A absurda proposta para uma novíssima divisão político-administrativa de Angola apanhou quase toda a gente desprevenida. Em primeiro lugar porque nada fazia prever tal perplexidade cerca de três meses apenas depois das eleições e sem que alguma vez tivesse sido equacionada essa hipótese durante a campanha eleitoral. Em segundo lugar porque no princípio do ano de 2022 o Executivo havia feito uma “auscultação”, com os vícios habituais, sobre uma outra proposta substancialmente diferente, que punha o foco no aumento do número de províncias, aceitável para as províncias do Moxico e do Cuando Cubango, discutível para as das Lundas e despropositada para as restantes.
Comecemos por apreciar o modo errático e incompetente como são tomadas as decisões por parte do Executivo e por outros órgãos do Estado angolano, uma prática que tem sido recorrente ao longo dos anos e representa uma das causas da corrupção sistémica. É esse comportamento errático que explica trapalhadas antigas, das quais vale a pena recordar casos como os aeroportos sem serventia em várias cidades e localidades, a construção de uma Aldeia Solar em Cabiri vandalizada pouco depois da pomposa inauguração ou os projectos faraónicos do “Dubai Agrícola”; e outras mais recentes como o investimento em hospitais com equipamento de pompa sem técnicos para os operarem enquanto o Hospital Geral de Luanda ou o de Malanje (e tantos mais) definham com sérios problemas de apetrechamento e de funcionamento, a construção de um campo de jogos polivalente de 27 milhões de dólares em Ndalatando (importante e necessário mas não prioritário) – que já tem um aeroporto inútil – ou a inacreditável e ruinosa gestão da TAAG.
Uma medida como a divisão administrativa tem carácter estratégico e deve estar ancorada no conhecimento existente e em novos estudos, e não em actos voluntaristas de ocasião. Uma das maiores críticas ao modo como a divisão administrativa nos tempos coloniais ia sendo tecida incidia no desrespeito por afinidades de ordem ecológica e sociocultural, desrespeito que as actuais chefias teimam em preservar, sem que se vislumbre qualquer preocupação em arrepiar caminhos.
Ouvimos vezes sem conta as caixas de ressonância do poder defenderem que a institucionalização das autarquias tinha de ser gradual por falta de condições na maioria dos municípios, posição que na altura me pareceu correcta por essa e por outras razões. Vários anos decorridos eis que “assanhadamente” ouve-se dizer que é necessário aumentar o número de municípios de 164 para 581, através da elevação das comunas e dos distritos urbanos para municípios porque isso permitirá a criação das tais “condições” e assim aproximar os serviços dos cidadãos. Sem qualquer explicação sobre as implicações financeiras. Tamanho absurdo parece uma brincadeira.
Aqui chegado, numa singela homenagem a Assunção dos Anjos (1946-2022) – o meu protector no dia que entrei para o Liceu Salvador Correia em 1959 – ocorre-me perguntar: quem tem medo de Virgínia Wolf, ou antes, das autarquias? É difícil para o cidadão comum não associar esta sucessão de meandros na institucionalização das autarquias ao histórico sobre o assunto e daí concluir-se que o MPLA tem medo delas e do que poderá representar numa hipotética e relativa dispersão do poder. Algo que só pode ser explicado pela recorrente dificuldade de convivência com a realidade por parte dos dirigentes ou da fantasia de tomar os seus desejos e sonhos pela realidade. O preço a pagar pela perda de algumas fatias de poder poderá levar à perda substancial do poder.
Entendo que algumas comunas e distritos poderiam e deveriam ser transformadas em municípios, só que a solução mágica proposta é política e financeiramente desastrosa. Pelo já comentado e pelas dificuldades financeiras conhecidas, a que a médio e longo prazos há que juntar as que poderão decorrer da notícia que acaba de abalar o mundo afectado pela “doença holandesa” – a fusão nuclear que será letal para os combustíveis fósseis. Seria muito melhor pensado que fossem definidos critérios (ecológicos, socioculturais, demográficos, económicos) para o “up grade” e com eles haveria uma lógica para a criação progressiva de novos municípios. A partir daí poderiam ser estabelecidos critérios, incluindo políticos, para a criação imediata das autarquias nos municípios que preenchessem os critérios, pois continuo a pensar que a ideia de generalização do poder local, tal como defende a oposição, não faz sentido e pode ter efeitos perversos, pelas mesmas razões que critico o aumento do número de municípios sem critérios.
“Quem está debaixo das árvores está mais apto a ouvir o canto dos pássaros”. Foi mais um adágio popular aprendido, agora no XXII Encontro Nacional das Comunidades, evento promovido e facilitado pela ADRA que se vem institucionalizando progressivamente graças à confiança e ao capital social que se vem tecendo ao longo de mais de 20 anos – e que aconteceu no Dombe Grande (Benguela) em Novembro. A frase foi dita por um participante, em língua Umbundu, para justificar a importância do poder local e reflecte a muita sabedoria popular à espera de aproveitamento. Não pude deixar de associar este adágio à problemática da implantação do poder local.
Os Encontros das Comunidades representam uma experiência das muitas vivenciadas em Angola que deram certo. De uma experiência de participação efectiva (não apenas presencial, como outros criticados no evento) e de cidadania, com um processo tendencialmente democrático que vai desde a escolha dos representantes eleitos em Encontros Municipais e Provinciais (que podem incluir até à votação do local). De uma experiência de interacção entre membros das comunidades e representantes das instituições do Estado a nível local e central, sendo estes questionados relativamente às políticas e programas sectoriais apresentados. De uma experiência que permitiria às instituições públicas conhecerem as necessidades e prioridades a nível das comunidades, que podem ser consideradas para a generalidade do território com as devidas precauções, com uso de metodologias simples. De uma experiência que abrange sete províncias (sem contar Luanda) e mais de 15 municípios (sem contar com os das sedes provinciais). De uma experiência que só pode ser expandida para o restante território se as instituições públicas o quiserem, analisando o que se fez e faz, apreender as forças e fraquezas e os avanços e retrocessos, sistematizando o processo e concebendo e implementando programas e projectos em conformidade.
Quando a ADRA começou a trabalhar a nível de município, na sequência da promoção do desenvolvimento comunitário – não confundir com desenvolvimento das comunidades –, as Administrações Locais do Estado estavam muito fragilizadas. De lá para cá foram melhorando as suas capacidades, mas ainda longe do desejado no que respeita a capacidades humanas e financeiras e sobretudo a metodologias participativas. Para essa melhoria também contribuiu a ADRA ali onde intervém e isso tem sido visto e reconhecido durante os Encontros das Comunidades. Como referiu um participante, a legitimidade do trabalho da ADRA é conferida não só pelas comunidades, mas também pelas instituições do Estado, pelo que o estatuto de utilidade pública, sistematicamente negado pelo Executivo, pode ainda não reconhecido de jure, mas foi já outorgado de facto.
Fernando Pacheco, Novo Jornal, 16/12/22