo próprio Sistema, a quase totalidade dos envolvidos e integrantes da tenebrosa DISA, não se têm disposto a contribuir para o conhecimento do que efectivamente se passou. Aliás, é o mesmo Sistema, hoje comandado pelo Presidente da República, João Lourenço (que é também o presidente do MPLA), que depois de ter feito uma espécie de ‘meia-culpa’, joga agora com os ‘mortos dos outros’ para tirar dividendos políticos em seu benefício. Uma atitude de falta de carácter e de compromisso com a Nação, que tem demostrado, que ainda estamos demasiado longe da verdadeira reconciliação e da reciprocidade para o perdão sincero, já que, esquecer, fica mesmo extremamente difícil.

Assim, hoje, trazemos uma incursão à história desse passado que tem como epicentro a então direcção do MPLA, onde a tal questão do fraccionismo se colocou e aquilo que uma das partes considera de intentona para a tomada do poder liderado por Agostinho Neto, e a outra parte tem como uma manobra de limpeza que permitiu a uma elite, sentar com maior conforto no poder, tendo Agostinho Neto como uma espécie de troféu e suporte. Um exercício embebido no espírito nacionalista de então e com grande pendor revolucionário daqueles tempos em que os americanos eram “o inimigo imperialista”, feito  por Kamutungo Salupeka.

De seguida, publicaremos outro trabalho também relacionado com o 27 de Maio, mas que aborda a questão da “Direita orgânica do MPLA: organização para a acção”. Encerraremos esse ciclo, com um texto que tem como título “A morte dos comandantes no dia 27-05-1977”.

Siga-nos em mais esta incursão.

A editoria 

POR DENTRO DA HISTÓRIA DO MPLA, DO FRACCIONISMO E DO GOLPE DE ESTADO

POR: KAMUTUNGO SALUPEKA 

O Nacionalismo 

Quando os movimentos nacionalistas nas colónias portuguesas iniciaram as suas incursões, os revolucionários portugueses justificavam a dificuldade da luta nas colónias contra a dominação, argumentando que só a revolução socialista na metrópole colonial tornaria possível a revolução nas colónias e, consequentemente, as suas independências. Esta situação prejudicou, inclusivamente, a actividade de um Partido Comunista em Angola e algum irritante nas relações com os comunistas portugueses. Estes, mais tarde e com o início da luta armada de libertação nacional, evoluíram para uma posição lógica, invertendo o prognóstico pela independência das colónias, a quem passaram a dar todo o apoio. Foram, inclusivamente, os comunistas portugueses que conceberam a fuga de Agostinho Neto, com grandes custos financeiros e dificuldades pessoais, de Lisboa para Marrocos, de onde seguiu para o Congo. 

No plano teórico, colocou-se aos angolanos a questão de defender a “civilização ocidental” ou lutar pela revolução mundial. Na altura, escolheram a luta de libertação, para se constituir efectivamente Nação, no âmbito da revolução mundial. Isto se refere, apenas, a uma parte dos angolanos, os socialistas e os socializantes, que defendiam a autonomia da então província contra a dominação estrangeira. 

A História 

Todos os socialistas estavam de acordo neste particular, porque se algum admitisse na ordem internacional o sacrifício do pequeno pelo grande, justificaria na ordem social, a submissão do proletário pelo capitalista, a opressão dos poderosos sobre os que não se podem defender (Manuel Ugarte: 1924). 

Na história da luta de libertação, do pós colonialismo e da proclamação da independência de Angola, quais os líderes que tiveram maior base de suporte popular? É importante abordar esta questão com alguma cautela e respeito, porque é simplista e injusto atribuir a popularidade de líderes políticos, exclusivamente sustentando o baixo nível ideológico da população, embora não se deva ignorar a influência desse factor. 

