A convicção e azáfama de um certo sector da sociedade angolana, imbuído de uma visão hollywoodesca do papel dos EUA no mundo, é que Joe Biden trará consigo o perdão do castigo colectivo a que todo o país foi submetido, assim como o almejado milagre económico.
No dia 13 de Setembro de 2024, um nobre amigo enviou-me o link de um jornal online que replicava a informação sobre uma possível visita do presidente dos EUA, Joe Biden, a Angola. É lógico que reagi com cepticismo, chegando a colocar em causa a credibilidade da “fonte primária”, uma vez que o contexto, tanto a nível da política interna dos EUA, assim como em termos do cenário externo de maior interesse para este hegemon imperial, contrariavam tal possibilidade.
As dúvidas sobre a veracidade do facto foram agravadas pela declaração ambígua do embaixador estadunidense em Angola durante uma entrevista concedida à televisão pública local. Apenas na terça-feira, 24 de Setembro, a notícia foi confirmada pela Casa Branca. Joe Biden estará em Luanda entre os dias 13 e 15 de Outubro.
Empossado em Janeiro de 2021 como 46º presidente dos EUA, Joe Biden viu frustrada a pretensão de concorrer ao segundo mandato, depois de ter sido forçado a desistir da corrida eleitoral por incapacidade de representar os Democratas nas eleições de Novembro de 2024. Porém, Biden segue na presidência, embora diversos sectores internos tenham defendido que o mesmo renunciasse igualmente à administração da Casa Branca.
O facto de presidente dos EUA efectuar uma visita a Angola, a menos de dois meses do fim do mandato, num contexto em que os principais esforços do Partido Democrata estão direccionados para a eleição da sua candidata numa acirrada disputa eleitoral, tem gerado vários questionamentos e preocupações, tanto a nível interno, como a nível regional.
Qual seria a lógica da deslocação de um presidente norte-americano a um país africano no actual cenário? Que objectivos estarão por detrás da visita de Biden a Angola? Entre os EUA e Angola, qual dos países extraí benefícios deste “acontecimento”?
Se por um lado a larga maioria da imprensa, dentro e fora do continente africano, associa a visita de Biden às manobras no quadro da competição entre o Ocidente e a China, relacionadas com a reocupação de espaços de influência, fontes de matéria-prima, controlo de linhas de abastecimento (com destaque para o Corredor do Lobito) e expansão de mercado, por outro lado existem preocupações de que esta aproximação demasiado estreita e sem precedentes entre os EUA e as autoridades angolanas estimule o surgimento de mais conflitos em África.
O portal digital congolês Africa Flashes, por exemplo, chega a indagar se os americanos farão de Angola o mesmo que fizeram com o ex-Zaire, quando Mobutu foi usado por Washington para desestabilizar a região. Existirão fundamentos para tais receios?
Em Junho do corrente ano, tornaram-se virais nas redes sociais e em veículos da imprensa digital, informações sobre a instalação de uma base militar americana no norte de Angola, mais concretamente na região petrolífera do Soyo. O facto veio a ser desmentido posteriormente pelo embaixador dos EUA em Angola. Tais “especulações”, bem como a deslocação de Biden a Angola, ocorrem num contexto visivelmente desfavorável para a influência ocidental e norte-americana na África Austral.
RDC
Na sexta-feira, 13 de Setembro de 2024, um tribunal militar de Kinshasa condenou à pena de morte trinta e sete réus, dentre os quais três cidadãos norte-americanos, julgados pela tentativa de golpe de estado ocorrido em Maio do ano em curso.
Face aos desafios de segurança impostos pelo recrudescimento dos ataques do M23 no Leste do país, o governo da RDC celebrou com a China, a 6 de Setembro do corrente ano, um acordo de cooperação militar. O acordo, que tem como finalidade reforçar as capacidades das Forças Armadas deste país africano, contempla treino militar, fornecimento de equipamento militar, modernização do arsenal militar da RDC com ênfase para equipamento de última geração.
