Saúde. Para memória futura… a inauguração de 4 de Março

Por Luís Bernardino*

A inauguração, a 4 de Março de 2022, do Instituto Hematológico  Pediátrico Dra. Victória do Espírito Santo, na presença do chefe de Estado e da primeira-dama, é um episódio típico do engenho da ministra Sílvia Paula Valentim Lutucuta,  e um bom exemplo da engrenagem stalinista  que adultera  e distorce a história, põe no limbo certas personagens, confabula outras,  e, no caso vertente, coloca a entidade homenageada no dúbio  papel do cuco, a conhecida ave que depõe os ovos nos ninhos que os outros construíram. 

Entendamo-nos: a inauguração do Instituto é um progresso. Mas, no contexto em que ela é feita, com as considerações oficiais que sobre o mesmo ouvimos na 6ª feira (4), arrisca-se a ser mais um exercício da marketing a que, mais uma vez, a ministra Sílvia Lutucuta sujeita o presidente da República.

A verdade histórica, e a avaliação justa das condições que propiciaram aquela inauguração, levariam a que o Instituto, a ter um patrono e um nome, fosse o de Instituto Hematológico Pediátrico Ana Paula dos Santos. Era, de resto, esta a proposta inicial quando o projecto do Instituto foi congeminado em Houston, em Novembro de 2015.

Vamos então aos factos, e à tentativa de resgatar a memória futura:

1. Em 2007 A Dra. Ana Paula dos Santos (APS), primeira-dama de Angola, presidiu, assistiu e participou num colóquio internacional sobre Anemia de Células Falciformes (ACF) que eu organizei no Hospital Pediátrico, com a presença e participação de autoridades mundiais sobre a doença, como o Dr. Graham Sergeant, da Jamaica, o Prof. Jacques Elion, de Paris, e o Prof. João Lavinha, de Lisboa;

2. Naquele ano ou no ano seguinte, APS, num encontro em Nova York de primeiras-damas africanas a propósito da campanha para o corte vertical de transmissão do SIDA nas crianças, lembrou uma outra doença, a ACF, que também atingia duramente as crianças africanas;

3. Esta preocupação, manifestada ao mais alto nível, levou a petrolífera CHEVRON a ter uma iniciativa de apoio ao controlo da ACF entre nós, começando por patrocinar a mim e à minha jovem colega do Hospital Pediátrico, Dra. Juliana Inglês, uma visita, em 2009, à Baylor University e ao Departamento de Hematologia e Oncologia do Texas Children Hospital, em Houston, EUA;

4. Na sequência desta  visita e de uma vinda a Luanda duma delegação de médicos americanos das duas instituições, com reuniões no Hospital Pediátrico e encontros com o ministro da Saúde, Dr. José Van-Dúnem, foi assinado, meses mais tarde, um acordo entre o MINSA e a CHEVRON em que, por suporte financeiro da CHEVRON de 3 milhões de USD (renovado cinco anos depois com a atribuição de mais 5 milhões de USD) a Baylor University iria, com os parceiros angolanos, criar um Centro de Excelência de ACF em África (como já tinha feito, para o SIDA, no Botswana). Debalde, instei junto do então ministro, Dr. José Van-Dúnem, para que esse Centro de Excelência fosse construído nos terrenos traseiros do Instituto de Oncologia, que são pertença do Estado, estavam inaproveitados, e eram contíguos ao CADA do Hospital Pediátrico – o nosso pequeno Centro de Apoio ao Doente Anémico (estava outra vez a pensar que foi no terreno do fundo do Hospital de Gaberone que a Baylor fez construir o Centro de Excelência para o SIDA no Botswana);

5. Em Novembro de 2015, eu e um outro médico do Hospital Pediátrico, o Dr. Joaquim Van-Dúnem, fomos convidados a ir a Houston para tentar dinamizar o projecto que estava em curso, e, se possível, reforçá-lo. Um dos problemas identificados era que, não havendo uma instituição física de suporte ao projecto, havia dificuldade de enquadramento administrativo dos técnicos laboratoriais recrutados e treinados, que tinham que ficar ligados a entidades terceiras, primeiro à Liga dos Amigos do Hospital Pediátrico, depois à uma agência a quem tínhamos de pagar esse serviço. Foi neste contexto que surgiu a ideia da necessidade dum Instituto, que, à imagem do homólogo da Texas Children Hospital, fosse, um Instituto de Hematologia e Oncologia Pediátrico, e foi sugestão da parte americana, que nós logo subscrevemos, que o novo Instituto tivesse o nome de Ana Paula dos Santos;

