A CIDADE DOS CALHAUS

ZOOM DA TUNDAVALA

AIRES ALMEIDA

Era uma vez…

Podia ser, assim, o começo de uma história qualquer, que transportasse o leitor para um mundo encantado, como começam todas as histórias de sonho e fantasia. 

Podia ser uma narrativa destinada a crianças, com aquela sensação de mistério. Daquelas histórias para adormecer. Mas…

Era uma vez uma cidade, como todas as outras que, foi crescendo, crescendo…

Cresceu muito rapidamente porque para ela vieram povos, vindos de outras terras, desta mesma terra, encantada, mas muitas vezes misteriosa. Povos que vieram, fugidos da guerra e dos seus horrores. Fugidos do medo de perder a vida e os seus entes queridos. Os bens, esses recuperam-se, se perdidos. O que importava mesmo era salvar a pele. Com os povos fugidos da guerra, vieram também outros que diziam em busca de uma nova vida, de melhores oportunidades. Afinal a cidade tinha e tem os seus fascínios, os seus encantos, mas também os seus mistérios, um modo de vida diferente, coisas que nas terras daqueles povos não havia.

E foram vindo, nos quase esquecidos anos 70 e 80. Dizia-se o êxodo para a cidade.

E quando chegaram à cidade, deram-lhes nomes: às vezes eram chamados de deslocados, outras de refugiados. É… isso mesmo, eram refugiados, na sua própria terra, porque tinham fugido de uma guerra que não era sua, mas era civil e, como qualquer guerra, também aquela fez os seus mortos e deixou as suas marcas. Ou simplesmente tinham vindo em busca de uma vida melhor, por condições que as suas terras, ditas de origem, tinham deixado de dar.

A chegada de refugiados ou deslocados, às vezes em levas enormes, fez as autoridades juntá-los em áreas, terrenos, nas arredores da cidade, e deram-lhes a primeira casa: tendas. Que outras pessoas, de outros povos, traziam em carros grandes juntamente com comida. Era tudo dado. Não era preciso comprar nada. Nuns carros estava escrito: PAM, eram os que traziam comida. Noutros, UNICEF, eram os que traziam as casas, que eram tendas, e traziam também cuidados para as crianças. Mas olha só… eram muitas crianças mesmo. Mas eram ainda mais, muitas mais, quando se ouviam os noticiários. Para chamar a atenção. Ou não. O que é dado como certo, é que muita gente se governou, e bem, com os deslocados e refugiados

Com o tempo, as casas, que eram tendas, foram dando lugar a casas, feitas de adobe, porque no tempo da chuva, chovia na tenda, no tempo do frio era frio, mas frio daquele… e as condições de vida eram mesmo muito más. Com as casas de adobe os povos estavam mais protegidos e até podiam colocar portas e janelas. Os povos estavam mais seguros nos adobes do que nas tendas que o sol e chuva foram fazendo envelhecer.

Com a construção de casas de adobe, o espaço, lá, onde começaram a alojar os refugiados nas tendas, passou a ser pouco, era preciso mais. Então, nas calmas, os povos foram-se chegando à cidade, até porque havia muitos espaços vazios, desocupados, onde se foram construindo as casas. De adobe. E os povos construíram como cada um quis. Até mesmo junto dos rios construíram casa de adobe. As ruas que antes eram chamadas de projectadas, receberam casas e mais casas. Não se respeitou nada. Nem ninguém. O que era preciso era levantar as paredes e pôr lá gente a viver. 

E assim se fizeram Kamazingos por toda a cidade. E a cidade cresceu. Estúpida e desordenadamente. No dizer de outros povos, o musseque tomou conta da cidade. Mas tudo à toa, sem respeitar a distância de uma casa para outra, becos e mais becos alguns sem saída. Sem água canalizada. Saneamento básico, xé, nem se fala. Electricidade, foi só fazer puxadas. Pronto, assim mesmo. A rebaldaria foi total. Até deu para ganhar dinheiro: uns produzindo e vendendo adobes, outros construindo casas para os outros, outros faziam que fiscalizavam mas afinal só queriam dinheiro, outros faziam de contas que não estava a acontecer nada. Foi o deixa andar. Ou deixa acontecer.

Engraçado é que, nessa altura, quando os povos deixaram de ser deslocados ou refugiados, porque já estavam mesmo fixados na cidade, quando construíam as casas, não fixavam as chapas das coberturas às suas estruturas. Não usavam grampos nem parafusos. Em cima das chapas passaram a colocar calhaus, pedras, pedregulhos grandes, de vários tamanhos, mas pesados. Para as chapas não levantarem vôo. Não se sabe se para poupar dinheiro. Não se sabe se havia outras razões, mas diziam mesmo que era por causa dos gatunos, que vinham de noite roubar as chapas. Então, assim, com calhaus em cima das chapas, diziam os povos, o ladrão não rouba porque primeiro tem de fazer barulho para retirar os pedregulhos. Teoria dos povos!!!

