EXPLORAR A MEMÓRIA (2)

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Quando a reunião terminou, estava com a consciência tranquila e satisfeita. Com a minha habitual exuberância, avancei para já, já além. E ainda tive tempo para sonhar um sonho breve, tirado num rápido cochilo. Um sonho que me mostrou eu próprio a ver como seria bom ter o talento do meu velho amigo Luís Alberto Ferreira. Que é feito de ti, meu querido amigo? Repito esta pergunta há uma série de meses, já se passaram anos, ainda a pandemia nos impedia o contacto. Será que continuas com o velho hábito do salmão grelhado e do charuto nada recomendável? Tenho ainda guardada a caixa que te trouxe de Havana. Já lã vão uns anos, os mesmos que marcam o nosso desencontro. Mas tu não respondes às chamadas que te faço. Como te fazer chegar o presente às mãos? Se isto te pode animar, direi que foste aquilo que tu bem sabes que és para mim. O erudito, um dos melhores entre os jornalistas angolanos. O profissional que, com a elegância da palavra rigorosamente utilizada, mais e melhor a tratava. Sempre com esmero. Foi assim que te conheci, bebendo da tua arte, desde os tempos em que só conhecia a tua pena, não a tua pessoa. Quando retratavas as geniais jogadas do nosso patrício Jorge Mendonça ainda no Atlético de Madrid, na altura em que andaste pelas reais paragens espanholas armado em jornalista desportivo. Utilizavas no futebol a mesma finura posta nos textos que retratavam a beleza da nossa terra e de África, do sortilégio das nossas tradições.

O fim-de-semana apresentou-se bom para o reencontro com paisagens velhas e propícias. Como as do Ruy Duarte. Meu Deus! Como a Ilha toda está pintada de verde! Evoco novamente Amílcar Cabral, permanente companhia. Até nos versos da canção musicada pelo calulense José Agostinho, meu conterrâneo e contemporâneo, e cantada por divas como Cesária Évora e Alcione. Percorre mundo e persegue-nos a todo o instante. Ai, nós a viajar entre as montanhas e o Atlântico, beleza indiscritível! Calor, Sol, Mar azul, Paisagem verde, cores lindas em simbiose incrível!

Convoco a senhora memória e vejo-me a escutar até à exaustão, o primeiro disco com música de Cabo Verde, um 45 rpm da Alvorada. Vivíamos o esperançoso início dos anos sessenta, Fernando Quejas, Mar Eterno e Maché, a marcarem presença. Mostrei então aptidões para dançar coladera. As moças no Dondo mostravam gosto de bailarem comigo. Depois, na Angola Nova, como director da Ensa, anos oitenta praí, numa reunião de Seguros pisei pela primeira vez, este chão. E numa segunda vez, em 2011, em passeio. Com a vida a palpitar de um outro modo. A paisagem transformou-se, hoje não é a mesma de há doze anos, quando aí estive com a Ana Paula e a Kátia, a Daniela era ainda bebé, ou quase. O cenário é agora mostra da vontade de um povo que sem chuva, com seca de anos a fio, constrói um país digno. Desde então, implantação firme da democracia e da sociedade civil, os frutos reflectidos nos muitos quilómetros de boas estradas, na transformação da populosa Ilha de Santiago, com a cidade da Praia irreconhecível, a crescer e a modernizar-se, o investimento a notar-se, os morros a lembrar favelas brasileiras mas muito melhor arrumadas. 

Arrancamos em direcção ao Tarrafal. Ficaram para trás São Domingos, Assomada e São Lourenço dos Órgãos, Chão Bom, não me lembro se por esta ordem, mas vistas ao longe. Entre várias povoações, vislumbramos a Serra da Malagueta, sem ser picante é deliciosa de mirar, depois o Pico da Antónia, o mais elevado da Ilha. Sempre a descer em estrada sinuosa, tanto ou mais que a da Serra da Leba e onde o verde tomou literalmente conta da terra. Enfim, Tarrafal. No Campo-Museu da Morte Lenta,tristeza não tem fim! Capim crescido em partes do Campo maldito, desconheço a razão. As fotografias de Luandino Vieira, António Jacinto, Mendes de Carvalho, Vicente e Justino Pinto de Andrade, Fialho da Costa, António Cardoso, Diogo Ventura, Beto Van-Dúnem e outros, expostas num pavilhão vazio, onde a solidão contrasta tristemente com as vozes gravadas dos reclusos, a falarem para ninguém. Só para a História e para os visitantes interessados quando surgem. Visitantes como eu e meus companheiros. De repente, uma voz me interpela. Você não é o irmão do Quim? Do Aguiar dos Santos? Sou, sim, respondi. Eu sou o Albertino Ramos, irmão do Alberto Monteiro Ramos, somos os irmãos cabo-verdianos, colegas dele, do Bonavena, do Luís Filipe, esse mesmo, o das Águas, no Lar da Maxinde em Malange. Para além de bom jornalista que foi, o Quim foi também um excelente futebolista. Sim, concordei, dizendo-lhe ainda que o tinha visto jogar algumas vezes nos juniores do Benfica de Luanda numa equipa em que o Manuel Vicente era defesa-central e ele médio de ataque. Tinha habilidade, sem dúvida. Depois de nos abraçarmos, ainda lhe disse, olhe, meu amigo, nasceu há dias mais uma neta do Quim. Que pena, ele não estar vivo! Pois é, disse ele, corroborando.

