27 DE MAIO DE 1977. A DERROTA DO POVO ANGOLANO (Parte 3 conclusão)

Violência gratuita e inusitada

Em Angola, até o passado é imprevisível. Mas, para haver reconciliação, há que ter em consideração que só a verdade liberta. Por pior que tenham sido os acontecimentos no 27 de Maio de 1977, a verdade continua a existir. Identifiquemo-la!

POR CARLOS BENTO

Depois da entrada em força dos militares das forças golpistas e estas terem iniciado os assassinatos gratuitos das pessoas que se encontravam a manifestar-se em frente à Rádio Nacional, Nito Alves e seus próximos inclinaram-se perante o facto consumado.

Quanto a alguma violência que ocorreu da parte das forças progressistas(17), foram casos isolados e são a prova histórica de que não houve nenhum acto de resistência ao golpe pois ocorreram horas antes do ataque à população indefesa. Vale, portanto, dizer que, se houvesse orientação para o “dispositivo militar” de apoio às forças do progresso resistirem ao golpe, não é gratuito afirmar que o desfecho não seria o mesmo. Segundo testemunho de Luís dos Passos, como um sobrevivente e membro responsável do dito “dispositivo militar”, chegou a haver abordagens sobre a possibilidade de se iniciar uma guerra de guerrilha. Mas, ponderadas as dificuldades vividas no país, os mesmos decidiram não ser oportuno nem conveniente. Ainda por cima, havia muita gente inocente a ser assassinada pelos golpistas. Podemos considerar que as forças antigolpistas se encontravam de moral baixo para o confronto pois nunca lhes ocorreu que os golpistas partissem para cima da população de forma tão violenta, fascizante. Isto aconteceu não somente com estes, mas com todas as forças progressistas militares e civis.

Podemos considerar que não estavam em causa factores económicos directos, mas existiam factores sociais (de organização e outros) que fizeram pender para a ala golpista a correlação política da altura.

A violência verbal e militar exercida pelos golpistas pode ter-se iniciado por se terem surpreendido com a ausência de resistência militar pois os antigolpistas dispunham de dispositivo militar suficiente para a resistência. Se esta resistência, considerando a integração das tropas cubanas, seria suficiente para travar o golpe e efectuar uma reviravolta, é uma outra questão. Uma das questões que deteve as forças militares antigolpistas, para além da falta de organização para um golpe e confiança em Neto, foi a prévia derrota política. Daqui pode inferir-se que o golpe foi iminentemente político, embora a última operação tenha sido executada por forças militares, sob o comando do civil Lúcio Lara, secundado por Iko Carreira, Onambwé e Ludi Kissassunda e uma boa quantidade de segundas linhas que a seu tempo se denunciou nas 13 Teses em Minha Defesa e em informações existentes nos arquivos da DISA. Foi com o objectivo no golpe que a social-democracia chefiada por Lúcio Lara:

a)  Destruiu os Grupos de Acção (células) que militavam no MPLA, colocando homens seus em todos os postos que asseguravam o funcionamento das estruturas organizativas, afastando os comunistas, fazendo o mesmo relativamente às forças militares;

b)  O Comité Central efectuou um inquérito ao fraccionismo e, sem ser conclusivo, partiram para o ataque na mídia com acusações de fraccionismo;

c)  Os acusados de fraccionismo nunca foram ouvidos pela tal comissão de inquérito;

d)  Obstruíram qualquer contacto de Nito Alves e Zé Vandunem com o Bureau Político e o Comité Central do MPLA;

e)  Proibiram/impediram a divulgação das 13 Teses em Minha Defesa de Nito Alves;

f)  Realizaram uma reunião do Comité Central onde os acusados foram impedidos de estar presentes para serem ouvidos, escutarem as acusações que lhes eram imputadas e terem oportunidade de se defenderem;

g)  Fizeram reuniões de preparação final do golpe com apoio de uma parte da DISA.

A direcção do golpe e a perpetração do crime

Adequadamente estimulados pelo anticomunismo e pela acção da propaganda da comunicação social pública (única existente), os militares foram cumprindo o que lhes fora confiado. Com a sua iliteracia política, drogados pela propaganda anticomunista, supunham que estavam a salvar a Pátria dos reacionários, subversivos e corruptos”.

A correlação política das forças na sociedade angolana da altura foi-se tornando de tal forma favorável à social-democracia que se foi tornando difícil equilibrar com os meios militares de que dispunham as forças populares. Não foi, certamente, a diferença militar o factor determinante para o sucesso do golpe. Foi o factor político que a todos surpreendeu. Tenho de lembrar que no dia 25-05-1977 se deslocou uma missão de mandatados de Lúcio Lara à 9.ª Brigada e inquiriram individualmente os militares que a compunham, perguntando-lhes se apoiavam Nito ou Neto. Todos os que disseram que apoiavam Nito foram assassinados(18).

