TEMPO DE BRUXAS

A bajulação, é dos piores inimigos a afectar a boa governação, chegando até a equiparar-se à odiosa corrupção e outros crimes nos seus desígnios. Devia, quanto a mim, ser abolida com cláusulas de penas duras e por decreto irrevogável a quem ousasse desrespeitar. 

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Iniciei esta fala no dia 31 de Outubro. No dia da festa do Halloween, uma manifestação que dizem ser tradicional dos Estados Unidos. Que entretanto conquistou a Europa e estende a sua influência feiticeira a alguns povos onde se inclui inevitavelmente o povo angolano. A nossa classe pequeno-burguesa, como habitualmente, não deixa os seus créditos por mãos alheias. Sublinho a classe porque não estou a ver “povo em geral” metido nessas andanças. Na verdade, a fina-flor da nossa sociedade, ou a que é vista como tal, é muito influenciada por essas ondas de regabofe. Envolve-se fácil e vaidosamente em festas a propósito do dia, utilizando locais decorados a preceito, com máscaras assustadoras exibidas em ambientes sombrios. A miudagem recebe o testemunho e já conhece as regras da festa. É a evolução, meus senhores, que se lixe quem é atrasado, atiram-se remoques! 

Especulo ao dizerem-me que o hábito é antigo entre nós mas, sinceramente, não me lembro do costume, nem hoje, nem nos meus tempos da juventude. Certo foi que o dia das bruxas deste ano calhou na terça-feira passada, quando alinhavava esta crónica, porque a habitual, a de 5 de Novembro, já estava pronta, não fosse alguma bruxa atrapalhar a minha programação. Sem qualquer relação com o dia das assombrações mas coincidentemente, fui alertado para uma impressionante manifestação de apreço à política de saúde pública do Governo liderado pelo Presidente JL. Será lembrado com saudade quando abandonar o poder, foi dito convictamente. 

Nunca fui dado a esse tipo de agradecimentos, e bastará aos que me seguem, lembrar que ao longo dos muitos anos que me dedico à crítica social pública, fui sempre avesso a gestos de agradecimento do tipo “muito obrigado senhor Presidente, senhor ministro o povo agradece, senhor director ou senhor governador, Deus o abençoe pela escola, pela biblioteca, por isso ou por aquilo, que acabamos de receber”. O povo não tem que agradecer a governantes, quaisquer que sejam, por coisas que são suas por direito próprio adquirido na base das leis e da CRA. Gestos ou coisas materiais que nem sempre chegam a quem de direito, integralmente e em devido tempo.

Um dos suplícios da nossa vida social assenta precisamente no servilismo posto em prática por certos cidadãos que, por vezes mas nem sempre, inconscientemente ou nem por isso, manifestam intenções que podendo ser as melhores, acabam por traduzir-se em pura bajulação quando não bem articuladas. A bajulação, diga-se de passagem, é dos piores inimigos a afectar a boa governação, chegando até a equiparar-se à odiosa corrupção e outros crimes nos seus desígnios. Devia, quanto a mim, ser abolida com cláusulas de penas duras e por decreto irrevogável a quem ousasse desrespeitar.

Cada cabeça, sua sentença, é um velho ditado. Nada a opor em relação a isso, acrescento. O cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento e a sua gratidão como melhor lhe aprouver, como a mim me cabe o de não concordar com determinadas opiniões ou atitudes. Aceito as mudanças de opinião a que todo o sujeito tem direito, havendo no entanto algumas que me obrigam a meditar. Advirto que apesar do dia delas, não estou a pensar em bruxas. Não acredito, mas por vezes vejo-me obrigado a dizer com a propriedade com que dizem os espanhóis, “Que las hay, hay”. 

Não me movendo qualquer intenção para além das dúvidas suscitadas, não posso estar de acordo com gestos de muito agradecimento ao Governo liderado pelo Presidente João Lourenço, mormente a acções da área do Serviço Nacional de Saúde. Por várias razões. Indo aos factos, fico ciente do número de hospitais construídos, de vários níveis na sua qualidade, os muitos técnicos admitidos, as suas valências, etc. e tal, e confronto-as com as queixas da população angolana em matéria de saúde. Não cessam. Diariamente partem queixas de várias posições e de variados estratos, inclusivamente da classe dos médicos. É o mau atendimento dos funcionários, são os medicamentos inexistentes, mesmo para as mais graves patologias, os exames, as análises e radiografias difíceis de realizar, enfim. 

Mais ainda. Haverá explicação para o grande número de cidadãos (os que podem, evidentemente) que procuram curas para os seus males de saúde no estrangeiro, onde infelizmente vão morrendo muitos dos nossos compatriotas? Não são “povo em geral”, está provado. Pelo contrário, são maioritariamente membros ou ex-membros do Partido no poder, governantes em exercício ou ex-governantes, pessoas próximas a governantes ou ex-governantes, inclusivamente. Pergunto-me então. É ou não legítimo questionar-se a fiabilidade do sector da saúde em Angola? É desses serviços que nos vamos lembrar com saudade? Vejamos então. As grandes unidades construídas no país estão realmente a servir convenientemente o povo? 