O recente acordo militar entre a RDC e a China representa uma ampliação da cooperação entre os dois países, que já possuem parcerias no sector das infra-estruturas e da mineração.
ZÂMBIA
O presidente zambiano Hakainde Hichilema foi recebido em Pequim pelo presidente chinês Xi Jinping, a 4 de Setembro de 2024. O encontro, que decorreu na atmosfera do 60.º aniversário de relações diplomáticas entre a Zâmbia e a China, representou a consolidação do compromisso firmado entre os dois estadistas em 2023, que consiste na elevação das relações China-Zâmbia “para uma parceria estratégica abrangente”.
Em Agosto de 2022, as exportações chinesas para a Zâmbia totalizaram US$ 92,6 milhões, ao passo que as exportações zambianas para a China, no mesmo período, foram de US$ 513 milhões.
O investimento chinês na Zâmbia tem sido em diversos sectores, com destaque para a mineração, agricultura, manufactura, infra-estruturas e turismo. Dentre os diversos resultados das relações Zâmbia-China constam obras grandiosas com impacto directo na vida dos cidadãos e na revitalização da economia da Zâmbia e de países vizinhos, das quais se destaca a KGL-barragem hidroelétrica sobre o Rio Zambeze, obra da ZESCO e da Sino Hydro, na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbábue. Trata-se de uma barragem projectada para gerar 750 megawatts de energia. O Exim Bank e o ICBC da China custearam 85% da obra (US$ 1,7 bilhões), enquanto o governo zambiano cobriu 15% do orçamento (US$ 300 milhões).
O Aeroporto Internacional Simon Mwansa Kapwepwe e o Caminho de Ferro Tanzânia-Zâmbia (Tazara), que liga o porto de Dar es Salaam, no leste da Tanzânia, com a Província Central da Zâmbia (reabilitado por via de um memorando de entendimento China, Tanzânia e Zâmbia, orçado em US$ 1 bilhão), representam alguns dos exemplos da vitalidade das relações da China com estes países da África Austral.
NAMÍBIA
A parceria entre a Namíbia e a China registou um novo momento no princípio da década de 2000, com o crescimento das trocas comerciais entre os dois países e da participação chinesa na implementação, financiamento e construção de diversos projectos no sector rodoviário, portuário, mineiro, infra-estrutura militar e edifícios governamentais.
Durante uma visita à Namíbia, em 2018, Norbert Lammert, antigo Presidente do Parlamento Alemão (Bundestag), em conversa com o então Presidente Hage Geingob, reclamou que “o número de chineses que viviam na Namíbia naquele ano era quatro vezes superior ao da comunidade alemã”. Perplexo com a ousadia do político germânico, Geingob questionou se o referido facto constituía algum problema para Lammert. O mais alto mandatário desse país africano acrescentou que, enquanto os alemães podem ir para a Namíbia sem necessidade de visto, os namibianos quando se deslocam à Alemanha, incluindo os portadores de passaportes diplomáticos, são alvo de tratamento hostil.
ÁFRICA DO SUL
Além de possuir a maior economia da sub-região Austral do continente, a África do Sul é certamente, a nível da SADC, o país que possui relações mais abrangentes e estratégicas com a China, principalmente pelo facto de ambos os Estados fazerem parte dos BRICS.
As trocas comerciais entre a África do Sul e a China, em 2022, ultrapassaram os R$ 900 bilhões, ao passo que o investimento chinês neste país, com destaque para os sectores da mineração, telecomunicações, manufactura, produção de automóveis, produtos electrónicos e bens domésticos, se aproxima actualmente dos R$ 200 bilhões.
Em Agosto do corrente ano, o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS aprovou um empréstimo de US$ 1 bilhão para o desenvolvimento de infra-estruturas de água e saneamento na África do Sul.