O exame da correlação política de forças às vésperas do golpe deve, com efeito, levar em conta as diferentes frentes em que se desenvolvia o confronto, notadamente a luta de massas (MORAES 1995). Podemos acrescentar a orientação seguida pelos órgãos eleitos do Poder Popular, factor político marcante da luta de massas.

No núcleo dirigente do centro de articulação golpista participou desde o início Lúcio Lara, que em vésperas do golpe se mudou de armas e bagagens para o Ministério da defesa, de onde dirigiu as operações(19) que, com zelo metódico e eficiente, contribuiu decisivamente para a montagem de uma tentacular rede conspirativa (MORAES 1995), em que as discussões sobre a Circular N.º 1 e algumas expulsões do MPLA na altura constituíram apenas fachada.

Importa aqui, tão somente, enfatizar a relevância da noção de organicidade para a compreensão da dinâmica política que fez pender para o lado do golpe a correlação de forças. A extinção do Ministério da Administração Interna já foi realizada na perspectiva de preparar o golpe de estado, o mesmo acontecendo com a criação formal da estrutura do 1.º Ministério e continuação de Lopo do Nascimento neste cargo(20). O golpe de estado de Maio de 1977 foi construído lentamente, principalmente a partir da ameaça eminente de radicalização de uma revolução popular em Angola (com a institucionalização do Poder Popular), onde os golpistas aproveitaram a intensa mobilização social existente na época para sobrevalorizar e escarnecer do poder que os órgãos populares eleitos em Luanda possuíam, utilizando os órgãos de comunicação social geridos pelo Estado, nomeadamente o Jornal de Angola, para “alertar” para os riscos que se corria se não se agisse para conter o caminho de Angola para um aproximado alinhamento com o mundo socialista. Aproveitaram-se de uma certa histeria provocada pelas eleições para os órgãos do Poder Popular, num momento fracturante, embora não houvesse pretensão alguma de se levar a cabo uma revolução que pusesse em causa a unidade nacional nem o rompimento social no decurso da fase de luta para construção de uma sociedade mais justa e equitativa, nem o rompimento abrupto com as estruturas capitalistas existentes, mas de estabilizar a fase de democracia nacional, a democracia em defesa da população mais empobrecida. Através da comunicação social acabou por se construir uma imagem totalmente distorcida do movimento popular num período de confrontos ideológicos (Guerra Fria) onde o socialismo aparecia associado a pessoas que eram contrárias aos valores tradicionais, a guerrilheiros sem escrúpulos. Foi assim que acabaram por depor Nito Alves de ministro, extinguindo o seu Ministério ainda no ano de 1976 (com menos de um ano de existência), acabando por suspendê-lo para inquérito em Outubro de 1976 (sem nunca ter sido ouvido), expulsá-lo do MPLA em Maio de 1977 e assassiná-lo ainda no decurso de 1977.

Lopo seria o próximo a tombar, como primeiro-ministro (por usurpação de poderes de Neto, ex-membro dos Comités Henda e o que mais lhe pretendiam imputar…). Houve, entretanto, mais elementos indutores da golpaça engendrada pelos conservadores do MPLA, nomeadamente:

a)  Afastamento de Francisco Júnior de comissário político nacional da ODP (Organização de Defesa Popular);

b)  Afastamento de Fernando de Sousa do Secretariado de Nito Alves para a ODP;

c)  Expulsão de todos os estrangeiros da militância do MPLA (com a desconfiança ou certeza de que tinham sido militantes do PCP), excepto os que lhes convinham;

d)  Afastamento do comandante Terramoto do comando dos tanques adstritos à Presidência da República (único angolano na chefia desse órgão, os restantes eram cubanos);

e)  Sita Valles tinha, no Departamento Nacional de Organização de Massas do MPLA (DOM Nacional), responsabilidades atribuídas por um membro do Bureau Político, também responsabilizado por este órgão para aquele departamento, nomeadamente pelo Presidente do MPLA;

f)  Depois do MPLA estar no poder, no decurso do ano de 1976, foi engendrada uma manobra política para deter uma militante do partido no poder (Sita Valles), dirigente organizativa, por razões meramente ideológicas, o que se torna gravíssimo;

g)  Expulsão de Sita Valles da condição de militante, em 1976, com uma primeira acusação de ser estrangeira (o que era falso) e depois por ter sido militante de um partido estrangeiro, o PCP;

h)  Tomada de assalto das estruturas organizadas de militância do MPLA, justificando-o com falsas medidas de reestruturação partidária;

i)  Extinção do vespertino Diário de Luanda com a justificação deste órgão ser a favor de Nito Alves e por divulgar ideias comunistas;

j)  O que está dito mostra uma prática constante de cerco aos militantes que mostravam a sua vontade de lutar pela independência socioeconómica do país;

k)  Ainda em 1975, uma prática de aniquilação de militantes considerados consequentes, nomeadamente Valódia(21) (com provas do que afirmo em posse de um seu familiar e de outros militantes do MPLA), de Manuel Vandunem (existem pessoas vivas, militantes do MPLA, que assistiram ao seu assassinato e desmentem a versão oficial, tendo sido assassinado por companheiros) e de Gika, cujos familiares(22) lutaram até à exaustão para provar quem o tinha mandado liquidar. Todos aqueles foram transformados em heróis!

