A prevalência de uma cultura institucional que é sintoma da “doença holandesa” em Angola, caracterizada por despesismo, ostentação, ausência de sentido de defesa do interesse público, presunção e mania das grandezas, impede que se cumpram regras elementares de funcionamento da administração pública, essenciais para o suporte de uma boa governação e favorece o crescendo da corrupção. Sem uma alteração radical dessa cultura organizacional, sem o reforço das capacidades institucionais, será difícil esperar resultados que possam alterar significativamente o panorama vigente.
O Executivo angolano reagiu às calemas que afectaram a economia e a sociedade nos últimos tempos com o anúncio de um importante conjunto de medidas de estímulo à economia. Salvo um ou outro caso, as medidas ora anunciadas não constituem nada que não tenha sido proposto por líderes da sociedade civil, analistas e comentadores que não têm acesso à comunicação pública, o que, como é evidente, tem prejudicado o público e os interesses do país, algo a que o partido maioritário insiste em desvalorizar. Afinal, o país e a economia não corriam assim tão bem como a propaganda dizia e garantia, e o conjunto de medidas podem ser consideradas um atestado de má, ou pelo menos deficiente, governação.
Longe de mim contrariar o entusiasmo com que a classe empresarial acolheu estas medidas. Contudo, a experiência do passado obriga-me a ser pragmático e trazer à colação outras situações, algumas não tão distantes, em que medidas semelhantes foram tomadas e sem os resultados pretendidos e alguns até provocaram efeitos perversos. Estou a falar dos Programas Dirigidos de 2015, do PRODESI em 2018 e das medidas de alívio económico por ocasião da Covid, para falar apenas de alguns casos mais recentes. Ora, a ausência de avaliações independentes e objectivas tem impedido a identificação dos factores inibidores de eficácia, como tanto se tem denunciado. A prevalência de uma cultura institucional que é sintoma da “doença holandesa” em Angola, caracterizada por despesismo, ostentação, ausência de sentido de defesa do interesse público, presunção e mania das grandezas, como canta Paulo Flores, essa cultura, dizia, impede que se cumpram regras elementares de funcionamento da administração pública, essenciais para o suporte de uma boa governação e favorece o crescendo da corrupção. Sem uma alteração radical dessa cultura organizacional, sem o reforço das capacidades institucionais, será difícil esperar resultados que possam alterar significativamente o panorama vigente.
Analisemos o que se passa no sector da agricultura. Apesar da pouca fiabilidade das estatísticas oficiais, é aceitável que a produção tenha crescido em média cerca de 5-6% nos últimos anos, principalmente como resultado do aumento relativo do peso político e da atenção que o Executivo vem dando à agricultura desde 2017. É certo que isso pode ter acontecido por efeito das limitações cambiais causadas pela redução do preço do petróleo, o que historicamente se reflecte na tal atenção, mas na verdade alguns indicadores melhoraram, graças, também e nos últimos anos, ao novo protagonismo da Associação Agropecuária de Angola (AAPA) – um notável exemplo do que deve ser uma organização empresarial –, não só na capacitação dos seus associados, mas igualmente na influência das decisões governamentais no interesse dos seus membros.
Outro indicador de certa melhoria está a ser o apoio financeiro brindado ao sector, através principalmente do chamado Aviso 10, e ainda do BDA e do FADA, que permitiram o aumento com algum significado do número de agricultores e empresários com acesso a créditos, ainda que sem o necessário acompanhamento técnico como é recomendável em situações do género. O Executivo aumentou também o financiamento a pequenos agricultores e a agricultores familiares através de projectos co-financiados com várias agências internacionais multilaterais e bilaterais, ainda que com alguns senões como se verá adiante. Através de um projecto-piloto promoveu a criação de caixas comunitárias e recentemente o BNA estabeleceu os requisitos e procedimentos para a constituição de sociedades de micro-crédito e de sociedades cooperativas de crédito, de modo simplificado e com capitais mínimos de, respectivamente, cinco e um milhão de kwanzas, o que, se merecer o devido acompanhamento institucional, permitirá o crescimento das caixas comunitárias e do seu papel no aumento gradual da produção familiar e do agronegócio.
O terceiro indicador de progresso relativamente ao passado é o que se está a passar com a logística, um dos maiores gargalos da produção agropecuária ao longo dos tempos. Desde logo os passos que alguns agricultores estão a dar na produção de sementes e o início da laboração das primeiras unidades de mistura de adubos simples (blend) e da construção da primeira fábrica de fertilizantes no Soyo, duas áreas de actuação estruturantes que não mereceram qualquer atenção no período anterior. Significativo também está a ser o movimento de realização de feiras, que depois se limitarem às sedes provinciais, começam a surgir também em alguns municípios, o que, associado ao reforço das capacidades de transporte nas províncias, pode augurar melhores tempos para o tão abandonado comércio rural. Pena é que outro interessantíssimo movimento, o de mercados informais no Uíge, permaneça ignorado pelas autoridades oficiais. Igualmente importante é o progresso que se nota na introdução da motorização nas aldeias do interior, principalmente através das “kaleluias” (motorizadas com três rodas), contribuindo para a ligação dos produtores aos mercados e para a mitigação do seu isolamento.
Apesar destes progressos, ainda subsistem antigos estrangulamentos estruturais e institucionais, bem como as dificuldades de acesso a insumos em quantidade e qualidade, com reflexos nas produtividades das principais culturas, as mais baixas da região da SADC. O consumo de fertilizantes em Angola é de oito quilos por hectare e na SADC é três vezes superior (25 quilos). O atraso tecnológico é responsável por apenas serem aproveitados cerca de 10% das terras aráveis do país (17% na SADC), e obriga a que cerca de 70 % da superfície cultivada seja penosamente trabalhada à mão, motivando o abandono das áreas rurais de jovens e prejudicando o desempenho e a vida de mulheres agricultoras. A carência de técnicos com experiência é gritante, o que faz com que a quase totalidade das 30 a 40 maiores empresas sejam dirigidas por expatriados, o que, aliado a outros factores, onera drasticamente os custos de produção e prejudica a competitividade. Essa carência de quadros técnicos afecta igualmente a eficiência dos projectos co-financiados de assistência à agricultura familiar, que absorvem muito dinheiro com assistência técnica expatriada e, pior, não funcionam devidamente como caldos de cultura de novos métodos e metodologias como seria suposto.
Perante este quadro, e ao contrário do que sugeriu esta semana o Presidente da UNITA, o papel do Estado na economia não deve ser equacionado como se faz em países liberais avançados. O próprio Banco Mundial reconheceu, há anos, que em África não se podia aplicar mecanicamente a receita do “quanto menos Estado, melhor Estado” dada a fragilidade das suas instituições. Ocorre também lembrar o que Barack Obama opinou sobre a importância da afirmação das instituições em África. Um parêntesis para dizer que não significa isto que esteja a defender um regresso ao passado ou a concordar com as interferências que se assistem por parte do Estado no mercado e desvirtuam o funcionamento da economia que se diz pretender. Vem-me tudo isso à mente quando penso em factos como a aprovação do Programa de Aceleração da Agricultura Familiar e Pescas pelo Conselho de Ministros em 2020 e ao qual foi atribuído uma verba avultada. Nunca mais alguém falou dele. Nada, uma vez mais, que não tivesse acontecido antes.
Novo Jornal, 21/7/23