EXPLORAR A MEMÓRIA (1)

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

O mundo está em polvorosa. Crises, conflitos, a maldita guerra, o perigo do nuclear. Cíclicas preocupações. Nós, angolanos, sabemos como é, e o que isso é. A maldade vence a razão e o bom senso. Altera-se o panorama político quando a situação incrementa as maka e a violência é latente, espreitando em cada esquina. Porém, e para além de tudo, vale sempre a esperança. Enquanto há vida há esperança! Quem melhor que nós no ânimo para a vida, quem soube sempre vê-la na mó de cima? Então, mbora aí, vamos à vida, porque a morte é certa!

Lembras-te daquela cena? E daquilo, naquele lugar? In situ ou longe dele, recorda-se então, recorre-se à memória, impõe-se o comentário. Apeteceu-me fazer o rescaldo do Encontro de Cabo Verde. Ponto, como se usa agora. Registei o que de bom vimos e ouvimos, inclusive o que se comeu e bebeu. As dificuldades, quase nenhumas, os momentos menos conseguidos, os reencontros saudados, enfim, os factos marcantes. Criaram-se novas e fortaleceram-se amizades velhas, iniciaram-se contactos proporcionados pelo convívio. Resultado do companheirismo e do que ele oferece. O ineditismo de algumas – há sempre coisas nunca vistas nem vividas –, levam a que o cronista que existe em mim anote e partilhe.

Reencontrei Pires Laranjeira. Com a sua Fabíola que não conhecia, a irradiar simpatia. Há quanto tempo?! No aeroporto lembramos Luanda antiga e dos tempos áureos da Independência Nacional. Nos dias seguintes vieram à baila os nomes de Aristófanes Couto Cabral, João Abel, Bobela Mota, David Mestre, entre outros. Falamos ainda de Rodrigues Vaz. Do Pepetela e da sua irreverência, do Arnaldo Santos, do Luandino e do controverso João Maria Vilanova. E ainda de um (in) suspeito João de Freitas. Ofereci-lhe o meu último livro, não sei se terá pachorra para o ler. Fiquei a conhecer melhor o professor e a pessoa. No embarque à ida, o primeiro contacto com Olinda Beja, professora, escritora, poetisa e contadora de histórias são-tomense, radicada em Portugal. Vaidosa do seu nome, igual ao de duas belas cidades, brasileira a do nome próprio, portuguesa, a do apelido. Interessante, fácil ser seu amigo. Não é difícil gostar de quem sabe cantar, e ela canta bem. Partilhamos jantar no avião com menu especial. Ravioli de cogumelos, nome chic para uma massa antipática. Mau aspecto, fere as vistas, não exagero comparando com o kakusso feito de matéria plástica, volta e meia denunciado na bwala e nos meandros do comércio malandro que domina a praça angolana. Provei, a medo. Intragável. Na caixa que embalava a refeição, uma inscrição curiosa: Saboreie as cores de Portugal!

Problema migratório à chegada. Anomalia no meu passaporte? Associei o momento ao Almeida e Silva. Ao meu velho amigo e companheiro acontecem sempre coisas estranhas. Na verdade, com o Zé, ou a gasolina acaba quando está na fila para abastecer, ou o multibanco não dá dinheiro quando mete o seu cartão na máquina. Perseguem-no mambos desse género. O jovem funcionário, alto e desempoeirado, calçava uns sapatos enormes que logo me chamaram à atenção. Seguramente eram maiores que os pés que calçava. Davam-lhe um andar semelhante ao de Charlot, e pelos vistos, o rapaz não foi com a minha cara. Andando para frente e para trás, demorou-me o suficiente para me inquietar. Ainda e por cima, a minha mala foi a última a sair do tapete! Por favor não digam que tenho a mania da perseguição. 

Surgiu o dr. Rui Lourido da UCCLA e achei-o diferente. Mais careca, barba esbranquiçada como o pouco cabelo, identificado apenas por via da inevitável camisa sem gola, à Mao Tsé Tung. Sossegou-me em relação à mala, acalmou o meu ânimo. Já em pleno convívio, vê-lo-ia com toda a descontracção a dançar como ele gosta. Levou a Presidente da Assembleia Municipal da Praia num ritmo que me pareceu misto de foxtrot e valsa medieval, difícil de interpretar.

Não, não é Relatório, longe de mim a ideia. Apenas tento explorar a memória. Para que fique e conste. Assim, recordo que iniciou no dia 19 o XI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa sob o tema geral “Língua Portuguesa, Expressão de Liberdade, Democracia e Desenvolvimento Municipal”. Nesse âmbito, foi enaltecida nos eventos a figura imortal de Amílcar Cabral, personalidade universal cujo centenário do nascimento está a ser devidamente programado. Será celebrado com as merecidas honras, sobretudo com elevado respeito, no ano que vem. 

