Um Mundo perigoso: o Ocidente, a Rússia e o Resto

O enorme apoio à Ucrânia visto como um imperativo moral tem fraca adesão fora do Ocidente. Como resultado, há um mundo dividido por um muro de percepções e concepções morais antagónicas.

José Pedro Teixeira Fernandes*

1. No Ocidente, estamos habituados a falar em nome da humanidade. Não é surpreendente. Primeiro foi o cristianismo como religião universalista, como religião destinada a ser seguida por todo o ser humano, que incutiu essa visão. Em seguida, gradualmente, partir do século XVIII, o pensamento secular das Luzes difundiu a ideia do universalismo da democracia liberal e dos direitos humanos. Todos os seres humanos, todos os povos, estavam destinados, mais tarde ou mais cedo, a seguir esse caminho — era uma questão de progresso do qual a Europa era a vanguarda. Assim, as inovações sociais, morais e políticas ocidentais são sempre boas para o resto do mundo.

Todavia, o mundo globalizado do século XXI não deixa de nos surpreender e de contrariar essa visão. Mostra como o quadro cultural ocidental nos dá uma grelha de leitura equívoca. No mundo que muitos no Ocidente imaginam existir — ou que deveria existir porque corresponde ao seu ideal de humanidade e de valores —, a Rússia seria inequivocamente condenada e sancionada pela sua flagrante violação do direito internacional. A comunidade internacional — ou seja, os 193 Estados das Nações Unidas — seguiriam o Ocidente no apoio político-militar à Ucrânia, numa forte condenação da Rússia e na aplicação de pesadas sanções. Mas não aconteceu dessa forma por várias razões que vale a pena aqui analisar.

2. “Os não-ocidentais não hesitam em apontar o desfasamento entre os princípios ocidentais e a prática. Hipocrisia e dois pesos e duas medidas são o preço das pretensões universalistas. A democracia é promovida, mas não se levar os fundamentalistas islâmicos ao poder; a não-proliferação é pregada para o Irão e Iraque, mas não para Israel; o comércio livre é o elixir do crescimento económico, mas não para a agricultura; os direitos humanos são uma questão com a China, mas não com a Arábia Saudita; a agressão contra os kuwaitianos proprietários de petróleo é repelida com força maciça, mas não o é contra os bósnios sem petróleo.”

Quem escreveu isto nos anos 1990 foi o norte-americano Samuel Huntington (ver The West and the Rest, na Prospect, 20/02/1997). Nada tinha que ver com a actual guerra na Ucrânia que agora mobiliza amplamente o Ocidente contra a invasão da Rússia. Todavia, o texto tem duas coisas que importa aqui notar.

A primeira é que está na origem popularização da expressão o “Ocidente e o Resto” (um jogo de palavras em língua inglesa). A segunda é que, independentemente do que se possa pensar das polémicas teses de Samuel Huntington, este pôs o dedo na ferida. Algumas das razões mais profundas pelas quais a guerra da Ucrânia não provoca a mesma indignação moral, nem similar vontade de sancionar a Rússia fora do Ocidente, estão aí bem identificadas.

3. Na guerra da Ucrânia está em causa o futuro da Europa, ou o futuro do mundo? Para quem tem uma visão europeia (e ocidental), é um acontecimento mundial. Afinal, a Primeira Guerra Mundial começou na Europa, com um conflito entre a Sérvia e o Império Austro-Húngaro, em 1914. A Segunda Guerra Mundial iniciou-se na Europa, com a invasão da Polónia pela Alemanha nazi em 1939, e decorreu largamente nesta. E a Guerra Fria soviético-americana teve o seu centro na Europa.

A invasão da Ucrânia é, por isso, um acontecimento mundial. Todavia, quando se olha para a forma como o resto do mundo percepciona a guerra, percebe-se logo que há leituras muito variadas e antagónicas. Nelas, a Europa não está no centro do mundo. A Rússia é objecto de uma larga, mas quase sempre superficial, condenação — como tem feito a maioria dos Estados nas Nações Unidas. Há também pragmatismo, indiferença, e (alguma) compreensão dos argumentos de segurança russos.