6. De regresso a Luanda, fiz o relatório da missão dirigido ao ministro da Saúde, com conhecimento ao director da Faculdade de Medicina e ao Gabinete da Primeira Dama, o qual continha a proposta da criação do Instituto Hematológico Ana Paula dos Santos, e um pacote de formação de hematologistas que era pressuposto para uma geminagem entre os departamentos homólogos do hospital americano e do hospital angolano. Das três entidades referidas, só colhi reação da senhora primeira-dama;

7. Em 2016, a primeira-dama impulsionou importantes medidas para a materialização do Instituto Hematológico:

a) Por razões que desconheço, preteriu a localização que eu tinha inicialmente visualizado, e concentrou-se numa vasta área, contígua ao (então) Banco de Urgência do Hospital Pediátrico, que tinha albergado, desde a era colonial, as instalações da Direcção e outras estruturas da Faculdade de Medicina (transferidas para a área do Hospital Américo Boavida), mas que tinham sido (ilegalmente) ocupadas por muitos anos por alguns docentes da Faculdade de Medicina e suas famílias. Estas pessoas foram realojadas, e o terreno foi terraplanado;

b) Certamente, pelos bons ofícios da primeira-dama, no decreto promulgado em 2016 pelo então presidente José Eduardo dos Santos em que afectava uma verba de 200 milhões de euros para instituições do Sector da Saúde, estava incluído (e  atribuído ao trio dos três empreiteiros de construção que  – já então –   beneficiava dos favores do Executivo) o financiamento do Instituto Hematológico (a par dum Instituto de Medicina Legal e dum “Hospital Geral Pediátrico”, depois designado “Hospital Materno-Infantil”, na Camama);

8. Em meados desse ano, fui abordado por um director da empresa projectista da obra, a Dar Al Handash, que por incumbência da primeira-dama, pedia que eu expusesse as minhas ideias sobre as linhas do projecto: dei opinião de que, na vasta área disponível, umas  instalações de dois, no máximo três pisos, deveriam bastar para albergar uma primeira linha de cuidados ambulatórios, com recepção, consultas, colheitas, sala de dia, laboratório geral, serviço de transfusão; e uma segunda linha de formação e investigação (biblioteca, anfiteatro, laboratório de investigação, acomodação para formadores estrangeiros do convénio de geminagem). E porque eu tinha, tempos antes, feito vir a Luanda, por convite do Hospital Pediátrico, o hematologista Italiano Dr.  Lawrence Faulkner, que eu tinha conhecido num Congresso em Roma, e que tinha instalado unidades de transplante da medula em países menos desenvolvidos (Paquistão, Marrocos, Índia) e se dispunha, a custo zero, a ajudar-nos a criar uma unidade de transplante em Luanda, eu confirmei a continuação da sua disponibilidade, e inclui na minha sugestão para o novo instituto uma área para transplante da medula;

9. Não voltei a ter contactos sobre a iniciativa. Vi, meses depois, a planta do projecto que foi aprovada e que, ao jeito habitual, convertia a resolução prática dos problemas num projecto “elefante-branco”, várias vezes mais caro:  agora, era um edifício de sete andares, que, segundo declarações da ministra no dia da inauguração, custou 40 milhões de USD (o suficiente para custear o projecto que eu defendia, e ainda para pagar a remodelação do Banco de Urgência do Hospital Pediátrico que aguarda há vários anos, o financiamento de 10  milhões de USD – e que a ministra inviabilizou definitivamente há dois anos) e ainda haveria dinheiro para construir dois hospitais municipais!

Q.E.D, no que respeita ao nome que o Instituto devia ter, sou insuspeito quanto a qualquer opinião favorável à governação do presidente José Eduardo dos Santos, como é publicamente conhecido. (E da anterior governação, como do actual status quo, fui, nos últimos anos, objecto de vários tipos da marginalização a que estão votadas as pessoas críticas e independentes). Mas, estou longe de ser insensível á bondade dos gestos, à solicitude pelas crianças doentes e ao valor das consequentes acções práticas que resultaram em benefícios delas – sem olhar para considerações de política ou de poder. E isto é que quero dizer quando me considero independente. A mesma independência que manifestou Ana Paula dos Santos, que ignorou os problemas políticos e se associou e ajudou os meus projectos. 

Entendeu-se dar ao Instituto um nome  que, sem aventar outras razões plausíveis ou mais delicadas, posso considerar, usando a terminologia informática, que é um “by default” – alguém que não está envolvida em Hematologia, nem em nenhum dos passos para a materialização do Instituto, alguém com quem fiz, na Direcção do Hospital Pediátrico e do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, durante alguns anos, uma boa equipa, até ao dia – já longínquo – em que ela renunciou a uma carreira académica e de especialista, para se tornar uma empresária da Saúde e deixar de priorizar os interesses do Hospital Pediátrico em favor dos da sua Clinica, passando a preferir aliar-se ao poder (o que tacticamente, era uma protecção para o seu negócio),  do que  a trabalhar comigo para defender as crianças doentes do Hospital Pediátrico. 

