NA ROTA DO CAXINDE (5)

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Em Agosto de 2004, a esperança era enorme. Quando não se está mal, a situação melhora. É assim. Na verdade, ela nunca deixou de ser grande. A tal de esperança. Foi por essa altura que a Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde teve o privilégio de realizar na cidade do Lubango o 1º. Encontro de Escritores Angolanos na Angola independente. Recordando o evento que completará 20 anos no próximo ano, o tempo está a correr pra caramba, darei, a seguir, a conhecer aos meus leitores o teor do Comunicado Final saído do referido Encontro, realizado sob o lema “Debate Sobre a Criação Literária Angolana”. Por todas as razões, julgo que será de todo útil não esquecermos o que então se discutiu e decidiu. 

COMUNICADO FINAL

De 6 a 8 de Agosto de 2004, realizou-se na cidade do Lubango o 1º. Encontro de Escritores Angolanos, uma iniciativa da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde e da União dos Escritores Angolanos.

O Encontro teve o apoio do Ministério da Cultura e do Ministério da Administração do Território, assim como de diversas entidades privadas, a quem os participantes do mesmo desde já agradecem pública e penhoradamente.

Os participantes agradecem em particular à população da cidade do Lubango e a diversos representantes da sociedade civil da Huíla, em especial os membros da delegação provincial da Associação Chá de Caxinde, pelo acolhimento fraterno e caloroso, bem como pela criação de todas as condições necessárias ao êxito do Encontro.

O 1º. Encontro de Escritores Angolanos contou com a presença de 40 participantes, nomeadamente escritores, linguistas, editores e representantes da indústria gráfica, provenientes de Luanda, Kwanza Norte, Cabinda, Benguela, Cunene, Huíla e Lisboa, além do público em geral.

A sessão de abertura foi presidida pelo escritor e Ministro da Cultura da República de Angola, Boaventura Cardoso, o qual proferiu, na ocasião, um discurso de grande qualidade e rigor.

Desse discurso, os participantes retiveram, entre outras, a ideia de que (citamos) “a literatura não deve comprometer-se com quaisquer planos ou linhas programáticas (…), deve antes colocar perguntas, suscitar dúvidas ou inquietações, insinuar, mais do que indicar soluções; (…) o único compromisso que a literatura deve ter é com a vida e com a dimensão humana”, (fim de citação).

A sessão de encerramento foi presidida pelo vice-governador da Huíla para a área económica, produtiva e social, senhor Adriano da Silva.

Durante o Encontro, foram apresentadas 17 comunicações, sob o tema genérico “Debate Sobre a Criação Literária Angolana”, as quais suscitaram uma discussão alargada, séria, profunda e construtiva. Ainda no quadro do Encontro foram lançados e autografados 10 livros de escritores angolanos e realizados encontros entre escritores e estudantes, em duas escolas da cidade do Lubango. Foram também aprovadas três moções. 

As numerosas questões debatidas durante o 1º. Encontro de Escritores Angolanos podem ser agrupadas em três grandes temas:

  1. Perfil, História e Perspectivas da Literatura Angolana
  2. Literatura, Língua e Linguagens
  3. Produção, Distribuição e Promoção do Livro

Após as discussões, os participantes concluíram o seguinte sobre cada um desses grandes temas:

PERFIL, HISTÓRIA E PERSPECTIVAS DA LITERATURA ANGOLANA

1-Reconhecer que a literatura angolana possui uma longa história e que já atingiu um grau de amadurecimento, consolidação e diversificação que atestam plenamente a sua maioridade e independência.

2-Sublinhar que, tendo em conta as contingências históricas vividas pelos angolanos e a natureza dependente e periférica do país, a literatura continua a ter uma importância fundamental para a consolidação da nação e para a construção de uma sociedade ao mesmo tempo una e diversa, o que não significa, entretanto, nenhuma visão instrumentalizadora da literatura e da cultura.

3-Observar que, na generalidade, os escritores angolanos têm contribuído, com o seu comportamento, para o esforço de reencontro da nação consigo mesma, para lá da origem, da idade ou das opções ideológicas ou político-partidárias de cada um, e lamentar a atitude de todos aqueles que insistem em dividi-los, com base em falsos problemas políticos, geracionais, étnico-culturais, raciais ou outros.

4-Exortar o Estado, assim como as organizações pertinentes da sociedade civil (organizações juvenis, associações culturais, imprensa, etc.), a apoiar efectivamente os jovens escritores, sem burocratização nem dirigismos, sublinhando ao mesmo tempo que a condição de escritor requer um aturado esforço individual e muitas vezes solitário.

5-Exortar igualmente o Estado e a sociedade a apoiarem o desenvolvimento da literatura infanto-juvenil, pela sua vocação eminentemente pedagógica, assim como o surgimento de um maior número de mulheres escritoras, por intermédio de incentivos à produção, criação de prémios e colecções especiais, concessão de bolsas de criação e outras medidas e acções.

6-Exortar a pesquisa séria, profunda, científica e sistemática sobre a literatura tradicional, possibilitando um maior diálogo entre ela e a literatura moderna, o que poderá constituir uma via para o enriquecimento e crescente originalidade da literatura angolana, no momento em que, no mundo, parece existir uma notória crise de criatividade, em termos literários e não só.

Alguns dos muitos participantes ao encontro, vendo-se em primeiro plano o escritor Manuel Rui Monteiro

LITERATURA, LÍNGUA E LINGUAGENS

7-Insistir que, sendo a língua o instrumento de trabalho dos escritores, o domínio do idioma usado por cada um nas suas obras é absoluta e irrevogavelmente fundamental, o que implica rejeitar definitivamente todas as teses populistas e demagógicas a respeito desta problemática.