Preparava-se o almoço e eu confessava que já me tinha cansado do atum em quase todas as refeições. Quando “ouvi” o cheiro da pobre feijoada, pobre nos condimentos mas rica em sabor, atirei-me a ela sem piedade. As moscas varejeiras cirandavam em bando, até parecia que estava no Tômbwa. Batalha nas sacudidelas de espantar moscas. Depois, para aliviar mágoas, bebi um grogue e a seguir fomos desfrutar os prazeres da praia. Descobri ali a Aline Spínola que, pela aparência, pode muito bem ser minha parente. A moça, proeminente prima, viria a mostrar-se também no cerimonial do Mercado Municipal onde um jovem cabo-verdiano, Lourenço Pina de sua graça, “doente” pela poesia, lançou o seu último livro. Batucada rija e muito séria nos esperava, assim como o contacto com o jovem autarca do Tarrafal. No regresso à cidade da Praia esperava-me o Flávio Delgado, a Ivete e uma prima senegalesa. Levaram-me ao Quintal da Música, sempre um lenitivo para a alma. Saboreei boa música, novos valores a surgirem, e também um bom bife. No final, ofereceram-me o segundo grogue do dia.

Posto no Hotel Trópico que já foi cadeia municipal e hoje é espaço de liberdade para quem tem dinheiro, bonito, moderno, com piscina e tudo, música ambiente e todas as coisas a que um hóspede de qualidade tem direito, despedi-me dos meus amigos, deixando ao Flávio alguns exemplares do livro reeditado pela Caxinde, sobre a figura de Viriato da Cruz, “O Homem e o mito”, precisamente. O Flávio prometeu distribui-los e depositá-los em mãos de bons leitores. No dia seguinte, o último compromisso. A viagem à Cidade Velha, bem perto da Praia. Mais convívio cultural, Fortaleza imponente, Mercados, Igrejas vetustas, mais batucada, pronunciamentos, visita à emblemática urbe. Lojinhas, praças de rua e um barbeiro com camisola “parte-os-cornos” a tratar do cabelo do velho cliente, uma imagem interessante de uma cidadezinha diferente. Depois, novamente o hotel, fazer horas para o regresso e em Lisboa, um tempo meio agreste a esperar-nos às seis da manhã. Consequência imediata, uns espirros e depois a glicemia a subir, causa dos grogues e de alguma cachupa. Quem sabe se da pobre feijoada. 

Uma boa equipa de jornalistas cobriu esta participação. Gente que sabe do ofício, gostei de todos eles. Como não gostar de pessoas como Pedro Dias de Almeida (editor da Visão/JLetras), Teresa Dias Mendes (TSF) e Vera Mangarreiro (Lusa). Com o devido respeito, destaco naturalmente o benfiquista Pedro de Almeida. Sabem porquê! Em casa, tomados os necessários cuidados em relação à glicemia alta, recebi notícias do Jonuel Gonçalves. Falava sobre o Salão Internacional do Livro de Argel com a impressionante presença de 1200 editores de 61 países, entre eles 18 africanos. É obra!

Deu a conhecer ainda a realização de um Leilão de objectos pessoais de Léopold Sédar Senghor, antigo Presidente do Senegal, também ele escritor de mérito e dos primeiros teóricos da negritude.

Não podia ter terminado melhor esta jornada literária muito bem organizada pela UCCLA. Cumprimentos, abraços e saudades. O mesmo para os meus leitores e amigos.

Lisboa, 2 de Novembro de 2023

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