Mas, mesmo admitindo que os oportunismos políticos e de sobrevivência são a regra, e que o que conta não é “o poder da verdade”, mas a “verdade do poder”, não teria sido possível, ainda que com aquela inauguração e com aquele nome, incluir-se na altura uma palavras de reconhecimento, não a mim, cujo poder foi apenas de opinião e de aconselhamento, mas à antiga figura nacional, que, sem poder agora, o exerceu, quando o teve, de forma decisiva, para tornar o projecto uma realidade? Forçoso é constatar (mais uma vez…) que estamos a lidar com gente que não têm o mínimo respeito pelas pessoas, as quais estão dispostas a esmagar implacavelmente, se virem que elas se atravessam no caminho das suas sinistras agendas pessoais.

Um bom exemplo da engrenagem stalinista  que adultera  e distorce a história, põe no limbo certas personagens, confabula outras,  e, no caso vertente, coloca a entidade homenageada no dúbio  papel do cuco, a conhecida ave que depõe os ovos nos ninhos que os outros construíram

Porquê que esta inauguração corre o risco de ser encarada como uma operação de marketing – mais de demagogia e de falsas promessas, do que de real apoio aos doentes hematológicos e nomeadamente aos sofredores de ACF?

1. Ao dar-se, nas palavras da inauguração, um ênfase quase exclusivo à possibilidade de implante da medula, prevista para até ao fim do ano, está-se a acenar com uma técnica complexa, cara, com riscos, que para um país como Angola, em que nascem anualmente 10.000 crianças doentes, está longe, nos próximos anos, de constituir a regra, mas antes, a excepção para se curar a doença;

2. As outras medidas, suscetíveis de beneficiar a grande maioria de doentes, têm sido negligenciadas ou suspensas, nomeadamente:

a) Um plano nacional de instalação de facilidades diagnósticas e de tratamento em todos os hospitais províncias, incluindo educação das famílias para se evitar o nascimento de crianças doentes, foi, há anos, apresentado ao ministro Van Dunem, a seu pedido, mas nunca implementado ou sequer considerado;

b) A continuada incapacidade do Ministério em dar acesso gratuito ou menos dispendioso à Hidroxiureia – hoje incluída a nível mundial no plano de prevenção das complicações da doença – mas que, devido à escassez e altos preços locais, só é usada pelos doentes das clínicas privadas ou por quem possa fazer face a uma despesa semanal elevada que é, em princípio, todos os dias, para toda a vida;

c) A ausência de exames Doppler periódicos das artérias cerebrais, os quais se tornaram mandatórios na rotina assistencial para prevenir os Acidentes Vasculares Cerebrais; 

d) A suspensão, em 2020, do Programa de Despistagem Neonatal da doença nas poucas maternidades em que fora implementado, logo que a segunda fase do projecto patrocinado pela CHEVRON chegou ao fim: não houve capacidade para se fornecer os reagentes (nem se tentou…), nem se quis aproveitar os técnicos formados (que foram licenciados). E, contudo, sabe-se que a despistagem neonatal – que permite uma assistência imediata da criança sem se esperar pela manifestação da doença – é um instrumento importante que tem permitido que em países que o adoptaram, como a Jamaica, a sobrevivência até à idade adulta de 84% dos doentes (quando, segundo a Sociedade Americana de Hematologia, em 2016, só 10% das crianças africanas chegaram à idade adulta);

e) Como é corrente nestas façanhas mundanas do Executivo, cortam-se as fitas, mostra-se o falso brilho de sofisticadas tecnologias compradas a preço de ouro, mas, frequentemente, impraticáveis entre nós (tenho ouvido falar do que se passa no também inaugurado ex-Sanatório), mas não se planearam os recursos humanos (haverá um grande compasso de espera), não se tem ideias dos custos de manutenção, em geral não há orçamento (parece que é a ministra que despacha pontualmente sobre as despesas do Hospital Alexandre Nascimento). Ah… os especialistas para os implantes da medula? Vamos contratar uma equipa cubana! (Afinal não é assim que têm feito os potentados do petróleo quando almejam um hospital? Contratam uma firma estrangeira para o construir e uma agência para prover os expatriados – médicos e técnicos). Quanto ao desenvolvimento endógeno do País, à capacitação dos locais para a profissão e investigação… isso ficará para depois… 

Agora vamos inaugurar… e ganhar as próximas eleições.

06.03.2022

* Médico, ex-director do Hospital Pediátrico de Luanda David Bernardino

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