SOCIEDADE CIVIL EM ANGOLA: DA REALIDADE À UTOPIA

Num ambiente institucional em que parece não existir vontade política por parte dos poderes instituídos para a remoção gradual dos impedimentos que ainda obstruem a construção de uma cidadania ampla e plena, cabe aos cidadãos e à sociedade civil o papel de a promover.

CESALTINA ABREU

Há 18 anos, em 17 de Março de 2006, defendi no IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), a minha tese de doutoramento com o título “Sociedade Civil em Angola: da realidade à utopia”(1).

Venho revisitando aquele trabalho (ainda(2) não publicado embora entregue há anos para publicação) e encontrei lá ideias e propostas em jeito de conclusão, que percebo estarem a ser aplicadas. Isso dá-me uma sensação de conforto, por um lado porque as ideias e propostas identificadas há 18 anos, por mim elaboradas, mas sugeridas pela interpretação de incontáveis horas de leitura e, acima de tudo, pela participação de cerca de duas centenas de pessoas que em Luanda, Benguela e Malanje, me honraram com a sua participação na pesquisa de suporte à tese, com o título Representações de Sociedade Civil em Angola.

Uma das primeiras ideias/propostas que vi (e contribui para) implementar foi o arranque, em 2007, do processo da Conferência Nacional da Sociedade Civil. Naquela altura, eu ressaltava a ideia de relacionar os processos de Paz e de Reconciliação a conferências nacionais inclusivas, como uma recuperação dos processos de intervenção, de negociação e de deliberação no espaço público, tipicamente africanos, nomeadamente o Ondjango.

Pode relacionar-se com a ideia de unir o maior número possível de pessoas, de diferentes regiões, grupos sociais, confissões religiosas, estratos sociais e outros tipos de pertença, ao humanismo africano (Ubuntu), considerado por Kizerbo como um “Tesouro inestimável (…) o presente mais precioso que a África tem para oferecer ao mundo, um presente que pode ser convertido em capital”. Este espírito de inclusão, de colaboração e de reconciliação lança as bases para a construção da nação, uma promessa que também não foi concretizada pela maioria dos Estados africanos e que continua a ser um dos seus maiores desafios e ameaças à paz e ao progresso social. Isso porque o processo de reconciliação permite a negociação de um passado em que todos se reconhecem e a projeção de um futuro comum (Abreu, 2011).

Dessas leituras, retirei alguns excertos que me parecem ainda actuais, no sentido de nos ajudar a compreender não só as limitações e bloqueios que hoje ainda sentimos, mas também as oportunidades que o contexto oferece.

Por um lado, o acentuar da já então considerada excessiva centralização e concentração de poderes em instituições da cúpula do Estado, particularmente na presidência, o que cada vez mais limita as possibilidades de participação dos cidadãos nas decisões sobre os problemas nacionais, e mantém um clima institucional de pouca permeabilidade à manifestação das visões e anseios da diversidade de culturas que integram Angola.

Na actualidade, a ideologia dominante nos discursos sobre sociedade civil é a neoliberal, segundo a qual o bem colectivo é considerado resultante da acção baseada no interesse próprio(3) e na crença na mão invisível do mercado, no âmbito de um amplo projecto de inventar uma realidade cuja única raison d’êtrereside na reprodução do Consenso de Washington, com pretensões de expansão a todas as sociedades do mundo independentemente das realidades socioeconómicas, culturais e políticas de cada uma delas, numa negação agressiva de outras realidades(4). E é dominante na medida em que procura impor as suas visões sobre a organização das relações sociais num ambiente em que cabe ao mercado a tomada de decisões políticas e sociais vitais, e em que o Estado se auto-demite de funções anteriormente assumidas, particularmente no que respeita à protecção social do cidadão, deixando de constituir-se no locus do universal. Aconteceu o que Polanyi temia há mais de 50 anos, quando declarou que “permitir que o mecanismo de mercado governe em exclusivo o destino da humanidade e seu ecossistema natural (…) levaria à devastação da sociedade”(5).

E as instituições financeiras internacionais, criadas em Bretton Woods em 1944, com a função fundamental de evitar futuros conflitos através do apoio financeiro a programas de reconstrução e desenvolvimento, e aos problemas conjunturais de balança de pagamentos, figuram actualmente entre as veiculadoras mais visíveis do neoliberalismo, com funções ampliadas que lhes permitem interferir nas decisões económicas dos governos e nos assuntos internos dos países(6).