A formação da base popular de qualquer líder resulta de diversos factores, incluindo o seu carisma, habilidades políticas, liderança carismática, políticas públicas implementadas (quando aplicável) e as circunstâncias históricas específicas do país. Em Angola, durante o período de luta pela libertação do colonialismo português, houve vários líderes com uma forte base popular. Alguns dos líderes mais notáveis foram: 

a)  Agostinho Neto, considerado o primeiro presidente de Angola, liderou o MPLA na luta contra o colonialismo português; conquistou uma base significativa durante esse período e manteve-se como líder do país até à sua morte em 1979; 

b) Holden Roberto, como líder da FNLA, também teve seguidores durante o período da luta de libertação. Entretanto, a sua influência política diminuiu significativamente após a independência, e durante a guerra civil que se seguiu;

c) Jonas Savimbi, líder da UNITA, também ganhou um apoio considerável durante o período da luta de libertação; após a independência de Angola, liderou o seu movimento numa guerra civil prolongada contra o poder exercido pelo MPLA, obtendo apoio de significativas franjas da população, mas sobretudo nas regiões centro e sul. 

É importante ressaltar que a política é uma matéria complexa, e a popularidade dos líderes pode variar com o tempo e as circunstâncias. Além disso, a participação da população na luta pela libertação não pode ser simplificada ou subestimada. Muitos angolanos engajaram-se activamente na luta pela independência e, ao longo dos anos, foram-se esforçando por uma participação política consciente e informada. 

Um grande exemplo que podemos descrever é o de Neto que, durante a luta de libertação, teve, eventualmente, o seu período de maior popularidade, tendo-a reduzido depois da independência, como consequência da execução de políticas públicas e as mortes que ordenou, tendo-se tornado, alguns anos após a sua morte, quase totalmente ausente do sentimento das grandes massas angolanas. 

O nacionalismo de Neto, somado ao paternalismo e ao ‘bonapartismo’ desempenharam um papel crucial para lhe assegurar o apoio das diferentes formações sociais (classes e grupos sociais) na condução do MPLA e de Angola. 

O paternalismo caracterizou-se por uma relação de dependência e protecção do Estado em relação a determinados cidadãos. Neto utilizou esta estratégia para ganhar o apoio das camadas mais pobres da sociedade angolana, prometendo melhorias nas condições de vida e protecção contra a exploração e opressão, acrescido de programas de redistribuição de terras, o que ajudou a conquistar a lealdade de muitos angolanos que ansiavam por uma mudança nas estruturas sociais e económicas. Durante a luta de libertação ocorreu a fase do Pro Mato. Seguidamente, Neto enveredou pela fase do PROMETO

O inicío da apropriação do Estado por uma burguesia

No seu ‘bonapartismo’, Neto adoptou a sua característica de líder carismático, colocado acima das divisões de classe. Posicionou-se como unificador que procurava a conciliação entre os diferentes grupos étnicos e classes sociais. A sua base de apoio, em determinada altura, foi ampliada. 

Paralelamente, o sector nacionalista revolucionário sentia as transformações e contradições entre os diferentes grupos e classes sociais, inicialmente abrandadas pela identidade de interesses, mas que começaram a agravar-se. Estas contradições residiram principalmente na forma como as políticas eram implementadas, em desacordo com o nacionalismo revolucionário que pregava, a independência total e a soberania nacionais como resultado da mobilização e da participação populares. Malgrado a existência do Poder Popular, este nacionalismo foi-se contrapondo ao poder centralizado nas mãos de Neto (limitando a voz e a participação de outras forças políticas e sociais, mesmo no interior do MPLA) e à relação desigual de poder, na qual as massas eram vistas como dependentes e incapazes de agir por conta própria(1). Esta dinâmica contradiz, em absoluto, o nacionalismo popular e revolucionário. 

