JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS. O PERCURSO DE UMA FIGURA INOLVIDÁVEL

José Eduardo dos Santos, o político angolano que comandou as nossas vidas enquanto cidadãos e não só desta terra durante 38 anos com os inerentes altos e baixos, i.e., com acções muito boas, boas e menos boas, se estivesse vivo completaria hoje, 28 de Agosto, 82 anos. Faleceu a 8 de Julho de 2022.

MOISÉS CHISSANO*

Quando a tua hora de partir chegar, saberei onde encontrar-te Camarada Presidente. São inúmeras as boas memórias que de ti guardo. Quanto às tristes, há muito que as deitei fora. Fiz isso seguindo o que diz o livro dos livros: “Perdoai para que sejais perdoados”.

Em verdade, encontrar-te-ei no teu gabinete de trabalho, na tua residência no Futungo de Belas, mas também na tua sala onde recebias as visitas de trabalho no outro imóvel, perto da antiga assessoria diplomática e onde, por muitos e longos anos, trabalhou o teu grande director de gabinete, o muitíssimo culto Assunção Afonso de Sousa dos Anjos, uma verdadeira biblioteca em pessoa.

Encontrar-te-ei rememorando as inúmeras audiências em que tinham lugar cativo os teus saudosos colaboradores/correligionários, mas essencialmente teus fiéis amigos Mbinda (Afonso Domingos Pedro Van-Dúnem) e Loy (Pedro de Castro Van-Dúnem) e o teu fiel e incansável servidor Man Venas (Venâncio da Silva Moura).

Encontrar-te-ei nas inúmeras conferências-cimeiras em que pontificavam os teus colegas e amigos, entre verdadeiros e falsos combatentes do apartheid, da região austral do continente berço. 

Encontrar-te-ei, rememorando-te sentado no teu lugar, a bordo do nosso Boeing 707 comandado por José Luís Prata a caminho de Lusaka, de Maputo, de Harare, de Dar-es-Salaam, de Arusha, de Addis-Abeba, de Kinshasa, de Gbadolite, de Brazzaville, de Pointe-Noire, de Libreville, de Franceville, de Lagos, de Abuja, de Casablanca, de Marraquexe, de Lisboa, de Paris, de Genebra, de Moscovo, de Minsk, de Nova Delhi, de Bombaím, de Pyongyang, de Pequim, de Guangzhou, de New York, de La Habana, da cidade da Praia, de Praga e de tantas outras cidades e lugares demandados e palmilhados no longo e penoso processo de busca da PAZ para a tua e nossa pátria, à qual desde muito cedo te entregaste de corpo e alma. 

Encontrar-te-ei sempre que rememorar todos aqueles momentos, em que confiavas em mim a tarefa de traduzir e interpretar, essencialmente para a língua de Shakespeare, os teus escritos e os teus pensamentos políticos, económicos, militares e não só. Encontrar-te-ei sempre, que rememorar aqueles momentos em que com um olhar me transmitias o teu estado de alma, particularmente naquelas reuniões e encontros em que encontravas mais barreiras e entraves, do que entendimento ao teu pensamento estratégico relativamente ao que fazer, para a dinamização da luta contra o então inimigo instalado em Pretória. 

Encontrar-te-ei rememorando um momento em que, como jamais eu havia visto, deste-nos, a mim e ao Victor Lima, quiçá o teu maior exemplo de como usar a humildade, como instrumento na política e na diplomacia, quando consentiste que o presidente Mobutu se referisse a ti sem respeito e sem maneiras, mas porque sendo ele na altura o ponta-de-lança da América imperialista no seu ponto mais alto contra Angola, preferiste aceitar a humilhação em nome da busca da PAZ para o teu povo e país. Lembraste desse dia Camarada Presidente? Isso aconteceu entre as 3 e as 4 horas da manhã, de um dia no mês de Dezembro de 1989 em Brazzaville. Por uma razão que nunca entendi, deixaste o teu ministro das Relações Exteriores no hotel e decidiste levar somente o Víctor Lima e eu. Estavam, nessa madrugada, os presidentes Omar Bongo, Sassou Nguesso, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Mali (em representação do seu chefe de Estado que tivera de abandonar aquele encontro devido ao falecimento do seu pai naquela noite) e o próprio Mobutu, encontro esse organizado às pressas por Sassou Nguesso.

