O novo paradigma da mesma traição

Ramiro Aleixo

Na semana que findou em que se assinalou o 13º aniversário da CRA (Constituição da República de Angola), o Tribunal Constitucional lançou uma versão da nossa Carta Magna no modelo de banda desenhada, dirigida à criança. O objectivo, segundo argumentaram os promotores da iniciativa, é para que ela conheça e tenha domínio dos seus direitos.

Na sequência, ao ouvir os discursos polidos sobre o aniversário e sobre o funcionamento da CRA (incluindo do ministro de Estado Adão de Almeida), pus-me a analisar os atropelos constitucionais que se observam à cada instante em todos os cantos desta nossa Angola, que chocam a consciência colectiva e atentam directa e indirectamente contra os direitos da criança. E facilmente concluí, que essa versão simplificada no modelo desenhado deve ser dirigida primeiro ao adulto, porque a criança tem sido apenas vítima. E a produção desse livrinho interpretativo, vem exactamente justificar esse reconhecimento de que algo vai mal e tem que mudar. Por isso, sugiro que essa distribuição da banda desenhada, deve começar, como é lógico, por contemplar os primeiros culpados: os dirigentes do MPLA porque são eles que mandam em Angola, os membros do Governo, os comandantes e agentes da Polícia Nacional, sobretudo estes, porque é a esse nível que mais se desrespeita a Constituição e os direitos da criança. E já vamos na terceira versão, com várias emendas de actualização. Mais artigo mais alínea, todas elas defende(ra)m os direitos da criança. No entanto, pouco evoluímos e continuamos encalhados com comportamentos que a desrespeitam permanentemente, e impedem o seu desenvolvimento sadio.

Não sei se quem dirige o colégio promotor da iniciativa, a juíza presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, já tem netos ou netas. Mas se não tem, sério que gostaria que tivesse e que oferecesse também aos seus o tal livrinho de banda desenhada. Existindo ou não, imagino-a a ser confrontada com a seguinte pergunta:

– Mas avô Lalá, se tu és também guardiã da Constituição e reconheces que nós crianças temos direitos, porque razão te calaste quando aquelas crianças de uma escola de Viana, acompanhadas pelo professor, foram barbaramente dispersas à tiros por efectivos da PN? Elas apenas saíram à rua para exigir carteiras que, como se viu, afinal estavam guardadas nalgum armazém, tal como camas, lençóis e até medicamentos, que aparecem num simples estalar de dedos, quando o presidente decide visitar um hospital…

Provavelmente, sentiria muito desconforto, porque ela própria é produto desse Sistema que não tem a CRA como baliza do funcionamento do Estado Democrático e de Direito. Mas tem coração e consciência. E há momentos que eles cobram e até o mais insensível sente o impacto dessa cobrança.

Como referimos, o primeiro extrato da sociedade que deve ser contemplado com essa banda desenhada da Constituição e dos direitos da criança, deve ser o dos adultos. Percebe-se que, apesar da formação e das responsabilidades de boa parte, são eles quem não respeita os direitos que a criança tem. Afinal, não foi a criança que com 13 anos recebeu esta Constituição, que ao longo de 13 anos ouviu insistentemente que tem direitos constitucionais, mas hoje, 13 anos depois, feito homem, com 26 anos, não tem emprego, não tem casa para abrigar a família que constituiu e desesperado, ao reclamar o respeito e a observância dos seus direitos, de forma pacífica, é torturado, preso e até morto? Ou estamos a falar de outras crianças, que não fazem parte das contas do Sistema?

Todos sabemos que o nosso problema também está na Constituição, no seu formato que, em certa medida, condiciona o funcionamento do Estado Democrático e de Direito que de facto, desejamos, e porque concentra poderes excessivos na figura do presidente da República. Todos sabemos ainda que o grande factor de instabilidade é o formato do exercício do poder, por parte de uma força política que se apoderou do Estado, que tem nome, morada e endereço, e tem um presidente que também é (ou devia ser), o primeiro guardião da Constituição mas não tem sido, porque mantem a simbiose que não lhe permite compreender que a Nação está acima dos interesses partidários, principalmente de favorecimento do seu partido.

