Limpar a sala ou fechar a torneira que a inunda?

O que se passou em Malanje é um bom exemplo das práticas governativas que desvalorizam as instituições e inquinam o desenvolvimento. Depois do “brilharete” de 2022 que o Executivo sobrevalorizou, o crescimento do PIB pode cair para menos de 1% em 2023.

FERNANDO PACHECO

Um ano depois de iniciado, o segundo mandato do Presidente João Lourenço está longe de poder ser considerado “globalmente positivo”, ao contrário do que acontecia no anterior. Desde logo pelo imbróglio gerado por omissões ou decisões de sua responsabilidade: a ausência de reflexões cuidadas sobre os magros resultados eleitorais e sobre a corrupção que tem vindo a aumentar; e a patética decisão relativa a uma nova divisão político-administrativa que, sem ajuizar os elevadíssimos custos que comporta, não oferece qualquer outro benefício que não seja a criação de novos obstáculos às temidas eleições autárquicas.

Como se não fosse pouco, o país foi surpreendido pelo mal gerido episódio de uma eventual candidatura de João Lourenço a um terceiro mandato de Presidente da República, numa altura em que a sua popularidade atinge o mais baixo nível de sempre. Foi surpreendido ainda pela crise de Junho, quando, perante uma brutal desvalorização do kwanza (que faz com que a dívida pública atinja o valor equivalente a 92% do PIB), o Executivo decidiu mexer no subsídio ao preço da gasolina, uma medida que, embora peque por tardia, foi implementada de modo desastroso, o que provocou mais uma onda de manifestações, tratadas com a tradicional falta de fair play democrático. Todos estes casos inquinaram o ambiente político geral e a já abalada confiança dos cidadãos e dos empresários.

As fugas para a frente do MPLA e seu Executivo revelam, para além da ausência de uma estratégia de desenvolvimento minimamente coerente, uma fragilidade institucional que inviabiliza o que de bom, reconheçamos, também acontece. Instituições já de si subalternizadas pelas inúmeras comissões multissectoriais, que privilegiam ao absurdo a filiação partidária, a hierarquia cega, a mentalidade policial e securitária, por um lado, e que estão mais preocupadas com o hardware, isto é, o betão, que depaupera as sempre escassas divisas, em prejuízo do reforço das capacidades humanas, por outro, são efectiva e objectivamente instituições extractivas que esbulham o povo angolano.

Uma análise do que ocorreu durante a recente visita do Presidente da República a Malanje permite perceber como o pensamento e a prática governamentais distorcem a solução efectiva dos problemas da economia e os chamados problemas do povo. Ela seria uma oportunidade para a resolução conjunta dos problemas locais, mas o que ressaltou foi o voluntarismo e a desvalorização das instituições, o que alimenta o culto da personalidade do chefe, cada vez menos encapotado.

A Biocom é um empreendimento eficaz, que já consegue produzir 40% das nossas necessidades de açúcar, mas o mesmo não se pode dizer da sua eficiência. Há uma capacidade industrial ociosa desde o seu início há 10 anos e em perigo de degradação, os gastos com assistência técnica expatriada são incomportáveis e, naturalmente, o último relatório do IGAPE sobre o Sector Empresarial Público alertou para o estado de falência da empresa, o que foi simplesmente ignorado e desvalorizado durante a visita.

