À CRIAÇÃO DO INSTITUTO PARA A SUPERVISÃO DAS ACTIVIDADES COMUNITÁRIAS
O que desfavorece o progresso e o bem-estar de todos os angolanos, e favorece o ambiente que alimenta a corrupção e a falta de credibilidade, é o facto de Angola ser um país onde não existe independência de poderes…
Há já alguns anos acompanhamos, e a elas reagimos, as diversas tentativas de assalto ao espaço público da cidadania, colonizado pelo regime mono partidário durante a I República, e em doloroso e lento processo de construção democrática devido, acima de tudo, ao déficit de cidadania que Angola continua a manifestar. Em Maio de 2023, com a Proposta de Lei do Estatuto das Organizações Não-Governamentais (ONG), repetiu-se a tentativa, já considerada inconstitucional em dois momentos anteriores, 2016 e 2007/8. Sobre essa proposta, considerei comovente a preocupação maternal do regime de nos proteger dos terroristas!… logo nós, que (sobre)vivemos resistindo diariamente aos efeitos de um regime de terror…
O Decreto Presidencial 214/24, de 18 de Outubro, estabelece uma relação directa entre a implementação das recomendações do GAFI e instituições multilaterais de que Angola é membro, e a necessidade de criação de uma entidade pública para controlar as acções das organizações sem fins lucrativos, dos seus agentes e dos respectivos fluxos financeiros. Assim, a criação do ISAC – que deverá ter um militar como ‘chefe’ -, insere-se, segundo o decreto, no âmbito da adequação do quadro legal e operacional das políticas e medidas nacionais visando a prevenção e o combate ao branqueamento de capitais, financiamento ao terrorismo e a proliferação de armas de destruição massiva.
Por princípio, defendo a necessidade de começar qualquer acção/trabalho enunciando o quadro conceptual no âmbito do qual, situar os argumentos e ideias apresentadas na/o mesma/o; ou seja, considero fundamental saber-se a que nos referimos quando, por exemplo, falamos de ‘terrorismo’.
Mas o que é terrorismo? Segundo a Wikipedia, acautelando ser apenas uma das muitas definições, “terrorismo é o uso de violência, física ou psicológica, por meio de ataques localizados a elementos ou instalações de um governo ou da população governada, de modo a incutir medo, pânico e, assim, obter efeitos psicológicos que ultrapassem largamente o círculo das vítimas, incluindo o restante da população do território. É utilizado por uma grande gama de instituições como forma de alcançar os seus objectivos, como organizações políticas, grupos separatistas e até por governos no poder”. Reflectindo sobre o mundo actual, permito-me perguntar: o que é o ‘terrorismo’ cuja proliferação o GAFI tenta conter, e os países devem obedecer, e quem o pratica?
Ainda nesta perspectiva conceptual: o que se entende, neste decreto, por “AcçõesComunitárias”? Que “comunidades” são as visadas no mesmo?
Se se refere às OCBs, organizações comunitárias de base, uma das formas de organização dos cidadãos nas suas relações de vizinhança, aos Grupos de Interesse, os Grupos de Cidadãos, e outras formas de organizações em torno de interesses partilhados, o argumento que serve de justificação à criação do ISAC, ‘proteger contra eventuais usos por organizações terroristas’, traduz uma ideia inaceitável e preconceituosa de “menoridade/incapacidade”, por parte dos cidadãos e as suas organizações, de tomar decisões, agir, decidir o que escolher, de incompetência para decidir os caminhos a seguir e com quem. Além da tentativa de criminalização (e a Lei da vandalização recém-aprovada ajuda), destaca-se a menorização dos angolanos, tidos como incapazes, por si sós, de conseguirem ‘distinguir o trigo do joio’, e essa menorização remete às justificações coloniais de exercer tutela sobre os povos subjugados, considerados infantis, incapazes, incivilizados. Ou seja, para usar o jargão antropológico, ‘os pobres de hoje são os ‘primitivos de então’.
Mas, se África tem 54 países, e Angola está na posição 36, significa que está a 18 posições do pior score de Governação, no 1/3 pior classificado. E não poderia ser de outra maneira. Porque temos de perguntar à Fundação Mo Ibrahim onde e como mediu a “governação” em Angola, um país onde não há participação, não há políticas públicas, não há independência de poderes, não há escrutínio público do orçamento.