No mesmo sentido (da contradição) a burguesia nativa foi, gradualmente, seduzida pelas aparentes vantagens oferecidas pelos monopólios internacionais, experiência já vivida nos países africanos independentes por onde passaram muitos dos membros da direcção política do MPLA. Além disso, essa burguesia assustava-se com os progressos das forças populares, resultado do confronto de classes, em fase de contenção difícil. À burguesia apenas interessava a unidade sem luta de classes. Para a elite nativa, a propriedade era condição de direito político e social. Tinham começado a apropriar-se da Nação. 

Como dizia Lenine, “a burguesia coloca sempre em primeiro lugar as suas reivindicações nacionais e as defende de forma incondicional; o proletariado as subordina à luta de classes. Para as classes trabalhadoras, a unidade com os grupos burgueses é temporária e limitada”.

Por outro lado, os interesses do imperialismo coincidiam com os interesses dos sectores que se tornaram anti nacionais cultural e economicamente. Assim, o nacionalismo sem luta de classes estava a tornar-se uma forma de alienação. Em Angola, a institucionalização do Poder Popular também significou a luta de classes, que os candidatos a burgueses do MPLA liquidaram, assassinando. O que o nacionalismo das categorias sociais exploradas fez, foi denunciar o nacionalismo-de-todos, encapuzado de nacionalismo ‘bonapartista’. 

Quanto à consciencialização política, os caminhos foram diversos. As classes médias, “em especial os intelectuais, politizaram-se através de estudos e debates. Os políticos convencionais evoluiram, chegando a posições revolucionárias, através do contacto com o povo, assumindo as suas reivindicações e lutando por elas”, declara Paulo Schilling. Para Nito Alves e José Vandunem, os processos de consciencialização política foram fundamentais para o fortalecimento das convicções e propostas de mudanças políticas na sociedade angolana. 

A vinculação entre Nito Alves e as massas populares produziu resultados altamente satisfatórios, nos dois sentidos: sensível às aspirações populares, ao seu inconformismo, ao seu espírito revolucionário, Nito foi afirmando as suas próprias convicções políticas e sociais.

Com o decorrer do tempo, foi clarificando as aspirações revolucionárias e populares do povo angolano, com clareza, logo à partida, começando na definição do tipo de república a estabelecer na Angola independente: a República Popular. 

Através de estudos e debates em que participou, por vezes em companhia de José Vandunem, Nito Alves disseminou conhecimentos sobre os diferentes sistemas políticos, entendimento das ideologias e compreensão das consequências das decisões tomadas pelos líderes políticos. O estudo aprofundado sobre estes temas proporcionaram uma base sólida de informações, permitindo uma análise crítica e fundamentada das questões e problemáticas que afectavam a sociedade angolana. Nos debates, acorreram trocas de ideias e de opiniões, proporcionando o ambiente próprio para a construção de argumentos lógicos e para o desenvolvimento de pensamento crítico, tão necessário no período pós-independência. 

Entretanto, a intervenção política não se deve restringir ao estudo e aos debates. Também se torna necessário o contacto directo com a população, principalmente a mais carenciada: ouvir as reclamações e necessidades da população, é essencial para entender as realidades vividas pelos diferentes grupos sociais, e procurar soluções que atendam aos interesses colectivos. 

Assumir as reivindicações do povo implicava uma acção política comprometida com a promoção do bem comum, colocando os interesses da população em primeiro lugar. Ao tomar conhecimento das reivindicações e estar em sintonia com a voz do povo, Nito Alves propôs mudanças e políticas públicas que impactassem na sociedade como um todo(2). Esta atitude promovia uma sociedade mais participativa e engajada, capaz de compreender o seu papel activo no processo que se pretendia revolucionário e popular, e a buscar transformações que reflectissem as necessidades e aspirações da população explorada. Na verdade, foi Nito Alves quem defendeu dentro do MPLA e publicamente: “É no terreno da economia que reside a questão fundamental de um povo que se quer libertar”. E este foi um dos temas que fez a corda rebentar, a desfavor dos explorados, dos mais necessitados. 

