“Se você quer manter limpa a sua cidade, comece varrendo diante da sua casa“
Provérbio chinês
A citação em título poderia dar nome a um romance, um conto ou novela, uma estória, um relato ou coisa do género. Daria para boa prosa e muita coisa mais porque é epígrafe sugestiva e, a partir dela, bons argumentos poderiam ser gizados, assim o homem ou mulher que manobrassem o seu conteúdo fossem talentosos, capazes e corajosos. Não me atreverei, por enquanto e por não me sentir preparado, a enfrentar assunto de género tão impreciso onde, apesar da indefinição, há tanto para se dizer, seja de bom, seja do mais ruim. Hoje, 25 de Janeiro, dia em que inicio esta prosa desempoeirada onde, entre outras coisas, pretendo saudar nas linhas que seguem, o aniversário da nobre e vaidosa cidade de São Paulo de Assunção de Luanda, ou de Loanda, como foi baptizada, dizem que há 446 anos. E aproveitar essas letras feitas de conversa corrida para pensar nas coisas, felicitar também os seus milhares de cidadãos habitantes, quaisquer que sejam, naturais, adoptados, de gema, genuínos, no fim de contas, todos eles, munícipes da nossa amada Luanda. Hoje, os seus habitantes já se contam por alguns milhões e assusto-me com esse extraordinário crescimento da população da cidade capital de Angola. Uma eclosão que, por razões sobejamente conhecidas, não foi acompanhada pelo desenvolvimento social e económico que se impunha para situação de tal grandeza.
Ao falar de Luanda, tenho que referir naturalmente uma instituição que é sua pertença e que a mim, particularmente, diz muito. Por duas ordens de razão. A primeira, por estar ligado umbilicalmente a ela. Trata-se, como calculam, da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. A segunda, porque fundada que foi em 28 de Janeiro de 1989, irá completar daqui a três dias, 33 anos de vida. Uma idade linda e abençoada, a chamada idade de Cristo, por ter sido nessa data que o filho de Deus morreu e ressuscitou, segundo as escrituras católicas. Felizmente (para a Chá de Caxinde), apesar da coroa de espinhos que lhe foi barbaramente cravada (idêntica a que foi fincada na cabeça de Jesus) poucos anos depois de ter nascido, pelo simples motivo de ter mostrado à nascença a sua linha progressista e terem os seus membros pensamento próprio, posições que aos olhos turvos dos dirigentes, representavam actos de rebeldia; houve mesmo vontade de a quererem, vezes sem conta, vê-la a sangrar, destroçada ou morta, um desejo alimentado e nunca escondido por certos prefeitos ou governadores de província, (eram os títulos que se usavam nos tempos de Pôncio Pilatos), iguais no comportamento a esse juiz bíblico que em relação à condenação de Jesus Cristo pelos fariseus, não interveio, nada fez, do mesmo modo que na nossa magnífica cidade de São Paulo de Assunção, essas entidades superiores, com a mesma competência do juiz Pôncio Pilatos, deram ordem ou, no mínimo, não se incomodaram com a sorte (ou com a falta dela), da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. Acabar-se com ela estava nos propósitos dos ditos juízes. Acabava-se com a raça da dita cuja e não haveria incómodo para mais ninguém. Pessoalmente, chegaram a dizer-me que não faltava muito para chorarmos a morte da nossa filha. Ou ainda que éramos um elemento estranho no mosaico cultural de Angola. Incrível!
Aqui distante onde me encontro, não a passar férias nem a comer do bolo com que muitos se banquetearam com um apetite inacabável e devorador, exulto de alegria ao saber que os proeminentes assassinos do nosso sonho não o conseguiram concretizar. Desconseguiram, simplesmente porque a Chá de Caxinde se mantém viva e o seu nome é uma marca difícil de ser riscada da vida da nossa cidade e do nosso país. É um nome lembrado ainda, sempre e felizmente, pelos melhores motivos. Foi, pois, com imensa satisfação que recebi o programa das festividades possíveis neste 33º. aniversário glorioso da nossa Associação que, no conceito dos que têm ideia básica e redutora do valor da cultura nas sociedades modernas (muitos ainda, infelizmente), deveria ser o da celebração da sua morte, dos ritos tradicionais dos seus funerais e dos respectivos kombas ditókwas.
