É preciso pensar a Paz como um bem público, colectivo, de todos nós, e criar as condições para que todos não só contribuam para a sua construção, em processo, como beneficiem dos seus dividendos!
No calendário oficial, o dia 4 de Abril é Feriado Nacional, celebrando o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional.
Mas, o que é que aconteceu em 4 de Abril de 2002?
Nesta data, na cidade de Luena, capital da Província do Moxico, assinaram-se os Acordos de Paz e Reconciliação Nacional. Em nome do Governo, pelo então chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas (FAA), general Armando da Cruz Neto e, em representação da UNITA, pelo então chefe do Alto Comando das suas Forças Militares (FALA), general Geraldo Abreu Muendo “Kamorteiro”.
A assinatura do acordo do Luena pôs fim a décadas de guerra civil (1975-2002). Iniciou uma nova etapa da história recente de Angola que teria como marcos principais o processo de paz, a reorganização da vida e o relançamento da economia sob a égide do Dividendo da Paz. A expectativa era de uma nova era de esperança num Futuro promissor, que tinha tudo para acontecer dado o potencial de Angola em todo o tipo de recursos, começando pelos recursos humanos, naturais – incluindo os estratégicos para o ‘antes’ e o ‘durante’ a transição climática -, posição geoestratégica, etc.
Como o discurso oficial denomina e procura consagrar a data?
Os angolanos comemoraram no dia 4 de Abril o Dia da Paz e da Reconciliação Nacional, aliás, muito frequentemente, e só para ‘não deixar dúvidas’, trata-se da ‘Paz Definitiva’. Ou seja, está tudo feito, pronto, fechado. Não é preciso fazer mais nada!
O que falta fazer?
Tudo o que foi anunciado e prometido, pela assinatura do cessar-fogo e o consequente fim da guerra civil. O enquadramento geral seria o de um amplo processo de pacificação dos espíritos, de conciliação com o passado – a que (re)conciliação nos remete o discurso oficial se não existe registo de, em Angola, ter havido uma conciliação prévia, a que se pudesse remeter, actualizando-a? -, para permitir a projeção de um Futuro comum. Este processo teria permitido a construção social de uma memória colectiva, da angolanidade e de uma visão do país em si e para si, e suas relações com a Africa e com o Mundo.
O Dividendo da Paz(1) traduz o esforço colectivo para realocar os recursos destinados ao esforço de guerra em sectores que promovem directamente o desenvolvimento social e humano da população de um país. Visa construir e a transmitir confiança, compromisso e credibilidade, com o objectivo geral da melhoria dos padrões de vida, quantitativos e qualitativos, sustentados no desenvolvimento do capital humano e social de Angola.
O desempenho dos sectores sociais em Angola indica se, e como, aconteceu a transferência dos recursos humanos, financeiros e materiais antes dedicados ao esforço de guerra (civil), para investimentos em capital humano, em capital social, e na economia, visando a construção da Paz Social, e do desenvolvimento sustentável em Angola.
Apesar do fim da guerra e suas consequências imediatas, como a libertação de recursos humanos, materiais e financeiros, não se tornou visível o impacto do “dividendo da Paz”, o laço entre a redução da insegurança individual. Vou referir apenas 1 indicador composto – esperança de vida, educação, saúde e rendimento – o Índice de Desenvolvimento Humano.
Após o fim da guerra no período da “era de ouro da economia angolana”(2), a taxa de crescimento do PIB foi de 9,93% em média, entre 2002 e 2015, atingindo seu pico em 2007: 23,20%. Contudo, nesse mesmo período, o IDH variou, apenas, de 0,384 para 0,526, mantendo Angola na 149ª posição do ranking mundial. Isto significa que, neste período, o aumento das receitas do petróleo – crescimento da produção e aumento do seu preço no mercado internacional -, e a expansão do controlo do Estado sobre as áreas de exploração diamantífera, não foi canalizado para responder aos problemas e às necessidades básicas da sociedade angolana, que permanecem, em grande medida, sem resolução. Hoje estamos mais pobres e vivemos menos!
A paz não pode ser compreendida como sendo, apenas, a ausência de guerra. E o que temos é “paz negativa”, uma situação onde o fim da guerra não implicou a resolução da violência estrutural de uma dada sociedade, pela presença de determinantes sociais da violência como má governação, fraco estado de direito, desigualdade social e desigualdade de género, desemprego, fraco acesso à educação, entre outros. A Paz que precisamos é a “paz positiva”, quando, para além da ausência da guerra, prevalece a paz social, isto é, uma paz assente na justiça, na inclusão e no cuidado para com o outro, sempre em processo de construção e de fortalecimento dos laços sociais.
Angola precisa de um projecto nacional de transformação social, orientado para a democratização social, política e económica – e, consequentemente, a extensão da cidadania a todos os angolanos -, ancorado no reconhecimento da nossa diversidade e promovendo a construção de uma identidade nacional com criatividade e coragem inovadora de procurar o seu próprio caminho.
Mas isto exigirá a criação de plataformas de diálogo e de negociação entre o Estado e a sociedade, no âmbito de uma ampla coalizão que produza um “contrato social”, como o primeiro passo para um processo de (re)conciliação nacional que, a partir da discussão crítica das causas da prolongada guerra-civil, lance os alicerces da construção de um passado e de uma história comuns, nos quais todos se reconheçam, condição necessária para construir visão e projectar um futuro comum.
É preciso pensar a Paz como um bem público, colectivo, de todos nós, e criar as condições para que todos não só contribuam para a sua construção, em processo, como beneficiem dos seus dividendos!
4.04.2024
(1) FERREIRA, Manuel Ennes (2005), “Development and the Peace Dividend Insecurity Paradox in Angola”. European Journal of Development Research, vol. 17, nº. 3, pp. 509-524.
(2) http://www.ceic-ucan.org/?page_id=91