NA ROTA DO CAXINDE (3)

Foi excepcional sem dúvida, mas … as suas palavras não passaram da cabina de locução nem à Catumbela ou Benguela, chegaram porque, verdade verdadinha, é que a alocução do Governador não chegou à Catumbela nem a Benguela, porque não foi para o ar!

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

Cerca de quatro anos depois de ter sido criada, a Associação Cultural e Recreativa “Chá de Caxinde”, iniciou um ciclo de actividades a que deu o nome de “Chá à sexta”. Ocorriam às sextas-feiras e o primeiro desses encontros teve lugar em finais de Agosto de 1993, precisamente na velha sala do Nacional Cine-Teatro. Tinha-nos sido entregue há pouco tempo  pelo Ministério da Cultura, sob contrato, e tratávamos afincadamente da sua recuperação.

Norberto de Castro

Foi primeiro prelector o jornalista e deputado Norberto de Castro, contava ele nessa altura, 57 anos. Lembro que a sessão não foi muito concorrida, e Norberto de Castro dissertou a partir do camarote da velha sala de espectáculos. Agarrou no tema “Informação, preceitos e preconceitos”. Constatado que ainda não era o local ideal para esse tipo de actividade, decidimos mudar de local. Infelizmente, não nos foi possível recuperar esse importante texto, razão pela qual não o reproduzo aqui. Por isso, e talvez por influência da questão aliciante que continua e continuará sendo entre nós a comunicação social, dou lugar hoje à intervenção do velho radialista Mesquita de Lemos na sessão de 3 de Setembro de 1993, no Clube Marítimo da Ilha de Luanda. Tal como ele a escreveu, sem tirar nem pôr, em papel timbrado da Rádio Nacional de Angola, e a leu:

Mesquita Lemos

1931 A 1993 – A RÁDIO EM ANGOLA

“Com efeito, sessenta e dois anos estão vividos, estão deitados para trás, não completamente despreocupados como se calcula. Foram anos difíceis para todos aqueles que aderiram a associar-se aos microfones e dele fazer um veículo de ideias, de impressões, de alegrias e muita desilusão e tristeza. Mas talvez que este condimento negativo tenha dado o tempêro necessário a todos quantos desde sempre, aderiram a fazer do microfone o seu melhor amigo o seu companheiro. E dessa associação terá nascido a força que anima tudo e todos os da Rádio, e criado esta vida que vem de 1931 até aos nossos dias.

Dizem que o primeiro homem que se agarrou aos fiozinhos da Rádio, terá sido um homem chamado Eliseu, funcionário dos Correios de então e que vivia na cidade do Huambo. Mas foram apenas os primeiros vagidos, logo calados porque se tratava apenas de uma intenção amadorística. A prova final, aquela que seria dar a Rádio para Angola a sua projecção ao longo destes sessenta e dois anos de presença contínua, essa viria a ter lugar em 28 de Fevereiro de 1931, na cidade das Acácias Rubras, São Filipe de Benguela. Foi Álvaro de Carvalho o pioneiro, foi ele realmente o Papá da Rádio, como carinhosamente ficou conhecido. Hoje existe uma placa comemorativa que atesta o facto, placa colocada na parede do Edifício onde funcionou mais tarde o “Jornal de Benguela”. Álvaro de Carvalho viveu naquele prédio e ali, a poder de muita vontade forte, de muito amor pela sua “menina” como ele lhe chamava, fez nascer a Rádio em Angola, esta Rádio hoje bem diferente da de então, mas uma respeitável dama que devemos respeitar e venerar. Pouco tempo depois Álvaro de Carvalhotransferia-se para a vizinha cidade do Lobito e em duas residências distintas viria a formar a sua CR6AA. Viria a terminar seus dias em 1959 na sua linda residência da Restinga, de onde se ouvia sempre a voz da sua “menina” e de onde conseguiu criar o atractivo espantoso que é a Rádio, “bicho imediato” que não tem contemplações para ninguém. É o que é, hoje é um instrumento de múltiplas vertentes, principalmente para o bem e para o mal. É uma Força Terrível e ela tem sido profundamente aproveitada nas ofertas que ela nos faz a todo o momento. Saibamos utilizá-la, não façamos dela uma arma que a determinado tempo se vire contra nós, qual novo “Aprendiz de Feiticeiro”.

Álvaro de Carvalho fez a Rádio daqueles tempos e levou para junto de si todos quantos mais tarde viriam a ser excelentes trabalhadores do microfone.

Eu fui um dos seus amigos mais próximos e contudo nunca ultrapassei os umbrais das suas portas como colaborador de emissões, mas visitava-o assiduamente. Vezes imensas procurou levar-me para a sua CR6RS, ou seja no Rádio Clube do Sul de Angola, mais tarde Rádio Clube do Lobito e hoje, mais ou menos, a Emissora Regional do Lobito vivendo em novas instalações no centro da cidade do Lobito. O então chamado “Bolo de Noiva”, dada a curiosa configuração arquitectónica do Edifício, era a sede do Rádio Clube do Sul de Angola.