Um exército de jornalistas “alugados para o golpe” começou a funcionar com mercenária disciplina, anunciando que o espectro do comunismo rondava o país. Interessa ainda referir que um grupo de homens da televisão angolana, denominados “Ano Zero” estiveram a postos, sem dormir, desde o início do dia 26-05-1977, e entraram em acção na madrugada do dia 27-05-1977, pois tudo estava organicamente preparado para o golpe(23). Havia, inclusivamente, parte desta equipa jornalística espalhada pelo Bairro do Café, onde habitava Nito Alves e supostamente estaria. Quando o responsável pela programação da televisão propunha colocar equipas na rua para gravação das escaramuças que ocorriam na cidade de Luanda, o director da TPA orientou que se aquietasse, não se lhe referindo o motivo da negação. Tudo estava preparado para a batalha final contra a democracia revolucionária.

Graças a essa bem articulada combinação de propaganda mediática e de agitação política de massas, de formas ilegais e conspirativas e de formas legais de actuação, a social-democracia logrou dominar o poder absoluto. Quando chegou à hora da última batalha contra as forças populares não precisou de improvisar. Bastou-lhes coordenar o desencadeamento da operação golpista, último acto da guerra de posição que vinha travando (MORAES 1995) contra Nito Alves e demais comunistas.

Depois da vitória golpista houve alguns ajustes de contas com alguns dos colaboradores activos do golpe. Manuel Rui Monteiro, Pepetela, Colaço, Mário Nelson e alguns outros foram afastados de cargos políticos com relevância. Monteiro, até como persona non grata, pelos serviços prestados à causa do colonialismo como comando do exército colonial em Moçambique. Quanto à(s) narrativa(s) dos vencedores é dito tanta coisa inverosímil, embusteira e paroleira que é voz corrente dizer-se que, em Angola, até o passado é imprevisível. Mas, para haver reconciliação, há que ter em consideração que só a verdade liberta. Por pior que tenham sido os acontecimentos no 27 de Maio de 1977, a verdade continua a existir. Identifiquemo-la!

Não podemos admitir que a verdade tenha sido a primeira a ser assassinada pelos vencedores para poderem utilizar a mentira sem poderem ser responsabilizados. A compra de consciências de todos os felixes, artures, carneiros, nelsones, ninis e mesmo passos apenas agrava a situação. A verdade não será encontrada na informação de quem utiliza a falta do confronto directo de ideias e o mercenarismo para mentir. Crie-se uma Comissão da Verdade! Só depois da troca directa de ideias e consulta aos documentos até agora militantemente escondidos, mesmo os obtidos sob a maior tortura, encontraremos a verdade e, então, poderemos pensar em reconciliação.

Para terminar, quero dizer que, com alguns comandantes-generais no centro do comando do golpe, a massa militar envolvida foi manipulada e intoxicada pelos empreiteiros do golpe e, portanto, o que ocorreu em Maio de 1977 em Angola foi um golpe reaccionário social-democrata em que os militares foram o instrumento decisivo na batalha final. A direcção civil, em estreita ligação aos comandantes-generais, criou um sistema de governação ineptocrático, ou seja, os menos preparados para governar administram as riquezas, os bens e os serviços do país, reprimindo os que algo sabem e alguma coisa produzem. Para lembrança perene, repito: a reivindicação da representatividade dos oprimidos resultou no seu silenciamento. Mas não se esqueçam: com uma mão só, não é possível bater palmas!

Referências de consulta:

(17) Na cadeia de S. Paulo para libertar as pessoas que foram sendo sequestradas meses antes do golpe e em casa do algoz Carlos Jorge, que guardava as chaves das portas da Casa de Reclusão de Luanda;

(18) Entrevistas a 2 militares, um dos quais, membro desta brigada, no inquérito, por receio do que pudesse vir a acontecer, disse apoiar Neto. Um dos irmãos deste militar foi fuzilado por ter respondido o oposto;

(19) Entrevista de Paulino Pinto João em 2014; e Confissão do general Fernando Coelho (Cansado);

(20) Como se verifica em entrevistas diversas, Lopo diz que também era visado no dia 27-05-1977, mas ainda não esclareceu tudo;

(21) Entrevista 7 – Quem o liquidou ainda se encontra vivo e a escrever um livro, talvez em sua defesa;

(22) Entrevista 8, a seus irmãos, Ernesto e Vitalina Teixeira da Silva, que ambos garantiram ter sido Neto a mandá-lo executar, mesmo com a minha insistência em apontar outras pessoas;

(23) Entrevista 9.

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