O dilema de Lúcio Lara e a aliança de maoístas e sociais-democratas

Na cultura política heterogénea e contraditória, com envolvimento mesclado do nacionalismo e do populismo, estiveram outros líderes, que acabaram por reflectir diferentes visões e perspectivas da sociedade em relação à política e à identidade nacionais. 

O nacionalismo, na sua forma mais básica, pode ser entendido como um sentimento de lealdade e pertença a uma nação. Pode ser um instrumento poderoso para unir as pessoas em torno de um ideal comum, fomentando o orgulho e a identificação com a cultura, a história e as tradições de um país, de um povo. Entretanto, quando extremado, pode levar ao exclusivismo, ao isolamento da organização face às massas populares e ao desrespeito pelos direitos das populações e pela diversidade cultural. 

O populismo, na sua essência, defende a participação popular e a democracia directa, visando uma maior igualdade social e a garantia de direitos. Mas, normalmente, o populismo tende a simplificar questões complexas, promovendo soluções rápidas e simplistas para problemas estruturais, o que leva a políticas ineficazes e divisões sociais. 

Assim acontece sempre que estes dois factores são instrumentalizados de forma perigosa, agravado pela falta de estudo das questões objectivas e subjectivas. Aqui estiveram juntos, em santa aliança, os maoistas e os sociais-democratas.

É importante ter em mente que a política não é um fenómeno estático, mas sim fluido e sujeito a mudanças e transformações. Para que esta dinâmica se reflicta na sociedade de forma positiva, é necessário o diálogo aberto e respeitoso para que se alcance o equilíbrio entre a defesa dos interesses nacionais e a promoção de justiça social. Este foi o dilema de Lúcio Lara. Não conseguiu o equilíbrio, nem estudava… 

Entre as causas da crescente diferença entre Nito Alves e Lúcio Lara deve ter desempenhado um papel fundamental, a origem de classe e o processo de formação. Inicialmente, estas diferenças podiam não se notar pela distância que os separava – a geografia no decurso da luta de libertação -, pela área de actuação e pelo objectivo imediato comum: a independência política. 

Lúcio Lara e Agostinho Neto tinham uma posição ideológica comum, mas que se diferenciava no modo de actuação. Seguiram caminhos semelhantes em termos de consciencialização política. Ambos passaram por etapas importantes nas suas vidas, que os levaram ao envolvimento na luta de libertação de Angola; ambos receberam educação superior formal; ambos tiveram oportunidade de entrar em contacto com ideias e contextos políticos de diversas partes do mundo; ambos passaram por movimentos de resistência nacionais e outros, nomeadamente pelo MUD-Juvenil, que ambos negaram (pela voz do Lúcio Lara) depois da independência de Angola; compartilharam o desejo de libertação, independência e unidade africana; ambos tornaram-se figuras-chave na história de Angola. Mas actuaram de formas distintas. 

Agostinho Neto foi tranquilo, diplomático, persuasivo, habilmente intrigante, mestre em jogadas e complots políticos. Lucio Lara acompanhava-o, operacionalizava os seus complots, mentia, «mostrando-se» por vezes revolucionário; votou contra a criação do Partido do Trabalho, supostamente marxista-leninista, criado por Agostinho Neto que, embora com as suas contradições classistas, o gerou, e poderia servir como ferramenta para que o MPLA pudesse seguir, construindo uma democracia popular, prosseguindo para o socialismo. 

Nito Alves, pelo contrário, foi concertante, lutador, homem de acção e de atitudes frontais, diligente, de linguagem directa, dura, sabia falar para intelectuais e para gente comum, com uma enorme capacidade de transmitir os seus entusiasmos e as suas ideias ao povo. 

De forma franca, a diferença fundamental entre Agostinho Neto e Nito Alves resumia-se no seguinte: Agostinho Neto, foi homem de complots; Nito Alves, foi líder de massas. Se não tivesse ocorrido a sua separação forçada por circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas, se tivessem actuado sempre juntos, dificilmente seriam derrotados. 

