OS MEUS OITENTA CACIMBOS E AINDA O CAXINDE

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Quando for lida esta crónica, já as cinzas do meu estimado amigo Hermínio Escórcio estarão a repousar em solo pátrio. Não terão faltado nas cerimónias os elogios da praxe. Devem ter sido lidos comunicados a enaltecer as qualidades do homem, do nacionalista, enfim, o habitual nesses casos de óbito. Com as protocolares tristezas, acrescento. Prefiro lembrá-lo aqui e à minha maneira, distante da exibição de sentimentos nem sempre sinceros. Sinto-me mais confortado assim. Chorando a falta da voz poderosa, do olhar faiscante, do sorriso a avisar, “não te metas com eles, são como máquinas trituradoras”. Até sempre, grande Hermínio!

Também e por essa altura, já terei assinalado o meu dia, o 6 de Outubro, data que me alerta para a entrada inexorável na idade em que tudo é mais real. Oitenta é número redondo, é aquele que quando atingido, todas as dúvidas se desvanecem, em que não se acredita em contos de fada. Idade que nos afasta de influências e nos obriga a pensar cada vez mais com a nossa cabeça. Com a visão que a idade bem vivida nos proporciona. Por essa altura, estarei a recordar os melhores momentos de convívio com os familiares e amigos que me procuraram nesse dia e comigo celebraram esta data muito especial. Lembrarei também os telefonemas e os vídeos recebidos, não importando quem tenha faltado. O importante neste momento é ter conseguido superar a idade do meu pai, esperando poder ultrapassar a da minha mãe. Sou orgulhoso por ser como sou, de ser quem sou. Estou grato aos verdadeiros amigos, que são muitos, felizmente, por tudo quanto me têm dado. 

Já agora, e para quem possa estar interessado. Acolhi com satisfação a ideia de um grupo deles e de um outro correligionário, também ele aniversariante de Outubro, de fazermos um almoço à maneira, com cada um a pagar o seu, porque a vida está difícil. Um almoço que será aqui no “Ultramar”, para lembrar a idade mas também a nossa Angola e muitas outras coisas, como o Chá de Caxinde, por exemplo. Aguardem por notícias nossas então. Até breve!

Agora, vou ao mais importante. Na senda do que havia prometido, falarei de um outro ciclo cultural desenvolvido pela nossa Associação, nos primeiros anos da sua existência. Nos finais de 1993, levamos a cabo a iniciativa “Chá à sexta”, consubstanciadas numa série de actividades culturais e recreativas. Sempre acompanhadas pelas componentes do discurso e da dança. Porque não só de pão vivia o homem. Foram muitos os intervenientes nestas admiráveis sessões. Sem rigor cronológico, recordarei hoje o famoso Amadeu Amorim, nacionalista, membro do não menos famoso agrupamento Ngola Ritmo, na sua apresentação no Marítimo da Ilha, em 5 de Novembro de 1993. Há trinta anos! Pegou no aliciante tema, “Plenas, passistas e passadas”. Falou então e disse assim, sem lhe retirar ponto, nem nenhuma vírgula:

“…Bom, não conheço as regras da casa, por isso começo por saudar os componentes do Chá de Caxinde pela contribuição que prestam ao retirarem de nós um pouco do stress do dia-a-dia. Gostava de recordar e se possível com a ajuda dos presentes a música e os passistas do passado recente. Fica claro que esta é um contribuição por isso não esgota o total dos nomes famosos da velha Luanda. Esta velha cidade que com o progresso – entre aspas – concentrou o pessoal dos Coqueiros nas Ingombotas. Claro que me refiro à velha Ingombota tradicional e não a esta com a dimensão que lhe deram. Verdade que às vezes me assusto quando ela aparece classificada como 3º. bairro de maior índice criminal.

Nesse velho bairro floriu a Liga Africana que se tornou ponto obrigatório de convívio e festas. Estávamos na época do Tango, do Samba e do Swing. Se não fujo à verdade, até aos anos 70 os angolanos dançavam tudo, desde a Valsa ao Conga. Hoje a juventude confrontada com o Pop Music, perde pouco a pouco a arte de dançar, essa característica tão ao gosto da gente da nossa terra. Nas Ingombotas surgiram dançarinos como Liceu Vieira Dias, Paizinho Lacerda, Mário de Araújo, Catela do Valle, o Ramiro, filho do dono da antiga Minerva.

De facto, esses ritmos acrescidos do Som Cubano, marcaram várias épocas. Música ora lenta ora mexida mas sempre bem executada e sobretudo possuidora de uma letra cheia de vida. Ninguém daquela época fica indiferente quando ouve Francisco Canaro em La Cumparsita, Mi Buenos Aires querida, Adiós Muchachos, as execuções de Guan Darienzo, da mestria de Carlos Gardel, Benny Goodman, Luis Quintero, Luís Kalaff e Célia Cruz.

Não há dúvidas que a América Latina e do Norte mexeram muito com os angolanos. Eu não sou de makas nem tenho elementos válidos para sustentar esta afirmação, mas há quem diga que somos nós mesmos que estamos de regresso somente acompanhados de uma técnica mais apurada.

