Hoje, sábado 2 de Abril, acordei com reflexões acumuladas da nossa relação com a família Flores. Nos tempos próximos da nossa Independência (1975) conheci, nas farras do Marçal da Filó Fernandes, um bate-chapas da Lusolanda que era o DJ, e que no exercício da sua actividade, também conseguia dar as chamadas “passadas a Cabé”, que deixavam os presentes delirantes.
Na sequência dessas farras que registavam a marca das melhores a nível dos bairros suburbanos de Luanda, o humilde DJ viaja vezes sem conta para a pitoresca vila de Calulo, onde exibia os seus dotes ao lado dos maiores dançarinos da época, mas sempre aliado a uns engates amorosos, porque o kamba, nestas matérias, não tinha mesmo preguiça. De vez em quando, fazia-se acompanhar de um filho de três anos, facto que gerava comentários de algumas pessoas. Mas o Cabé respondia: “Ele gosta de ouvir a nossa música e de dançar”.
Anos mais tarde, o cenário repetia-se com o Kiari (seu neto), ainda mais novo e ao colo da mãe, a assistir ao espetáculo do pai, o Paulo Flores, na C70. E quando se ouviam comentários sobre o tema, eu respondia: “Não se metam nisto, porque muita gente já se enganou com o pai”.
Neste percurso, que já representa a minha relação com esta família há quase 50 anos, alguém ousava comentar: “Mas o Kiari não deveria estar a estudar”? E voltei a afirmar: “Nesta família a música e, em especial o Semba, cruza-se com o nascer dos dentes e a educação, a humildade, o amor a música e a terra, compõem a conduta bíblica, do rumo das suas vidas”.
No início da carreira artística do Paulo Flores, o Cabé (pai) dizia, naquele vozeirão rouco que caracteriza a família: “O puto é bom e vai vencer”.
Não me recordo, alguma vez, ter discutido com Paulo Flores o seu cachet de espectáculo, porque a sua educação sobrepõe-se a isso. E decidimos sempre sobre o justo e não sobre o lucro. Cheguei a constatar, no início da nossa relação, que o Paulo Flores, depois de receber o cachet, reduzia a sua parte para reforçar a remuneração dos colegas.
Anos mais tarde, esta prática passou-se com o Wlady e depois para o Marcos (meus filhos), com quem se relacionam e se tratam como primos.
Descrever o Cabé é um exercício difícil, porque foi um humilde operário, mas, repleto de virtudes no campo dos valores mais nobres da vida, como a simplicidade, a lealdade com os amigos, alegria de viver e profundo amor à música e à terra que o viu nascer.
O produto gerado por este homem, neste domínio, ganhou um local de exposição que o Kiari, aos 5 anos, dizia: “Este palco (C70) é meu e ninguém pode tocar na bateria”, que o padrinho, o Mário Furtado, carinhosamente, lhe ensinava.
Este sentimento de posse, aliado a história musical da família, conferiu ao Kiari a dimensão cultural, artística e patriótica invulgar, de um jovem que hoje, aos 19 anos, partilha o palco com monstros da música, como Manecas Costa, Piricas Duia, João Ferreira, Chico Santos e tantos outros.
Esta fonte histórica, aliada a um público leal ao artista e a Casa, criaram uma mística geracional inesgotável, que tem proporcionado, a cidade de Luanda, os melhores momentos de alegria e de felicidade, mesmo quando à nossa volta, sinais contrários se apresentem, porque as doenças e a sobrevivência fazem-nos, por vezes, não estar no melhor momento.
Este registo histórico e geracional permite-nos concluir, que a família Flores, através do Paulo agora, conseguiu inscrever o seu nome nas páginas douradas da música angolana, sendo imprevisível o que o futuro poderá ditar.
O tempo passou e o nosso puto, agora com 50 anos, tornou-se mesmo grande e maior será se continuar nessa rota de maturidade profissional e comportamental que está a assumir.
Mas, neste momento, não temos dúvidas que Paulo Flores é, definitivamente, o nosso first one do Semba. Angola merece-nos assim!
Carlos Cunha “Oka”