Mas, depois de muitas lutas intestinas, a ruptura parece ter-se tornado inevitável. Agostinho Neto, coerente com a sua situação e interesses de classe e fiel ao seu temperamento aparentemente conciliador, tratou de seguir populista, junto a Lucio Lara, sem considerar a luta de classes e a impossibilidade de ter resultados benéficos para o povo. Sempre envolvido no PROMETO.

Nito Alves, consequente com as suas origens e cuidando de ser fiel aos anseios das massas populares, tratou de dar dimensão à limitada, confusa e contraditória política de Lucio Lara e de Agostinho Neto, principalmente em relação à organicidade, ao nacionalismo e a certas posições estatizantes, mas não socialistas, tão pouco socializantes. 

O jornal oficial, único na altura, e a rádio, única também, considerava Nito Alves um malfeitor, “uma lagartixa”, como diziam no seu vocabulário zoológico. Nito Alves começou a vivê-lo, na prática. Os livros eram a única referência sobre este facto biológico.

Os EUA reforçaram o lançamento do seu veneno, mesmo a nível local, com o reforço de agentes nativos. A nível internacional, também preparavam 5 mil brasileiros para intervir directamente em Angola. Luanda tornou-se o assentamento preferencial para os ianques. A actuação do imperialismo tornou-se evidente para uma grande massa da população e não apenas para os comunistas. 

Contra tudo e contra todos, o período compreendido entre Abril de 1974 e Maio de 1977 foi, indiscutivelmente, o mais rico da história recente do povo angolano. 

Agostinho Neto foi um demagogo populista

Se Agostinho Neto tivesse pensado, como a certa altura pareceu, abandonar os seus aliados de determinado período e assumir, no plano interno, uma política progressista, o aliado mais indicado era evidentemente Nito Alves. Lara, Iko, Onambwé, Ludi, Kito, Paulo Teixeira e alguns mais estavam demasiado comprometidos com o imperialismo. 

As posições progressistas de Agostinho Neto, depois da independência de Angola, nunca passaram de palavras ao vento, de uma demagogia populista. 

Pela sua maneira franca, directa de actuar, a sua falta de malícia e, no caso, em razão do seu “amor”, dedicação e respeito por Neto, Nito perdeu a oportunidade da sua vida, que foi também a oportunidade maior do povo chegar ao poder. 

Entre Abril de 1974 e Maio de 1977, Nito Alves, José Vandunem, Monstro Imortal, Bacalov, Sita Valles, Rui Coelho e os seus companheiros encarnaram as expectativas das classes trabalhadoras e dos sectores humildes da população, os núcleos de base do poder popular, as comissões operárias, os anseios de libertação do povo angolano. 

Todo o movimento a favor dos mais necessitados, apesar de ter falhado no fundamental, deixou um saldo positivo. Mesmo sem o povo ter derrotado o golpe militar(3), a divisão que ocorreu dentro dos quartéis provou que o exército não é um todo monolítico, incondicionalmente ao lado das elites dominantes aburguesadas, que pode ser trabalhado politicamente e ganho, pelo menos parcialmente, para a causa popular. 

Precisamos de modificar toda a estrutura económico-social do nosso continente, na convicção de que tudo pode ser feito pela via pacífica, começando pelo nosso país. A primeira empreitada é conseguir que todos aprendam a ler e a escrever, sem parar. Depois, terão de vir a consciencialização e politização populares. 

A tentativa de golpe encenada por Lucio Lara e companheiros

No dia 27 de Maio de 1977, embora o povo tenha acorrido à solicitação para sair de casa, uns dirigiram-se ao Palácio presidencial e outros à Rádio Nacional, de onde partiram apelos. Entretanto, não houve qualquer liderança a tocar a reunir, ninguém assumiu este papel. Foi um programa de rádio que surgiu no comando. Quem o ordenou(4)? Alguém “provocou”, alguém iniciou a manifestação que, embora pensada pelos comunistas, não teve qualquer liderança da sua parte. Podemos concluir que não havia, nem em pensamento, a intenção de golpe de estado por parte dos comunistas. Nem a fatia do exército que os apoiava esboçou qualquer intenção militarista de tomada do poder. Agostinho Neto, Lucio Lara e os seus parceiros terão de ficar com o ónus do golpe de estado que, efectivamente, executaram. 