ANGOLA E OS MOMENTOS DECISIVOS DA HISTÓRIA
Em Novembro de 2023, o chefe de Estado angolano foi recebido na Casa Branca. Na altura a euforia mediática em Angola transbordou o limite do tolerável. O facto foi transformado por alguns sectores do nosso país no acontecimento do século. “Em África, para os EUA, não há país mais importante que Angola” – disse Joe Biden naquele momento, para o delírio das almas cândidas em Angola. Hoje, volvido quase um ano, os cidadãos angolanos ainda esperam pelos milagres.
Em Maio de 2024, na decorrência da visita do presidente William Ruto aos EUA, Joe Biden declarou o Quénia como principal aliado de Washington em África. Concomitantemente, a imprensa em língua inglesa considera esta deslocação do presidente queniano à Casa Branca como sendo a primeira visita de Estado de um presidente da África subsaariana aos EUA nos últimos 15 anos. Como ficamos, angolanos?
Como era previsível, o anúncio da vinda do presidente dos EUA a Angola foi imediatamente convertido, por parte da mesma imprensa e comentaristas locais, no “acontecimento histórico” do milénio, que o país necessitava para a solução de todos os problemas. Há inclusive quem cogite que Biden trará na bagagem os tão esperados dólares – o levantamento do embargo monetário a que Angola foi submetida há uma década (um assunto tabu para Luanda).
Em 2015, por orientação do Bank of America, o Rand Merchant Bank da África do Sul proibiu a venda de dólares norte-americanos a Angola, tendo ocorrido igualmente a retirada do mercado angolano dos bancos correspondentes dos países da UE, por decisão do Banco Central Europeu. Uma medida económica draconiana que visava fins políticos – típico do imperialismo americano. Desde então, as transações no sistema financeiro internacional, inclusive o simples acto de enviar ou receber uma remessa de e para Angola tornou-se coisa do outro mundo. O pacato cidadão foi desconectado das Western Union da vida global.
Milhares de pequenos empreendedores viram-se impossibilitados de adquirir mercadorias no Dubai, na China e noutros países, resultando na perda das respectivas fontes de renda. Estudantes angolanos no exterior viram a sua formação afectada por impossibilidade de envio de apoio financeiro por parte dos familiares. Então, a convicção e azáfama de um certo sector da sociedade angolana, imbuído de uma visão hollywoodesca do papel dos EUA no mundo, é que Joe Biden trará consigo o perdão do castigo colectivo a que todo o país foi submetido, assim como o almejado milagre económico.
Não se sabe ao certo, se por uma concepção servil e pelo histórico das Relações Internacionais, ou se por algum compromisso de outra espécie, o facto é que se nota em Angola uma dificuldade de se perceber que o dólar é uma arma da guerra do império. A inexistência, neste país, de um debate sobre a desdolarização gradual da economia ou, ao menos, o recurso a mecanismos monetários alternativos, fora do bloco ocidental, é no mínimo estranha.
O grande evento do ano 2024, e que marcará este primeiro quartel do século XXI, é a Cúpula dos BRICS, que terá lugar em Outubro deste ano em Kazan, na Rússia. Entre diversos assuntos, serão tratados temas como a desdolarização, a implementação de um sistema alternativo de pagamentos, assim como a adopção da The Unity, moeda comum dos BRICS. A The Unity é uma unidade de conta comum, que estaria respaldada em 40% por ouro e 60% por um conjunto de moedas nacionais dos países dos BRICS, que por sua vez estariam respaldadas por matérias-primas. Prevê-se que a The Unity seja um mecanismo eficaz para contrapor a utilização imperial de moedas ocidentais como instrumento de guerra.
Fundado em 2009 por 5 países (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), os BRICS registaram em 2023 o ingresso de mais 5 países (Egipto, Etiópia, Irão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos). Em 2024, mais de 30 países já manifestaram intenção de aderir ao referido clube, entre eles o Burkina Faso e a Turquia. A questão fundamental a colocar é a seguinte: por que motivo muitos países pretendem fazer parte dos BRICS?