Por aquilo que se assiste em imagens que circulam nas redes sociais mostrando os serviços de hospitais, centros de saúde e maternidades espalhadas pelo país; pelas muitas e frequentes queixas que se ouvem acerca da fragilidade desses serviços, tenho certas dúvidas que o normal cidadão angolano beneficie sem dificuldade desses serviços e, portanto, é natural que se tenha do nosso Serviço Nacional de Saúde uma opinião pouco credível. 

Junta-se a esta questão os benefícios que o “povo em geral” usufrui em Centros Hospitalares de elevado nível como o Dom Cardeal do Nascimento e outros equiparados, sendo como são o estandarte exibido pelo nosso Governo. Bastaria essa dúvida alimentada por vários outros factos para reforçar a ideia que tenho há muito acerca do Sistema Nacional de Saúde Angolano, particularmente da direcção do Ministério da Saúde e, concomitantemente, de certos hospitais. Apesar das cerca de 3 000 unidades de saúde divididas entre Hospitais Centrais, Gerais, de Referência e de Especialidades, Centros e Postos espalhados pelo país e servidos por 15 000 médicos e 80 000 enfermeiros esgrimidos para além das milhares de camas disponíveis, o mais que certo é que, de maneira nenhuma, o sistema não serve, não pode servir bem o povo em cuidados de saúde. 

Não pode servir quando se enaltece claramente o betão armado e nada mais, e a mim, e a todos, isto não é o que se pretende. Não sou eu apenas a dizer isso. São manifestações de milhares de cidadãos angolanos. Todos sabemos e dizemos isso. Que a solução parte dos centros de saúde dos bairros sem que lhes falte os meios básicos, pessoal e medicamentos. Simples como isso.

Os médicos experimentados, os da velha guarda, merecedores de todo o nosso respeito, têm opinião formada sobre a situação, vão fazendo o que podem, honra lhes seja feita. Mas, para mal dos nossos pecados, não lhes é dada confiança por quem deveria dar atenção à sua experiência e capacidade. Evidentemente que não excluo os jovens nesta apreciação. Entretanto, os seguros alcançam um número limitado de pessoas, e essas vão tendo atendimento razoável, de resto, vão faltando como já se disse, os medicamentos, os meios de diagnóstico e técnicas afins que, infelizmente, não são privilégio de todos. Numa sociedade em que a mortalidade infantil e materna atinge níveis assustadores, só muito recentemente surgiu um comunicado do BP do Partido mandante a anunciar que os cuidados primários de saúde são uma prioridade. Há quanto tempo deveria ter sido considerada prioridade das prioridades? Nestas circunstâncias, não me parece que estejam criadas condições objectivas para se pensar que a população poderá vir a estar eternamente grata a JL. Os agradecimentos poderão vir e por outras razões, de outras gerações de angolanos, lá mais para a frente do tempo, mas não destas que vão sobrevivendo a um conjunto de males que, na verdade, bem poderiam ter sido suavizados e amenizados neste tempo em que JL exerce o poder. Por isso e não vendo soluções a curto prazo, duvido que tais manifestações se registem com saudades neste período tão difícil. 

É bem verdade que poderia verificar-se hoje e já este registo positivo. Sabemos que sim, que poderia e como poderia. Com o devido respeito pela opinião alheia, penso que este assunto não pode nem deve ser analisado tendo como figura central beneficiária dos serviços de saúde a fina-flor da sociedade a que acima aludo, aquela parte que não é, não pode ser, a mais representativa do nosso povo.

Pelo que fica dito, não acredito, repito, que o “povo em geral” venha a ter saudades deste tempo inqualificável. A menos que algo de anormal aconteça. E neste caso, o anormal seria levar a cabo as promessas feitas em 2017 por JL, o que está fora de causa. Sentirão saudades certamente, outras pessoas. Sem dúvida, aquelas que tiraram vantagens pessoais das obras realizadas na construção civil e das aquisições de equipamento feitas. Viram melhoradas, em consequência, e sem dúvida, as suas condições de vida. Saudades que, por outro lado, serão difíceis de serem sentidas pela legião de doentes e reformados, por desempregados, e de um modo abrangente, pela juventude sem acesso a trabalho e à escola, a verem o seu poder de compra cada dia mais reduzido, penoso para os que não trabalham, e sem expectativas quanto ao seu futuro, para os muitos outros.

Despedindo-me, devo dizer, que no meio de todas as minhas lamentações, existe uma coisa que agradeço, não ao Presidente João Lourenço, mas sim à Constituição da República que me dá esse direito. A liberdade que me foi dada para poder falar como falo, sem qualquer incómodo. Se algum dia ma for retirada como já foi tentado, sinto sim, que dessa eu terei mesmo muitas saudades.

Espero por todos, estimados leitores, no próximo domingo como habitualmente, à hora do matabicho.

Lisboa, 3 de Novembro de 2023

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