Encontrar-te-ei rememorando a vez em que, no final de uma longa digressão pela África, Ásia e Europa, visitámos o Reino do Marrocos e Sua Majestade o Rei Hassan II teve a triste iniciativa de dizer algo que jamais deveria ter dito. Profundamente irritado, mas sempre com muito respeito e total elevação, traços que, entre outros, te caracterizam, deste-lhe uma verdadeira aula de Direito Internacional e de Política, tendo o anfitrião ficado visivelmente envergonhado e admitido o seu erro. Foi nessa noite que eu jantei sentado entre um rei, à minha esquerda, e um presidente da República, o do meu país, à minha direita. There’s no way l can forget this Mr President.

Encontrar-te-ei na Cimeira de Gbadolite, particularmente naquele momento em que, ao decidires fazer fé nas bonitas palavras a dado passo proferidas pelo Dr. Jonas Malheiro Savimbi, levantaste-te inesperadamente da tua cadeira, e contra as expectativas dos teus então melhores amigos (chefes de Estado) Manuel Pinto da Costa e Nino Vieira (estavas sentado entre os dois, lembras-te?), dirigiste-te para o lado de lá da mesa em passos vigorosos, para apertares firmemente a mão do presidente da UNITA porque acreditaste naquele momento, que a PAZ havia finalmente chegado! Bem que tentaste disfarçar Camarada Presidente, mas… nesse dia… vi-te chorar… e então aprendi que os GIGANTES TAMBÉM CHORAM. Nessa noite, quando nos encontrávamos no pequeno aeroporto daquela terra natal de Mobutu, Gbadolite, enquanto esperávamos alguns minutos antes de embarcarmos para o regresso ao nosso país, o comandante José Luís Prata olhou para mim e, apontando para ti, disse: camarada Chissano, este homem é um PRÍNCIPE DA PAZ! Isto foi no dia 22 de Junho de 1989.

Encontrar-te-ei também sempre que rememorar os últimos 25 a 30 minutos do voo (descida do avião em que seguíamos para o aeroporto Sheremetievo) que fizemos entre Pyongyang e Moscovo, quando me entregaste quarenta, isso mesmo, quarenta (40) dólares americanos a fim de comprar laços para o cabelo da tua primogénita, a então menininha, hoje mui prematuramente viúva, Isabel dos Santos, e loiça para a tua irmã, a tua mana Marta. Disseste-me para comprar laços para cabelo de 15 dólares e loiça de 25 dólares. O hoje general João Pereira Massano, na altura ainda muito jovem, major, a estudar na URSS, é a pessoa que o então embaixador naquele país, José César Augusto (Kiluanji), colocou à minha inteira disposição para me movimentar pelas ruas de Moscovo a fim de fazer as tuas compras, as compras do “Chefe”. 

Camarada Presidente, o que oiço e leio hoje nos media está em extrema contradição, está no extremo oposto do que ouvi e traduzi para o Dr. Orama, teu médico na altura, quando ele e eu nos reunimos com o Director de uma clínica em Praga, para nos inteirarmos dos resultados dos exames médicos que tiveras feito naquela cidade após chegarmos de Minsk, Bielorrússia, no quadro da digressão a que aludi acima. Segundo aquele Director, a tua saúde era 1A, ou seja, não havia ninguém mais saudável do que tu! 

Desnecessário será dizer, Camarada Presidente, que todos aqueles que te amam de verdade estão deveras tristes e rezam para que mais cedo do que tarde saias do estado em que te encontras e lhes devolvas a alegria e tranquilidade de espírito.

Porque igualmente humanos tal qual nós, os nossos pais também erram. Quando assim acontece ficamos tristes, por vezes muito tristes mesmo, mas o nosso AMOR, CARINHO e RESPEITO por eles continuam.

God bless you.

*No Facebooc, escrito quando José Eduardo dos Santos se encontrava já em coma.

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