Eu acredito que esta medida visou reforçar o ambiente de securitização que se vem implementando em Angola, como tenho defendido desde finais de Janeiro de 2024, considerando que a Lei da Segurança Nacional, o regulamento dos Conselhos de Vigilância Comunitária, o Observatório Nacional de Combate à Imigração Ilegal, Exploração e Tráfico Ilícito de Recursos Minerais Estratégicos, devem ser entendidos como parte do mesmo ‘pacote’ visando mais um simulacro da intervenção do Estado no interesse de todos, de jure, mas de cerceamento das liberdades dos cidadãos e de impedimento da acção cívica de qualquer natureza, de facto. Ou seja, são instrumentos de vigilância dos cidadãos nas suas comunidades.
Analisando estes instrumentos, todos eles criam um ambiente de vigilância permanente, de policiamento de todos contra todos, o que lembra o Panoptismo, que tem como finalidade a vigilância contínua do indivíduo, isto é, uma forma de controlo social relacionado ao modo de sistema prisional, porém aplicado à sociedade de diversas formas. A ideia do panóptico foi criada por Jeremy Bentham no séc. XVIII e fundamentada por Michel Foucault no séc. XX, é uma alternativa aos anteriores modosde vigilância, criando e mantendo uma relação de poder que não mais depende daquele que o exerce; os vigiados são ‘enredados’ num sistema no qual eles mesmos são portadores/reprodutores das relações que os submetem. Para Mbembe, tudo isto é ‘necropolítica’, ou seja, políticas adoptadas para regular o corpo social, mantendo-o sob controlo e subjugação, originando conscientemente, ou por falta de recursos e/ou por falta de vontade, a morte dos cidadãos, física e/ou social. Por morte social entende-se a exclusão irreversível dos cidadãos de tudo.
Não foram estas medidas a impedir que Angola entrasse na lista cinzenta do GAFI. Já (re)entrou.
Todas estas medidas colocam o foco no controlo dos cidadãos e as suas organizações, marginalmente nas ONG’s. Em qualquer dos casos, não há nenhum indício de que haja organizações dos cidadãos angolanos, nas comunidades e na sociedade civil, envolvidas com acções terroristas.
Pelos casos conhecidos ou denunciados, as actividades ilícitas são praticadas por empresas, em geral muito bem relacionadas e privilegiadas nos procedimentos simplificados, nos créditos adicionais e nas adjudicações directas de elevados montantes relacionados a grandes projectos de investimento público. Muitos deles inacabados, outros mal-prontos. Este tema também já abordamos em 2023.
O que desfavorece o progresso e o bem-estar de todos os angolanos, e favorece o ambiente que alimenta a corrupção e a falta de credibilidade, é o facto de Angola ser um país onde não existe independência de poderes, onde apesar da infinidade de conselhos e outros tipos de simulacros de inclusão, pluralidade e participação – que não passam disso mesmo -, as necessidades e vontades dos cidadãos não são atendidas, onde o(des)governo é feito via decretos porque a iniciativa legislativa é maioritariamente do Chefe do Executivo, onde o poder legislativo não pode, de facto, fiscalizar o executivo, cujo orçamento, do ponto da credibilidade orçamental nos seus três pilares, transparência, participação cidadã e fiscalização e escrutínio público, vem piorando desde 2019, chegando em 2023 à posição 97ª em 125 países, com apenas 26 em 100 pontos possíveis.
Estas são algumas das reais causas do problema, que devem ser atendidas. Importa lembrar outra: a inexistência do que foi avaliado no Índice Mo Ibrahim e noticiado em grande destaque: Angola estaria entre os cinco países que mais terão melhorado na década 2014-2023. Mas, se África tem 54 países, e Angola está na posição 36, significa que está a 18 posições do pior score de Governação, no 1/3 pior classificado. E não poderia ser de outra maneira. Porque temos de perguntar à Fundação Mo Ibrahim onde e como mediu a “governação” em Angola, um país onde não há participação, não há políticas públicas, não há independência de poderes, não há escrutínio público do orçamento.
Na edição de 27 Outubro de 2024, do Expansão, foi matéria de capa: “em 2023, 35,9% dos angolanos – 13,2 milhões – viviam em pobreza extrema”, adiantando que, segundo o UNICEF, 8 milhões de crianças em Angola vivem em agregados de extrema pobreza (…), situações estas que devem ter-se agravado desde então.
Será que vamos ter Censo credível para actualizar a situação?
É a isto que chamam sucesso?
27 Outubro 2024