Quem como eu, mesmo no musseque, viveu parte da sua infância no período colonial, sabe que não precisou de conhecer a Constituição Portuguesa para sentir, de forma objectiva, que tinha direitos, mesmo na condição de colonizado. Porque absorvia a presença deles na transmissão de princípios orientadores da família (a espinha dorsal da Constituição e da Nação) e na dignidade do trato na escola, da qualidade do ensino e da formação, no quadro de uma revolução encetada por um secretário, Pinheiro da Silva, negro por sinal, natural de Cabinda, que foi responsável pela integração de milhares de crianças negras e mestiças num sistema multirracial de educação, ensino e de formação do novo homem angolano, boa parte deles dizimados pelos tais libertadores saídos das matas e das cadeias coloniais. E foi essa nova geração de governação de Angola, que começou por semear o caos e a desrespeitar a primeira Constituição que eles próprios cozinharam e serviram regada com um molho revolucionário… Fez-lhes jeito a proliferação de colégios e faculdades privadas, porque para além do enriquecimento de certa elite, isentou o Estado das suas responsabilidades.

Com tantos atropelos que vemos à cada instante, é assim tão difícil perceber porque razão aquelas crianças que há 13 anos receberam esta Constituição, hoje feitos homens, preferem emigrar? Não é, de certeza, porque desistiram de Angola. É sim, porque, apesar dos pesares, lá fora encontram a dignidade, o conforto, a segurança e a estabilidade que, em 47 anos de independência, o poder dos tais libertadores não consegue assegurar. No tempo deles, dizem, ‘fugia-se’ de Angola porque havia discriminação e a policia colonial perseguia e prendia. Hoje, também se foge pelas mesmas razões e até por outras piores, e mantêm-se silenciosos como que satisfeitos, porque essa emigração pode ser também uma forma de alívio da pressão interna, provocada pela insatisfação generalizada.

Ao longo desses anos, como parte da sua história (e o 4 de Fevereiro assinala isso mesmo) disseram-nos também que foi para se pôr fim a essas práticas que se fez a luta de libertação e se proclamou a independência; era, de facto essa, a esperança de todos nós, mas ela esfumou-se na ditadura de Agostinho Neto, prosseguiu na de José Eduardo dos Santos e agora, num nível provavelmente mais aterrador, está a ser implantada por João Manuel Gonçalves Lourenço. Ele também não conseguiu mudar a percepção que temos de que fomos enganados, de que fomos atirados para uma espécie de depósito de lixo ou abismo, de onde não conseguimos sair nem eles querem que saíamos. Somos impedidos por um Sistema armado e repressivo que nos aterroriza, que entende que os nossos direitos, a nossa liberdade, o bem-estar comum, são apenas e só os que eles entendem por conveniência política de acomodação, e não os que estão consagrados na Constituição. E pensar diferente, significa atentar contra a segurança do Estado.

Portanto, esse novo paradigma de investimento na transmissão de conhecimento à criança por via do Tribunal Constitucional, que pode não parecer mau, também pode ser interpretado como mais um sinal dos efeitos da desestruturação das famílias angolanas, das escolas e de uma figura fundamental na formação do homem novo, que foi banalizada e desprezada: o(a) professor(a). Constitui também um sinal de alerta para a sociedade, porque o próprio poder deve ter dado conta que os estragos causados nos adultos (chefes e pilares das famílias) são tão profundos, que o melhor mesmo é descartá-los. A saída, terão concluído, é a formatação de uma nova fornada de fiéis servidores eleitos, que assegurarão a sua sobrevivência no próximo confronto geracional contra o exército dos que hoje são discriminados, porque não têm acesso à escola, à saúde, à comida, à um lar, à uma Pátria que não escolheram.

No meu imaginário tenho que, de forma consciente ou inconsciente, alguém lançou a primeira pedra para a construção de mais um muro de divisão e de discriminação da criança angolana, porque elas, na prática, nunca tiveram mesmo direitos iguais. Há mais de 10 milhões, que nem sabem o que são direitos e não saberão por via da cartilha desenhada. Ora, se essa discriminação e exclusão não é a outra face de uma traição longeva que nos amordaça e nos escraviza, que outra definição lhe assenta melhor?

A Educação e a formação de consciência e de carácter, a transmissão de conhecimento e dos marcos entre o bem e o mal, começam no seio das famílias. Se elas são fortes, o Estado é forte e sólido. Se são frágeis e desestruturadas, se grande parte do tempo útil e da convivência da família for a luta para sobreviver no meio de tanta miséria, não haverá banda desenhada nenhuma que funcionará como marco basilar de uma Lei, que nem o Tribunal Constitucional respeita de facto e de júri. Fosse isso, Laurinda Cardoso não estaria lá. E a própria, sabe bem porquê!

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