Em 2018, os países dos BRICS ultrapassaram, pela primeira vez, a participação dos países do G7 no PIB mundial em termos de paridade do poder de compra. Cinco anos depois, em 2024, a diferença entre os dois blocos a nível do referido item registou um aumento favorável ao clube multipolar. Actualmente, os BRICS detêm um total de 35% do PIB mundial contra 30% detidos pelo G7.
Como vimos, o panorama das opções preferenciais de política externa por parte da maioria dos países da África Austral, no contexto da visita de Joe Biden a Angola, demonstra não um “modismo” adoptado por vários estados da região, mas sim a interpretação de um momento histórico em que dezenas de nações do mundo convergem para uma direcção que tende a materializar os princípios elementares das relações entre os estados baseadas na preservação de interesses comuns e vantagens mútuas, rejeitando deste modo as forças que procuram a todo custo manter vivo o Ancien Régime internacional, em que as relações são entre suserano evassalo.
A vocação histórica de Angola é estar ao lado dos BRICS, onde é possível preservar o interesse nacional sem imposições e sem chantagens. Existe uma nova e inevitável Ordem Mundial Multipolar em ascensão. Angola não se pode dar ao luxo de perder esta janela de oportunidade e, qual masoquista, comprometer a sua soberania e séculos das futuras gerações nos braços do império opressor.
CUI BONO?
Como disse recentemente Jean-Luc Mélenchon, “a política faz-se nas condições culturais de uma história nacional”. Esta sentença do político francês explica plenamente a resposta de Hage Geingob a Norbert Lammert, assim como a observação sobre o tratamento dado aos namibianos pelas instituições alemães, comparativamente ao facto dos cidadãos alemães poderem entrar sem visto na Namíbia.
Este histórico diálogo político e cultural traz à tona uma das grandes vulnerabilidades na relação de governos africanos com governos ocidentais – as cedências não recíprocas. Em algumas situações, no afã de ser-se aceite em determinados círculos internacionais, na expectativa de ver levantado um bloqueio com vista a obter o tão prometido financiamento, ou em função de outro tipo de compromisso, alguns dirigentes africanos são “convidados” a ceder mais do que oaceitável.
As autoridades angolanas cederam à multinacional norte-americana Exxon Mobil o direito de exploração de petróleo na Bacia do Namibe, assim como atribuíram a um consórcio americano e europeu o direito de exploração do Corredor do Lobito, uma das infra-estruturas mais importantes da África Austral. Num contexto em que as tropas norte-americanas estão a ser expulsas de vários países do Sahel, os tribunais da RDC podem “enforcar” três cidadãos dos EUA, e a influência em África é disputada palmo a palmo com a Rússia e com a China, Angola é o país africano que nos últimos anos fez a maior entrega a Washington, actuando em sentido contrário à tendência emancipatória que outros Estados do continente têm seguido. Mas ohegemon é insaciável. Os poderes fácticos por detrás de Biden quererão mais e mais. E como alertou o amigo Aguinaldo Ramos, talvez pretendam inclusive a fidelidade canina de Angola para um domínio norte-americano dentro da CPLP, haja vista a intensificação do interesse do Tio Sam por esta comunidade da lusofonia.
Podiam ser esgrimidas várias teses. Inclusive, do ponto de vista semiótico, face ao quadro continental e regional, a presença de Biden em Luanda pode representar a consumação do controlo estratégico total de Angola por parte dos EUA.
Todavia, as perguntas são as mesmas:
– É possível o estabelecimento de parcerias mutuamente vantajosas entre Angola e os EUA? O que dizem os antecedentes históricos a respeito?
– Que benefícios concretos e directos trará aos angolanos a visita de um presidente dos EUA a um mês do fim do mandato?
Sim! Joe Biden visitará Angola. E depois?
Luanda, 29/09/2024
*Analista de Relações Internacionais