Por causa dos calhaus em cima das chapas de cobertura das casas, a cidade está feia, pelo menos podia estar mais bonita. Porque quando se olha, por cima, há muito calhau. Mas é muito calhau, mesmo! Até podem pintar as outras casas, os prédios, dizer que a cidade tem de ficar mais bonita… Até podia, mas, as casas de adobe não são rebocadas, nem pintadas. E os calhaus… estão lá.

Numa certa altura apareceram uns sábios na cidade e, com toda a sua sabedoria, disseram que a construção das casas tinha que ser dirigida. Até disseram que havia dinheiro, fundos, verbas, projectos, planos, essas coisas todas, para apoiar a tal dirigida. Mas o kumbú, mesmo, se havia, foi dirigido para outros sítios, e nunca se viu nada. Certo é que cada um se virou da maneira que pôde ou conseguiu.

Mais tarde vieram uns “Anjos”, que disseram que a cidade assim não estava bem, tinha muito musseque dentro da cidade, que era preciso respeitar o director. O tal director, afinal, era um plano. Da cidade. Vai então toca de partir, diz-se demolir, as casas de adobe com os seus telhados, e ainda diminuíram um pouco os calhaus. E assim, uma parte do Kamazingo se foi, e os povos foram levados para outras casas, sem calhaus nos telhados, lááááááááá, bem longe do centro da cidade. Mas ficou por aí. Não se fez mais nada. O director deve ter sido exonerado. Afinal o descontentamento também era grande demais, falou-se de excessos e injustiças, e houve quem tivesse medo de falar, até de defender os possíveis lesados, porque o director ainda estava em funções e parece mesmo que tinha feito umas ameaças.

Um certo dia, a cidade recebeu um turista, que tinha um amigo na cidade, que o acompanhou na sua visita, e esse turista, que não fala a língua dos povos de cá, perguntou ao seu amigo: Tell me one thing: why these people put stones on the roofs? Pronto, como os povos de cá não falam a língua desse turista, é preciso traduzir o que ele disse: Diz-me uma coisa: por que é que esta gente põe pedras nos telhados?

Boa pergunta! Boa observação! Só mesmo turista para ver essas coisas…

Observação que qualquer um, que não precisa ser turista, nem falar a língua dele, pode observar, porque observa, vê, que a cidade tem muito calhau nos telhados. Qualquer um vê. Até mesmo os olhos de ver.

E a cidade, que se diz que esteve “abandonada” durante quase 30 anos, beneficiou de grandes obras de requalificação. Dizem que está bonita. Até tem um Boulevard… do Mucufi, que é rio que passa na cidade. Foi reasfaltada, reiluminada, os passeios foram todos arranjados, xé, até os povos que vivem noutras cidades ficam satisfeitos quando vêm cá e dizem que a cidade está bonita. A cidade do asfalto, porque a outra, esquece… 

Todos dizem que está bonita mas… e os calhaus?

Um dia, lá no futuro, quem sabe, ventos fortes vão rugir, furiosos, e vão varrer a cidade que está despida de árvores e das suas cortinas de ventos, porque foram todas abatidas para dar lugar a casas com calhaus nos telhados. E, como vão ser muito fortes, as chapas dos telhados vão ser arrancadas pela fúria dos ventos, e cada calhau se vai transformar numa bala. De canhão. E onde cair cada calhau haverá estragos, pessoas vão ficar feridas, vai haver vítimas e muitos danos. Como hoje ninguém está a ver os calhaus on the roofs das casas dos povos, só mesmo o turista viu, pode ser que, lá no futuro, quando cada calhau fizer o seu estrago, vejam mesmo os estragos que ainda estão a tempo de ser evitados. 

Ah, mas nessa altura, isso pode ser dado como uma catástrofe natural, que dê lugar a uma qualquer declaração de estado de calamidade, para justificar até pedidos de ajuda internacional, nunca se sabe, haja apelos à solidariedade de todos os compatriotas para fazer doações, se façam discursos emocionados e cheios de lágrimas, se velem as vítimas e lhes concedam honrarias, porque, afinal, se tratou de um acontecimento que ninguém podia prever.

Espera-se que esse futuro nunca chegue, e que essa tragédia nunca aconteça, mas, os calhaus estão lá, on the roofs, como disse o turista, à espera que alguém, algum dia, se lembre, tal como os “Anjos” se lembraram quando foi para derrubar casas que, mais vale prevenir que remediar. 

Esta história, que afinal não tem nada de encantar, termina aqui, mas, atenção, caro leitor: qualquer realidade com a coincidência é pura semelhança!

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