8-Reafirmar, entretanto, o carácter multilinguístico da sociedade angolana, como uma das facetas imprescindíveis da sua natureza multiétnica e multicultural.

9-Exortar o Estado, em geral, e o Governo Angolano, em particular, a assumirem efectivamente as suas responsabilidades, tomando medidas urgentes e concretas para a pesquisa, ensino e a utilização das línguas angolanas de origem africana, o que contribuirá para o enriquecimento e a crescente diversificação da cultura angolana.

10-Apelar especificamente ao Governo Angolano para dotar o Instituto de Línguas Nacionais dos meios materiais, financeiros e humanos, inclusive com o recurso a especialistas internacionais, necessários para que o mesmo possa cumprir o seu papel.

11-Exortar os escritores angolanos que tenham condições para isso a utilizarem as línguas angolanas de origem africana nas suas obras, sem esquecer que é imprescindível a existência de um mercado de leitores dessas obras, o que só é possível com a utilização das referidas línguas na alfabetização e no ensino em geral.

12-Continuar a reflectir e apelar a um debate sério, objectivo e científico sobre o estatuto da língua portuguesa em Angola, considerando que se trata do idioma materno de uma parte significante de angolanos, assim como a língua de unidade nacional e o primeiro veículo de comunicação internacional de que dispõe o país.

13-Sublinhar que a valorização e o desenvolvimento simultâneo das línguas angolanas de origem africana e da língua portuguesa não são incompatíveis nem conflituosos, podendo contribuir, pelo contrário, para o enriquecimento linguístico e cultural de Angola.

14-Considerar, enfim, que o diálogo, a interacção com as demais linguagens artísticas, modernas e tradicionais, tais como a música, o teatro, o cinema e os audiovisuais, as artes plásticas e a dança, reveste-se de um inestimável potencial para o enriquecimento e consolidação da literatura angolana.

PRODUÇÃO, DISTRIBUIÇÃO E PROMOÇÃO DO LIVRO

15-Considerar que a desorganização económica, a elevada taxa de analfabetismo e o fraco poder de compra da esmagadora maiorias dos angolanos constituem os maiores obstáculos à produção, distribuição e produção do livro no país, o que, objectivamente, só poderá ser resolvido a longo prazo.

16-Notar, entretanto, ser perfeitamente possível, a curto e médio prazo, tomar uma série de medidas e desencadear acções que visem atenuar a situação.

17-Exortar, assim, o Governo Angolano a adoptar com urgência uma política que reflicta em toda a cadeia de existência do livro, da sua criação e produção até à sua difusão e leitura.

18-Exortar também o Governo a adoptar uma política imediata da aquisição regular de livros de autores angolanos, para fornecimento às bibliotecas públicas e outros organismos oficiais, incluindo as embaixadas angolanas no estrangeiro, o que contribuirá para a normalização e desenvolvimento da edição de livros nacionais.

19-Exortar ainda o Governo e, especificamente, o Ministério da Educação, a criar uma biblioteca ou sala de leitura em cada escola do país, a incluir obras de autores angolanos nos currículos de português e a introduzir a disciplina de literatura angolana nos diversos programas escolares, a todos os níveis.

20-Recomendar às editoras, públicas e privadas, um maior empenho, imaginação e ousadia na sua tarefa de edição e difusão do livro, encontrando formas mais ágeis e directas de distribuição e de promoção, inclusive mediante a busca e utilização de canais inovadores de comunicação com o mercado, além das livrarias tradicionais.

21-Exortar as diferentes organizações da sociedade civil a participarem igualmente no esforço de de promoção e difusão do livro, pela sua importância para a formação dos homens, para a consolidação da democracia e para a efectiva construção da cidadania.

22-Apelar aos meios de comunicação social, públicos ou privados, que melhorem a sua cobertura das actividades literárias e culturais em geral e que, no âmbito das suas responsabilidades sociais, apoiem igualmente o esforço de promoção e difusão do livro que urge desencadear no país.

Os participantes do 1º. Encontro de Escritores Angolanos, tendo notado que, obviamente, os problemas não se resolvem apenas com a formulação de uma série de conclusões ou com a eventual tomada de medidas que não são executadas, decidiram ainda o seguinte no plano do:

SEGUIMENTO E ACOMPANHAMENTO

23-Remeter as conclusões finais do Encontro ao Ministério da Cultura, para que esse organismo as encaminhe ao Conselho de Ministros da República de Angola, a fim de se dar o tratamento devido às sugestões aprovadas pelos participantes.

24-Criar uma estrutura informal de coordenação, constituída desde já por representantes da Associação Chá de Caxinde, da União dos Escritores Angolanos e da Associação dos Editores e Livreiros de Angola, a fim de darem o seguimento às conclusões do Encontro e manterem um diálogo permanente com o Ministério da Cultura sobre a sua implementação.

O 1º. Encontro de Escritores Angolanos

Lubango, 8 de Agosto de 2004 

Nunca me esqueço das coisas importantes que aconteceram e acontecem, principalmente aquelas que nos dizem respeito. Que me lembre, não saíu das recomendações do Encontro nenhuma medida prática. Nunca o nosso nome ou a nossa iniciativa foram citadas como seria expectável. Afinal, acontecia o mesmo de sempre a que já nos habituáramos nessa altura.

Resta-me dar por finda esta incursão pela vida passada da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. Pode ser que regresse com mais alguma lembrança. Despeço-me, apresentando aos meus leitores e amigos cordiais cumprimentos. Espero que tenha valido a pena e conto voltar ao vosso convívio no próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 5 de Novembro de 2023

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