JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS. UMA FIGURA INOLVIDÁVEL (2)

MOISÉS CHISSANO*

O que mais me fascinava em José Eduardo dos Santos era, entre outras coisas, a sua simplicidade. 

Devo dizer, quiçá à guisa de ressalva, que ele sabia onde e quando ser formal, bem como onde e quando tal postura era dispensável. 

Certa vez (não me recordo do ano) fomos à República da Zâmbia, mais precisamente a Mulungushi Rocks, localizada numa das muitas províncias da pátria de Kenneth Kaunda, para participar num aniversário do partido (então único) UNIP (United National Independence Party).

Realizado no meio da mata, os aposentos eram autênticas casotas construídas em adobe e cobertas de capim. Um cenário verdadeiramente rural e rudimentar, em que os WC tinham alguidares, cheios de água à temperatura ambiente, o mesmo é dizer, água fria. Era com essa água que se esperava que os ilustres visitantes convidados (chefes de Estado) deveriam fazer a sua higiene e utilizá-la para tudo o que se pode fazer na “privada”, como dizem os brasileiros.

Por causa dessas condições, José Eduardo dos Santos confidenciou-me que não aguentaria ficar por lá os 3 dias previstos, pelo que, no dia seguinte, regressaríamos a nossa terra.

Estávamos sentados no sítio com todos os ilustres visitantes e com o anfitrião a falar para a audiência, quando, a dado passo, o mesmo (Kaunda) informou que perdera muito recentemente um filho, portador do SIDA.

Ao ouvir isso, José Eduardo dos Santos virou-se para mim e perguntou: há muitos casos de SIDA por aqui camarada Chissano? Eu: sim camarada Presidente, antes de virmos para aqui li alguns jornais e revistas locais, e acabei sabendo desta mui triste realidade. Aí o Chefe disse-me: então agora entendo, a rapaziada aqui é muito mexida e é por isso que se vê muitas “kitias”** a girarem por aí! Ao meu olhar de espanto o Chefe completou: camarada Chissano, a partir do meu quarto no hotel em que estamos alojados (Hotel Intercontinental), deu para ver as camaradas a se movimentarem muito!

Pouco depois, prevendo que a qualquer momento poderia ter necessidade de “tirar água do joelho”, disse-me: oh camarada Chissano, estamos longe das cubatas que o kota Kaunda arrumou-nos, não haverá por aqui umas “divundas”*** onde uma pessoa, tendo necessidade, possa urinar?! Que chatice!

Como podem imaginar, limitei-me a ficar caladinho, a degustar essa maneira de ser muito simples por parte de uma pessoa então muito poderosa, mas que nunca se esquecia que era um comum mortal.

Minutos depois fez o seu discurso, para a seguir se desculpar alegando que tinha de regressar ao país de imediato.

Seguimos para um aeródromo com a delegação do Presidente Joaquim Chissano, de Moçambique, onde embarcámos num DC6 da Força Aérea Zambiana que nos transportou para Lusaka, em cujo aeroporto se encontrava o nosso Boeing 737.

Meia hora depois descolámos rumo ao “4 de Fevereiro”.

* ⁠Foi tradutor oficial do Presidente José Eduardo dos Santos

** Damas; moças.

** Arbustos com muitas folhas, moitas.

P.S.: Nesse evento, conheci pessoalmente Yasser Arafat, histórico líder do povo palestino.

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