Neste fatídico dia, a estupefação foi tão grande que a população que saiu à rua não soube defender as conquistas que havia adquirido ao longo do tempo, com tanto custo.

O que se viu foi parte do “seu” exército a disparar contra si, retirando em debandada, deixando umas poucas centenas de corpos prostrados em frente à Rádio Nacional, sem ninguém a dizer-lhes o que fazer e o que havia para defender. E não havia qualquer dispositivo militar para resistir à sanha assassina dos golpistas. 

De uma coisa podemos estar certos: alguém deu ordens, via rádio móvel(5), para que a manifestação avançasse. Quem foi? Os rádios e as frequências eram os mesmos para todo o exército e restantes forças de segurança. A ordem para avançar apenas foi dada à população. Se houvesse qualquer esboço de golpe de estado pelos comunistas, também teriam sido dadas ordens de avanço aos militares. O povo, pelo menos, poderia ter uns “cocktail molotov” para lançar sobre as forças adversárias. Se houvesse ordem para resistir, teria irrompido contenda armada e a história que estaríamos a contar hoje seria bem diferente. O bloqueio das comunicações teria sido outro factor a incluir na operação. Nada disto aconteceu! Os comandantes golpistas não tiveram com quem lutar, pois tudo prepararam com detalhado pormenor. 

O diálogo povo-governantes interrompeu-se completamente! 

Entretanto, o que fizeram os golpistas até hoje, para além de destruírem as infraestruturas; galoparem na inflação; construírem estradas e habitações de vida curta e a preços superiores aos dos países centrais; estádios de futebol a preços exorbitantes, onde se realizaram meia dúzia de jogos e encontram-se ao abandono; professores corruptos, de qualidade pouco acima de zero; estudantes apenas interessados em ter um diploma que para pouco mais serve que para serem disc-jockeys (com excepções, claro); ligação estreita a quem sempre prejudicou a luta pelo desenvolvimento (os ianques). Uma constituição que formaliza a autocracia boçal, imitando algumas “democracias ocidentais” onde “só manda um homem”; os governantes, encerrados nos seus bunkers, rodeados por uma verdadeira barreira de bajuladores e burocratas, se isolam, perdendo a possibilidade de auscultar o sentir popular. As possibilidades das massas populares influírem sobre quem exerce o poder se tornaram mínimas ou mesmo nulas… É preciso reagir! 

Os governantes do nosso país passaram a ser revolucionários só de palavras, continuaram a dar relevo aos problemas do povo, deixando de incitar à luta, mas para a paciência e, em nome desta, orientam a sua acção no sentido de favorecerem os seus interesses pessoais. Precisamos de reagir! 

Quanto aos americanos, que agora surgem como salvadores da “pátria do funje”, podem realizar “quantos programas de alimentos quiserem; autorizar consolidações de dívidas; continuar a nos vender equipamentos financiados; a nos fazer empréstimos e financiamentos de todo o tipo; a única coisa que conseguirão fazer em Angola é enriquecer os grupos estrangeiros, ou fazer mais alguns milionários nativos, enquanto a miséria do povo continuará a aumentar de forma alarmante”

Angola precisa de milhares de escolas e material escolar, agora; de uma reforma estrutural do ensino, já; de uma reforma agrária que ceda terras aos camponeses, hoje; de um programa de industrialização que desenvolva os recursos ociosos e proporcione milhões de empregos, agora. O “Deng Xiao Ping angolano”é um daqueles que tem o desejo de pintar as paredes da casa principal da propriedade agrícola, deixando-a muito bonita, mas ficando ele com a casa principal.