Num ambiente institucional em que parece não existir vontade política por parte dos poderes instituídos para a remoção gradual dos impedimentos que ainda obstruem a construção de uma cidadania ampla e plena, cabe aos cidadãos e à sociedade civil o papel de a promover. Essa foi uma das mensagens dos participantes na pesquisa, apesar de todas as dificuldades e limitações que reconheceram na sociedade civil em si, e na sua capacidade de interpelar o Estado e as suas instituições, devido ao ambiente institucional pouco permeável ao diálogo e ao estabelecimento de parcerias.

Os papéis normalmente atribuídos à sociedade civil e também encontrados na pesquisa que deu suporte empírico à tese, e noutros trabalhos sobre o tema em Angola, confrontam-se com enormes e inúmeras dificuldades para se concretizarem, mas os desenvolvimentos recentes da sociedade civil no país indicam que, paulatinamente, os indivíduos, grupos e as organizações que a constituem serão capazes de se afirmarem no espaço público angolano.

A promoção da cidadania passa pela criação de oportunidades de acesso a bens colectivos e serviços públicos numa base universal, o que implica, para além do desenvolvimento das capacidades necessárias para intervir junto do executivo e do legislativo com vista à adequação das políticas públicas às necessidades da população, mudanças nas intervenções de alguns integrantes da sociedade civil, particularmente as ONG’s, com vista a eliminar a actual prática de criação de públicos “privatizados” (os beneficiários/destinatários dos seus programas/intervenções) e buscando formas de articulação entre si para reduzir a pulverização de públicos adstritos aos projectos ou actividades que promovem.

A criação de instâncias de participação, aos diversos níveis da sociedade e sobre os mais diversos temas de interesse público, exercita a democracia entre os que nelas participam, estimula o desafio à lógica dominante, amplia os espaços públicos através da diversificação dos actores e dos discursos, e produz oportunidades de troca de informações e troca de experiências, permitindo um conhecimento mais amplo dos problemas e das possíveis soluções para os mesmos. Mas para isso, é preciso vencer as resistências à participação que ainda prevalecem, não só por parte do Estado, mas também por parte dos próprios cidadãos, como a pesquisa demonstrou.

Em jeito de conclusão, eu então escrevia:

O caminho parece residir na construção de uma ampla plataforma de debate e discussão em todo o país, incluindo o seu amplo público primordial, em busca de entendimentos alternativos sobre as relações entre o Estado e a sociedade civil, que forneçam as bases para a construção social de um projecto emancipatório em torno da reapropriação da ideia de bem-comum.

De acordo com a análise das relações entre o Estado angolano e os actores não estatais, a construção de uma esfera pública verdadeiramente independente para a deliberação crítica por parte de cidadãos iguais em direitos, constitui uma prioridade desse projecto emancipatório, considerando também que mais do que buscar confrontações com o Estado, os actores da sociedade civil precisam procurar formas de articulação com vista à expansão do espaço público e à consolidação de um ethos democrático em Angola, tendo presente que o Estado autoritário com que as organizações cívicas se confrontam é o mesmo a quem compete criar o quadro legal e político para a sua existência.

E finalizava assim:

Por isso, as organizações, e as pessoas(7) que se identificam com a da sociedade civil precisam de ser mais pró-activas do que reactivas, conhecerem melhor as relações de poder e as dinâmicas sociais e os seus efeitos na criação de constrangimentos, mas também de oportunidades para a intervenção da sociedade civil, e perceberem melhor o papel dos actores externos na configuração do panorama cívico do país. Sobretudo, precisam dedicar mais tempo e atenção ao conhecimento da sua própria realidade sociocultural e respeitar a sua diversidade.

(1) Sociedade Civil em Angola: da realidade à utopia. Tese apresentada ao IUPERJ, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Brasil, e defendida em 17 de Março de 2006. Excertos

(2) Ainda, aqui, não tem o sentido tão comum entre nós de “advérbio de negação”. Pelo contrário, acredito que ainda conseguirei publicar.

(3) EDER, Klaus. (2003), “Identidades Coletivas e Mobilização de Identidades”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, nº. 53, pp.5-18.

(4) MACAMO, Elísio. (2005), The Hidden Side of Modernity in Africa – Domesticating Savage Lives. In Sérgio Costa, José Maurício Domingues, Wolgang Knöbl e Josué P. da Silva (orgs.), Modern Trajectories, Social Inequality and Justice. Mering, Hampp.

(5) POLANYI, Karl. [1944] (2000), A Grande Transformação. As origens da nossa época. Rio de Janeiro, Editora Campus Ltda.

(6) GEORGE, Susan. (1999), Breve História do Neoliberalismo. Duas décadas de economia de elite e oportunidades emergentes para a mudança estrutural. Conferência sobre a Soberania Econômica num Mundo em Processo de Globalização. Bangkok, 24-26 de Março.

(7) Lembrar que, na altura, a designação hoje tão comum de “activista” não se usava.

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