Alertei em devido tempo (2018) para o erro que era o investimento de 123 milhões de dólares na irrigação da agora designada Fazenda Lutete-Quizenga, uma vez que o histórico recente de projectos irrigados foi tão negativo que levou à extinção da SOPIR-Sociedade de Perímetros Irrigados, EP e que estava decidido acabar com empresas públicas de produção agrícola. Fiquei decepcionado ao ouvir a decisão “in situ”, sem uma base de conhecimentos ou estudos, de fazer do empreendimento o suporte do futuro maior instituto superior agrário angolano, passando por cima da Chianga, onde a ausência de atenção e de investimento impedem que ali, sim, possa florescer a mais importante escola de agronomia, dada a sua história, o potencial já existente e a presença sinergética do Instituto de Investigação Agronómica. Este, como outros centros de investigação, espera há anos pelas verbas prometidas para quando o OGE passasse a destinar 1% das suas despesas para a investigação científica. Entretanto, convém que se saiba que em Angola temos, não apenas uma, como disse o Presidente, mas pelo menos mais cinco escolas superiores agrárias, sendo três públicas (Sumbe, Uíge e Onjiva) e duas privadas (Lubango e Libolo). Como fazer funcionar, ainda por cima com o nível de excelência pretendido, um estabelecimento universitário numa comuna como a Quizenga, sem condições nenhumas para instalar estudantes e professores, o que obrigaria a um elevado investimento na construção de uma nova cidade e mesmo assim seria duvidoso que viesse a atrair alunos e professores de qualidade? O Presidente precisa de saber, também, que existem dois problemas sérios com o ensino agrário. Primeiro, a fraquíssima procura de vagas existentes (para este ano lectivo a Chianga teve 170 candidatos para 60 vagas, contra 3 mil para 80 na Faculdade de Medicina do Huambo) e, depois, as dificuldades na utilização de recém-licenciados no sector, quer por falta de oferta de empregos, quer por maior atractividade de outros sectores, como, por exemplo, a educação. Um problema mais sistematicamente ignorado e sem solução aparente.

Seria espectável que o Presidente falasse dos problemas ligados às pessoas, como a pobreza (como fizeram Lula e Graça Machel, para vergonha nossa), o emprego, a falta de pessoal técnico para as unidades de saúde construídas no âmbito do PIIM e para as estruturas de extensão do Ministério da Agricultura, ou a importância da educação para a saúde para aliviar os hospitais. Os empresários esperavam, igualmente, uma palavra sobre a dívida pública, sendo que parte dela arrasta-se desde 2014 e é responsável pelo encerramento, efectivo ou próximo, de muitas empresas. Não aconteceu nada disso.

Em contrapartida, falou muito de infraestruturas. De centralidades (indiferente aos enormes constrangimentos que a sua gestão e manutenção acarretam e põem em causa a sua viabilidade e até o próprio património), hospitais (sem dar resposta ao às preocupações do governador sobre a falta de técnicos para os existentes) e de infra-estruturas para o ensino superior em cinco províncias, sem falar da baixa qualidade do ensino.

O que se passou em Malanje corresponde a uma ideologia errática e intencionalmente indefinida, associada à espoliação das riquezas minerais e de todas as outras e à captação das divisas pelas elites dirigentes, o que explica a obsessão pelo betão e pelo despesismo e a preocupação última com a manutenção do poder a todo o custo. Uma ideologia que se assume capitalista, com uma espécie de capitalismo não de Estado mas com o Estado, e segue o modelo “soviético” no que ele tinha de pior, a idolatria em relação ao que é grande e mais vistoso, sem preocupação com a disponibilidade e boa gestão dos recursos e com a participação dos cidadãos em geral e dos actores económicos em particular, algo que explica, em parte, a falência dos antigos países do bloco de Leste. Uma ideologia que encoraja a politização de um banco como o BFA, numa altura em que Angola está de novo sob mira do GAFI. Uma ideologia que favorece práticas de corrupção, sendo indesmentível o regresso dos casamentos na Europa em ambientes de luxo só comparáveis aos da alta burguesia desse continente. Dir-se-á, claro, que quem financia tais casamentos não pode ser condenado, ou mesmo questionado, por falta de provas, tal como no passado se dizia dos agora chamados marimbondos.

O que se passou em Malanje é um bom exemplo das práticas governativas que desvalorizam as instituições e inquinam o desenvolvimento. Depois do “brilharete” de 2022 que o Executivo sobrevalorizou, o crescimento do PIB pode cair para menos de 1% em 2023. Com a sala molhada pela água que jorra da torneira, a preocupação de quem zela por ela é apenas a de limpá-la, nunca a de fechar a torneira que, indiferente, continua a jorrar água.

Publicado no Novo Jornal, 15/9/23

Nota: Esta versão tem pequenas alterações em relação à publicada no Novo Jornal, assinaladas a negrito.

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