Um recente estudo de opinião feito por Timothy Garton Ash, Ivan Krastev e Mark Leonard para o European Council on Foreign Relations, sugere isso mesmo (ver United West, divided from the rest: Global public opinion one year into Russia’s war on Ukraine, 22/02/2023). As implicações de um mundo dividido entre o Ocidente e o Resto são muitas e complexas, não só nesta guerra como para além dela.

Todavia, uma consequência já é evidente nesta altura: essa divisão anulou, numa parte substancial, pelo menos até agora, os esforços do Ocidente para isolar a Rússia e fazer parar a sua máquina de guerra (ver The West Tried to Isolate Russia. It Didn’t Work, no New York Times, 23/02/2023).

4. No Ocidente fala-se até à exaustão de uma luta das democracias liberais contra o autoritarismo da Rússia (e de outros). A narrativa mobilizou, com sucesso, a população do selecto clube das democracias ocidentais. O Ocidente mostrou coesão e determinação. A NATO ganhou nova vida e propósito. Inegavelmente, desse ponto de vista, a resposta foi bem-sucedida. Todavia, há um reverso. No Resto há tendências preocupantes as quais é um erro estratégico subestimar.

Vista sob um olhar não ocidental, a centralidade que o apoio à Ucrânia adquiriu na vida política das sociedades ocidentais origina, frequentemente, incompreensão, cepticismo e ressentimento. Há, desde logo, um criticar do facto de qualquer acontecimento que afecte directamente o Ocidente — e os seus interesses — ser configurado como um problema global e da humanidade. Ao mesmo tempo, outras guerras noutras partes do mundo com similares tragédias humanas, como na Síria, no Iémen, na Etiópia, etc., nunca tiveram atenção comparável, muito menos um suporte humanitário, económico e militar parecido.

Assim, o enorme apoio à Ucrânia — incluindo o fornecimento de moderno, sofisticado (e caríssimo) armamento — visto no Ocidente como um imperativo moral e que deve durar o tempo que for necessário tem fraca adesão fora do Ocidente. Para além da condenação da invasão russa e da compaixão pelas vítimas da guerra, a visão é de uma luta entre “homens brancos” e “cristãos” onde estão em causa interesses e poder. Como resultado, há um mundo dividido por um muro de percepções e concepções morais antagónicas. Se vivêssemos no mundo de há trinta anos, quando a Guerra Fria terminou, a Rússia (União Soviética) estava em cacos e a China, a Índia e outros não contavam, o Ocidente podia ignorar o Resto. Tinha poder suficiente para não ligar à opinião e ressentimento dos não-ocidentais. Hoje, a realidade é outra e mais perigosa.

5. Apesar da inegável importância da guerra na Ucrânia, o mundo não inverteu a tendência de se recentrar na Ásia-Pacífico, e passou, de novo, a girar à volta da Europa. Há outros desenvolvimentos maiores em curso ligados à China e a sua influência e poder já globais, às tensões em Taiwan, à questão nuclear da Coreia do Norte e do Irão.

Pode não parecer assim, mas o Ocidente, ao não ter do seu lado o Resto — a não ser na superficial condenação da Rússia —, não está só a enfraquecer a Rússia como grande potência. Paradoxalmente, tende a acentuar o processo estrutural da sua própria perda de influência global, estimulando a criação de alternativas à ordem internacional liberal. Para isso não ocorrer, o Ocidente precisaria de ter Estados como a Índia, o Brasil, a África do Sul, a Turquia, a Indonésia e outros inequivocamente do seu lado. Mas não tem.

Há várias razões que o explicam, como já apontado. Mas um dos falhanços maiores do Ocidente é que a narrativa moral das democracias liberais contra o autoritarismo não convence o Resto. Há importantes Estados não-ocidentais que têm, também, características democráticas (ainda que imperfeitas) e até uma população superior à do Ocidente. Teriam até mais legitimidade para falar em nome da humanidade — é o caso da Índia, que é o Estado mais populoso do mundo a par da China.

Para os portugueses, não devia ser difícil perceberem tudo isto. Basta olharem para a política externa do Brasil, que conhecem tão bem, ou tão mal. Vêem logo como pensa o Resto e os limites da influência ocidental no mundo.

* Opinião – Público (6 de Março de 2023).

– José Pedro Teixeira Fernandes é investigador  do IPRI-Nova / Universidade Nova de Lisboa 

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