Talvez por isso os angolanos vibrem com esses ritmos. Na verdade é difícil ouvir-se um Som, um Samba ou um Plena sem pelo menos fazer-se a marcação batendo com o pé. O Rangel, Sambizanga e Bairro Operário são prova dessa preferência. Durante muitos anos esses bairros dançaram e cantaram à sua maneira o Som Cubano ou como se chamava na época, o GV. A qualquer hora da noite dos fins de semana, ouvia-se o Mani, Rumba Miloca, Paralítico ou Canvela. Estudiosos dizem que foi o Mani com o Trio Matamoro quem abriu as portas de outros países mais exigentes para a entrada do potencial cubano. Essa América Latina que nos enviou a Rumba, O Cha-cha-cha, Mambos, Boleros, Plenas e Som Montuno. Em Luanda era cartão de visita. Quem soubesse dançar bem não pagava. Chamava clientes para as farras de entradas pagas. E quem viveu esses momentos sabe, porque também ficou pendurado nos quintais de aduelas ou fazendo buracos nos resguardos de luando para ver dançar o Jack Rumba, irmãos Pirezas, ou, parafraseando o Dom Caetano na sua música Som Angolano, o Mateus Pelé, Canário, Sapatinho, Ampas Biker, Black Samba (história do Gabriel) e era assim. Saber que o Jack ia ao Grupo Baião, a farra enchia. Era em certa medida o furador.

Uma vez entrei num concurso com o Jack Rumba. Atrevido, mas dava uns toques. Na refrega a disputa geral pelo prémio estava renhida e o Jack zangou-se e mostrou que era o Rei. Rodopiou, travou o bico do pé esquerdo no calcanhar do direito e, quando a dama giropou por detrás dele, desfez a prega, sacou do lenço que sempre pendia do bolso de trás das calças, limpou o rosto suado e exclamou satisfeito: Isto é uma merda! Bem, o povo assobiou e eu … já era.

No Bairro Operário, já mais para cá, também surgiram dançarinos e dançarinas. Estou a ver o Caetano Cordeiro, Josino José Carlos, Guilherme da Conceição, Zeca Amorim, Norberto Franco, Antoninho Cagalhoça, Lito Caricatura, Wilson de Carvalho, Carlitos Romão, o Romão que é hoje Embaixador, Giovety, Mário Clington. Esperem que alguns deles vão riscar aqui o chão como se fazia nos outros tempos.

Do Morro da Maianga chegaram os irmãos Sousa, o Gi e o Ménio, com fama de dançadores. Traziam toques novos para impressionar e namorar as moças do Bairro. Quase sempre acabava em pancadaria: rapazes de outros bairros não podiam namorar as nossas moças e vice-versa. Mário Clington apanhou umas chicotadas quando descia o Morro. Mas os sábados eram normalmente quentes no Caravela, Grupo Baião, Maxinde, Ambrizetes, nas festas da Idalina, do Joaquim Salvador, Botafogo. Festas alegres, ruidosas mas de convívio saudável. Não sei se está aqui alguém que se lembre da velha Falage. Ao raiar do dia, farra não era farra sem musongê ou sarrabulho na casa da Falage.

É esquisito mas alguns homens daquela fase gostavam de se apresentar como possuidores de uma das três virtudes: ser bom dançarino, hábil na luta, ou então serem comentados “fulano bebe para 14”. Havia também os donos da luta – Golias, Silvino do Morro, Zé da Missão, Velho Louro, Eduardo sem Manga, Liceu Vieira Dias, Amado, Zeca Amorim e Zeca Malheiros. Um aceno justo para aqueles que ajudaram os passistas a brilharem com a sua boa música: António Vasconcelos – o da Alfândega – Zeca Povinho, Arturinho e Mangalha. Importa também lembrar algumas dançarinas como Idalina, Lai, Esperança Carlos, Chinha do Lulú Van-Dúnem, Gracinda Amorim, as irmãs do Pato Cruz, Necas, Puinte e Vitocas, Alcina Parreira.

E para terminar, só faltava realçar a beleza das moças da Luanda antiga. Mas não o faço porque o Jacques Arlindo dos Santos ofuscou-as com a descrição da beleza da Casseca no seu primeiro livro…”

Terminando, agora eu, não posso deixar de referir a imensa alegria que tive de poder abraçar novamente o Adolfo Maria. Também o Jota, o Miguel, o Vitor, a Wanda, e os outros. Que saudades! Todas essas emoções no dia do lançamento do último livro do Jean-Michel. Mais um apontamento sobre o fatídico 27 de Maio de 1977. A vida resume-se nesse manancial de factos vividos e emoções sentidas, estas mais visíveis naqueles que têm carácter e sensibilidade. 

Imitando o início da prosa do Amadeu, direi, Bom, e com mais este registo do nosso passado não tão velho assim, feito na rica e peculiar linguagem caluanda do dito cujo, e numa curta viagem que nos transportou ao tempo em que sonhar era fácil, despeço-me dos meus amigos, companheiros de luta e assíduos leitores. Espero por todos, no próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 8 de Outubro de 2023

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