Mas eu falo subitamente CR6RS, sem ter referido que após o nascimento da CR6AA em 28 de Fevereiro de 1931, a paternidade de Álvaro de Carvalho viria a ser seguida prolífera e o nascimento do Rádio Clube de Angola em 3 de Fevereiro de 1938 viria a dar continuidade a toda a Rádio que apareceu em Angola. Não vamos falar cronologicamente, mas apenas falar de Benguela, Lobito, Huambo, Huíla, Moçâmedes, Silva Porto, Malange, Cabinda, Uíge então “Carmona”), N`Dalatando (então “Salazar”) e todas as restantes cidades Capitais de Distritos que depois passaram a ser Províncias. E não esquecer que em Luanda havia a Rádio Eclésia, Emissora Católica e mais uma dependência do Rádio Clube Português. Toda esta proliferação trouxe um avanço imparável na técnica utilizada, nas como instalações de cada Rádio Clube, com sedes de qualidade que ainda resistem a todas intempéries, como o Rádio Clube de Angola onde encontra a instalar-se a Rádio Escola, transferida de outro local onde funcionou durante anos.

No complexo do Rádio Clube de Angola, graças à qualidade dos seus Edifícios e também na procura de melhor servir a Comunicação, outras instalações estão em vias de implementação. E derivam precisamente da necessidade de dar mais e melhores conhecimentos aos novos, aos muitos que nós esperamos venham a surgir. Acreditem que vale a pena.

A vida radiofónica de então era feita amadoristicamente, como é lógico. Era o princípio da obra que hoje está erguida, está no ar e por tal aqui estamos todos a festejar um primeiro aniversário de uma voz mais que enche o éter angolano, valorizando-o sem dúvida alguma. E todas as outras vozes já existentes, todas as “LACS” actuais e mais as que vierem, cabem na mais sã das vivências. De resto isto já está a acontecer, contrariando as previsões dos “pessimistas”, que os há em todos os tempos e em todas as actividades que ajudam a fazer a nova vida, mormente esta a que nos associamos, um tão terrível como atraente “bicho”, que é o microfone.

Voltando a Álvaro de Carvalho. Teve uma vida carregada de êxitos e também de aspectos negativos, alguns que afinal estavam inerentes ao amadorismo da época e ao seu desejo de sobressair, o que muitas vezes aconteceu, mesmo quando usou de subterfúgios, nem sempre bem aceites mas que acabaram por compreender-se. Um episódio da sua vida, completamente inserido nas considerações que fiz, está aquele que vou procurar contar e que deslustrou a vida do “pioneiro da Rádio”, que foi a de Álvaro de Carvalho.

O CFB – Caminho de Ferro de Benguela – vivia uma verdadeira convulsão social que levou a sua enorme massa de trabalhadores do Lobito ao Luau a entrarem em greve por discordâncias com a sua magestática Direcção, conflito que levou à efectivação de um duelo entre o Director da Companhia, Engenheiro Virgílio Escudeiro e o então Governador de Benguela, um fogoso Oficial, senhor das suas prerrogativas e de Governo e de autoridade. E bateram-se num lugar isolado e sem vencidos nem vencedores, apenas um grande arranhão na face do Engenheiro Escudeiro. Depois dessa cena algo medieval, com espada e tudo, foi a transferência do Governador, substituído por uma figura carismática das Governações Distritais da época. D. António de Almeida. Um dos primeiros actos da sua actuação, foi dirigir-se aos grevistas do Caminho de Ferro de Benguela.  Mas como fazê-lo, desde Benguela, até ao Luau? Bem… no Lobito estava Álvaro de Carvalho e a sua CR6AA. Teve uma ideia que hoje chamamos “genial”: Trazer D. António de Almeida à sua CR6AA, levando-o a fazer a alocução de apaziguamento dos espíritos exaltados dos grevistas. E D. António de Almeidaque era um homem muito inteligente e um íntegro Governador de época, foi na conversa fiada, muito radiofónica… e deslocou-se ao Lobito aparatosamente para fazer – como se fez – a sua alocução de Paz aos grevistas! Foi excepcional sem dúvida, mas … as suas palavras não passaram da cabina de locução nem à Catumbela ou Benguela, chegaram porque, verdade verdadinha, é que a alocução do Governador não chegou à Catumbela nem a Benguela, porque não foi para o ar!

O facto, criou comentários e a aura de Álvaro de Carvalho foi em pouco tempo embaciada temporariamente ou ele não fosse o “pioneiro da Rádio” … tinha muita iniciativa e muitas portas de saída. Apesar de alguns aspectos negativos, foi uma figura que nós sempre nos habituámos a considerar, a admirar.

Gostaríamos que o seu nome fosse recordado como símbolo da nossa Rádio, porque todas as grandes figuras sempre foram feitas de pólos negativos e positivos. Álvaro de Carvalho assim foi!

Ele nos ensinou a aceitar o que de bom existiu sempre na sua actividade de Papá da Rádio: Foi ele que animou todos os que se lhe seguiram até aos nossos dias. Falar da “Rádio em Angola” é falar de Álvaro de Carvalho o Papá da Rádio e como todos lhe chamámos apesar de conhecermos as coisas negativas que às vezes ensombraram a sua vida até 1959 quando na sua residência na Restinga do Lobito, descansou para sempre.

É pouco, muito pouco, uma lápide com o seu nome na parede de um Edifício de Benguela. Há que criar o “PRÉMIO ÁLVARO DE CARVALHO”, para o jovem locutor que venha a distinguir-se na vida da Rádio, tão atraente que nos marca pela vida fora.

E também não deixemos de pensar a sério na criação do “Museu da Rádio”, a oferecer a todos os novos, os futuros continuadores…”

A segunda parte da extensa intervenção de Mesquita Lemos será oferecida aos leitores no próximo domingo. Até lá, aceitem o meu abraço, com o desejo de nos encontrarmos para a semana e, como tem sido hábito, à hora do matabicho.

Lisboa, 15 de Outubro de 2023

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