A comodidade conquistada se tornou um hábito. E o medo de perder a propriedade conquistada transforma a sua postura. Não percebe que a casa principal deve ser para instalar a cooperativa. Passou a se apresentar como o João Lourenço da casa principal, em vez do líder populista JLO que tinha chegado ao Palácio da Cidade Alta a prometer luta contra a corrupção. 

Tornou-se um grande obstáculo para a acção das forças populares. Temos que recorrer à denúncia permanente, dificultar a venda do país ao império unipolar e, consequentemente, a corrupção. 

Quem são os angolanos comprometidos com as políticas antinacionais? 

Servir-me-ei das acusações de Brizola no decurso do golpe militar fascista de 1964 no Brasil, adaptando-as. 

São aqueles que integram a casta de privilegiados, que usufruem mais direitos do que os usufruídos pela grande maioria do povo angolano, embora a lei a todos declare iguais; são aqueles que, encostados às suas posições, não se sentem obrigados a um mínimo de solidariedade ou dever para com o povo deste país. 

São aqueles que, em pleno século XXI, brandem as teses do liberalismo económico, ocultando o seu egoísmo antissocial, a sua ânsia desumana de riqueza, a sua desarvorada sede de poder económico e político. 

São os que defendem a apropriação indevida de terras e, quando falam em liberdade, não estão a defender senão a sua liberdade de continuarem ricos num país de pobres(6). E quando falam de segurança, não pensam senão na estabilidade dos seus negócios, enquanto o resto da Nação se afunda na incerteza, no temor, no medo, atormentado pela insegurança e falta de perspectivas materiais. 

São os sócios directos ou indirectos do processo internacional de exploração. São, moralmente, insensíveis. São os que fazem o seu bem-estar, mesmo vendendo as suas consciências, como instrumentos dos que exploram o nosso povo. 

São os que, para manter os seus interesses, nesta hora cheia de inquietações e sinais inequívocos de inconformismo popular, não sentem qualquer escrúpulo em apelar à intervenção estrangeira, sem reservas ou um mínimo de cautela, entregando o povo angolano indefeso, amarrado de pés e mãos ao domínio e à exploração dos grupos nacionais e corporações internacionais… 

Se a revolução tivesse triunfado em Angola, as classes que a traíram estariam afastadas da condução do poder, teria vingado o caminho socialista. Só com medidas libertadoras do povo em permanente empobrecimento consegue se resolver o problema da opressão imperialista. Vejamos: se quisermos pôr em ordem os móveis de uma sala mas, pela porta aberta, alguém os estiver a roubar, chegaremos ao momento em que não teremos móveis para colocar em ordem; assim, antes de mais, a primeira medida terá que ser fechar a porta, acabar com a exploração. Que caminho seguir: revolução ou contrarrevolução? Para acabarmos com as relações de produção que se caracterizam pela exploração, só poderíamos seguir o caminho socialista, o da revolução. 

Para que este caminho fosse seguido faltava um elemento fundamental: um partido popular revolucionário. 

Em Angola, colocou-se a questão da necessidade de criação de um partido que enquadrasse as classes e grupos sociais que não tivessem traído a revolução e depurasse quem houvesse assumido a posição inversa. Da solução correcta desta questão dependeria o futuro da revolução angolana. 

“Como sempre, no mundo da revolução socialista, as divergências que separam a ala direitista de um lado e a esquerda do outro lado, manifestam-se imediatamente no que respeita aos problemas de organização […](7)”. “…Antes de nos unificarmos, é necessário delimitar os nossos campos”(8). 

Tornou-se, pois, necessário definir que partido criar, em que moldes organizativos e com que base ideológica. E “o Comité Central não recebeu do povo angolano, dos trabalhadores angolanos, o mandato de esconder desse mesmo povo os seus inimigos […] Se a linha oportunista de direita não for derrotada e os seus defensores expulsos, é inútil e demagógico continuar a falar em partido marxista-leninista…”(9). 