Dizia eu no princípio que este escrito poderia ser a base de um romance ou o conteúdo de uma simples estória. É verdade, e nela caberiam todas as incongruências, todo o mal, tudo aquilo que não se quer fazer a cidadãos apegados ao bem da sua terra e a uma juventude vibrante que quer saber um pouco mais do que o pouco que lhe foi ensinado. Até a comportar-se. Os rostos da violência estão descobertos, os ardis são de uma confrangedora falta de ética e decência política, elementos essenciais da construção de uma sociedade justa e respeitável. Deixando o mal de parte, permito-me dizer que a satisfação maior que ainda me envolve é a de saber que, enquanto os velhos cabouqueiros se aposentaram, restando-lhes a lembrança “dos tempos bons da Chá de Caxinde”, vão-se mantendo os que ainda se aguentam firmes ao leme da barcaça, enquanto surge nova gente, com novas ideias e a energia suficiente para trazer o selo, a marca da identidade nunca perdida e a vontade que deu origem à criação de uma das mais profícuas associações culturais, única no seu género em Angola, do período pós-independência. Somos de uma época em que se desconfiava dos que diziam não, quando era momento de dizer sim a tudo. Entre nós ganhou-se a consciência de dizer não, sem nos envolvermos em questões eminentemente políticas. Estas couberam, de algum modo, à ACA – Associação Cívica Angolana – que nasceu exactamente um ano depois da nossa e que, pelas personalidades que a constituíam, pelas ideias nobres que defendiam, tinha tudo para dar certo e contribuir para o engrandecimento de Angola. Não deu, desconheço as razões, mas não deixo de lembrar-me dos pioneiros dessa ideia peregrina, dos vivos e dos mortos, a quem saúdo com todo o respeito e admiração. Reverência que não foi retribuída pelos poderes republicanos estabelecidos que, curiosamente, até tinham apelidado o ano anterior, o ano da Chá de Caxinde, de “Ano da Ampliação da Democracia”. Triste ilusão, a da implantação da democracia em Angola, apetece-me mesmo dizer.
Neste momento de festejo e de simultânea tristeza, pergunto apenas de que nos serve chorarmos sobre desgraças passadas, de que nos vale lamber as nossas feridas ainda sangrentas? A questão é razoável. Todavia, neste contexto de melancolia profunda, só nos obriga a verificar que estamos sem a vontade suficiente para fazer coisas boas, nem nos chegam incentivos para continuarmos a desenvolver o que ingloriamente ficou parado, adormecido. Vivemos um episódio triste das nossas vidas ao vermos como não foram aproveitadas nem a dinâmica de uma juventude mobilizada (não apenas as das que integravam a Chá de Caxinde), nem sequer os valores que, por via da cultura, nomeadamente dos eventos do carnaval, da dança e do teatro, eram conduzidos para causas nobres da ética e da decência, ajudando todos a serem alguém na sociedade de bem que pretendemos criar desde que ascendemos à independência nacional.
Dizia eu no princípio que este escrito poderia ser a base de um romance ou o conteúdo de um simples estória. É verdade, e nela caberiam todas as incongruências, todo o mal, tudo aquilo que não se quis nem se quer fazer por cidadãos apegados ao bem da sua terra, por uma juventude vibrante que quer saber um pouco mais do que o pouco que lhe foi ensinado. Os rostos da violência estão descobertos, os ardis são de uma confrangedora falta de ética e decência política, elementos sumamente essenciais da construção de uma sociedade justa e respeitável. Trabalharam-se em dezenas de projectos que beneficiavam o estudo e davam as primeiras ferramentas de trabalho a essa juventude. Porque se perdeu inutilmente esse tempo e se desperdiçou tanto trabalho em prol de uma sociedade civil bem estruturada que não cabia na ideia de quem mandava? Ou será que estou enganado e que afinal cabia mesmo? Devo reconhecer a minha ingenuidade, porque a resposta já veio, por gestos e palavras, há muito tempo mesmo.
Termino desejando o melhor para todos nós. Cuidado com a Covid-19, que essa é perigosa para valer. Como os piores inimigos, não dá chance se lhe dermos o flanco. Aos meus estimados leitores, cumprimento e convido a estarem comigo no próximo domingo, à hora do matabicho.
Lisboa, 29 de Janeiro de 2022
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Mais um excelente artigo, parabéns!!!!!!!!!!!!
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