De manhã começam os dias, e os vários grupos distribuíram-se nesse período em visitas a Escolas e Universidades. Ainda ensonado, e acompanhado pela Filomena Nascimento da UCCLA, fiz parceria com o jovem médico Leonel Barbosa, vencedor do Prémio de Revelação Literária UCCLA-CML (adivinha-se um futuro promissor para o novel escritor), visitamos a Escola Secundária Regina Silva(lembrei Elis Regina, a minha filha), um modelo interessante de organização pública escolar. O calor que apertava, não impediu o diálogo, acanhado no início, aberto lá mais para a frente, com alunos e docentes, numa conversa boa e produtiva.  

Na abertura oficial do Encontro, na Biblioteca Nacional de Cabo-Verde, foi homenageado o advogado e escritor David Hopffer Almada, figura de prestígio na sociedade cabo-verdiana. Plateia concorrida e presença do Primeiro-Ministro, bem como de nomes sonantes da vida local. Destaque para a mesa-redonda alusiva à “Actualidade do Pensamento de Amílcar Cabral e a Defesa da Identidade e da Cultura Nacional”. Vários foram os oradores, com o veterano jornalista portuguêsJosé Pedro Castanheira, antigo quadro do Semanário “Expresso” que lidou muito de perto com o nosso Gustavo Costa, a sobressair com a delicada questão “Quem mandou matar Amílcar Cabral?”, título complicado e corajoso, o mesmo dado a um dos vários livros que escreveu. 

No dia seguinte, no Auditório do Hotel Trópico onde nos alojamos, recebemos pela manhã uma figura incontornável da sociedade cabo-verdiana, antigo Primeiro-Ministro e Presidente da República, o Comandante Pedro Pires. Com segurança na voz e no alto dos seus 88 anos de idade, fez o anúncio dos propósitos da Fundação Amílcar Cabral que dirige, nomeadamente os seus anseios na obtenção de apoios destinados à Homenagem Nacional que em 2024 será rendida ao patrono da Fundação, tornada depositária da memória da Nação cabo-verdiana. Esta mesma que lhe reserva gratidão eterna e histórica pela sua heróica contribuição. Salientou o privilégio da idade que lhe preserva a memória, homenageando toda a geração de Cabral, os que renunciaram vantagens e privilégios para optarem por aquilo em que se empenharam. Referiu ainda, enfaticamente, a importância do legado ético, sem dúvida, o maior dos legados da revolução.

Seguiu-se o painel Literatura, Democracia e Municipalismo onde participei com o caso particular de Angola. Realce para as participações nas várias mesas de Pires Laranjeira (Portugal), Sheila Khan (Moçambique), Amadou Dalé (Guiné-Bissau), Pedro Casteleiro (Galiza), José Maria Semedo, Felisberto Vieira e Vera Duarte (Cabo Verde), bem inseridas no contexto dos temas. O Secretário-Geral da UCCLA, dr. Vitor Ramalho, interveio em todas as mesas de discussão, onde os debates se mostraram interessantes e pertinentes, com casos a aguardar melhores oportunidades para esclarecimentos. Também sempre presente esteve a Presidente da Assembleia Municipal da Praia, Clara Marques. Entretanto chegavam mensagens da terra. Curiosa a do meu compadre Jorge que atirou: Porque não foram o Mia Couto e o Agualusa, os melhores da actualidade? Vou responder como, então? Não sei porque não pertenço à Organização, limitei-me a dizer isso. Posso no entanto garantir que não tem a ver com o “Top dos mais queridos”, estive para dizer, mas não disse. Nesse caso, abrir-se-iam portas a João Ubaldo Ribeiro ou Pepetela, Craveirinha ou Germano Gomes, por exemplo. Para discutirem Democracia e Municípios com o seu pensamento de escritores? Será que nós, os convidados desta vez, não podemos discutir esses assuntos e sermos também úteis? O Pepetela, o Mia, o Ondkaji e o Zé Eduardo não teriam mãos a medir se o critério fosse tão estreito. Mas, aproveito e lembro que essa história de serem sempre os mesmos, nos vários domínios, não tem resultado! Nós, angolanos, sabemos bem isso. Não é verdade?

Cumprimento os meus leitores, avisando que a matéria continua num dia próximo. Depois de amanhã, talvez.

Lisboa, 31 de Outubro de 2023

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