Tornou uma luta feroz no interior do MPLA, em confronto directo com os caudilhos. Estes não estavam interessados em criar e se enquadrar em organizações políticas ideologicamente definidas e disciplinarmente estruturadas. Pensavam que com a organização perdiam parte do seu poder de decisão. Contrariamente, com a organização, um líder popular multiplica o seu poder, as suas possibilidades de interagir com o povo, de chegar ao governo e de fazer a revolução. Estes foram os factores de que a direita se serviu para antecipar o golpe de estado ao I Congresso do MPLA. 

O MPLA nunca foi um partido de massas. Foi uma contrafação

Ao sobrevalorizar a sua força e o seu prestígio pessoal e por acreditar no espontaneismo das massas, os líderes populares não-marxistas (oportunistas, ecléticos) se negam a organizar o povo em movimentos autênticos e politicamente poderosos.

No meio de toda esta confusão se tornou impossível que o MPLA pudesse defender, simultaneamente e com autenticidade, os interesses da elite nativa-burguesa ascendente e dos trabalhadores. O partido acabou por ser formado, mascarado de marxista-leninista, sem marxistas nem leninistas(10), fracassando completamente a missão de ser um partido de trabalhadores. Ideologicamente indefinido, organicamente invertebrado, com a sua direcção sempre nas mãos de indivíduos originados de todas as classes sociais, proletariado excluído, o MPLA-Partido do Trabalho nunca foi um partido de massas. Foi uma contrafação. 

Do ponto de vista ideológico, nunca se assumiu na prática. O seu Programa era uma mistura de nacionalismo diluído, de vagas ideias socializantes e de populismo. Com Lúcio Lara a comandar a parte organizativa do partido, de forma horizontal, um indivíduo que votou contra a formação do tal Partido do Trabalho no I Congresso, nem tentativas de dar maior conteúdo programático à organização se realizaram. O Partido do Trabalho, em Angola, até teve uma vida efémera, voltando à fase de movimento, chefiado pela direita golpista. 

Com o decorrer do tempo, o MPLA situou-se no mesmo plano ideológico da UNITA e da FNLA e, por vezes, mesmo à sua direita. Entretanto, Angola apenas teve um movimento de massas com base numa ideologia revolucionária e popular, capaz de se estruturar num partido revolucionário marxista-leninista, durante um curto período. Mas, a partir de Maio de 1977, as condições para fazê-lo esboroaram-se… 

Ainda há a considerar que a corrupção existente desde o consulado de Agostinho Neto, e tendo prosseguido com os seus herdeiros, foi mais um importante factor a contribuir para o processo de consolidação da direita no poder. E, atacando a corrupção em Angola, é o nosso país que estamos a defender. 

Bibliografia consultada

1 Chegaram ao ponto de defender (Lara, Onambwé, Manuel Rui, Saydi, entre outros) que o povo angolano, devido à sua iliteracia, seria incapaz de votar. 

2 A Lei do Poder Popular e as suas consequências é apenas um exemplo. 

3 O golpe perfeito. 

4 Temos hoje indicações que pode ter sido Neto, com quem um dos organizadores do programa ressuscitado partilhava refeições. 

5 Naquela altura não havia telemóveis. As comunicações eram via rádio FM. 

6 A pobreza se tornou tão abrangente em Angola que uma parte importante da classe média se tornou tão pobre, que os ricos nativos fazem chacota os apelidando de “pobres armados em besta”. 

Alves, Nito; 13 Teses em minha defesa; Elivulu; p. 145. 8 Lenine, citado por Nito Alves, p. 145. 

9 Alves, Nito. Op. Cit. p. 149.
10 Tinham sido previamente eliminados fisicamente. 

One Comment
  1. Gostei do artigo e citei em um trabalho que estou produzindo.

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