“… no meu exílio voluntário senti muitas saudades da minha terra e as pessoas com quem eu me relacionava mais eram os meus conterrâneos”.
Numas férias no início dos anos 60 tomei conhecimento da existência do Mário Rui. Foi em Calulo, onde ele e as irmãs estavam de visita a um tio, Amaro de seu apelido, administrador do Concelho que viria a ter um papel importante na contenção da sanha assassina da polícia e de um punhado de civis em 1961, na repressão sanguinária contra os “assimilados” da terra e quantos mais ousassem ter ideias, só ideias, de desejar ser livre e ter uma vida digna. Da família Amaro havia de conhecer mais tarde o Orlando, estudante de Medicina Veterinária que integrava os menos de 10% de estudantes universitários que desejavam a independência de Angola e que mais tarde, alcançada esta, participou activamente nos primeiros anos de construção do novo país até um cancro o vencer prematuramente. É importante que se perceba como os casos aconteceram no passado para que se percebam os que, e como, acontecem hoje.
No Jardim de Calulo, ex-libris da vila, um menino sisudo e pouco simpático dedilhava um violão quase era maior que ele. Na realidade, estava pouco satisfeito consigo próprio, apesar de estar a dar os primeiros passos do seu enamoramento pelo instrumento. Só entendi isso muitos anos depois, quando, nos tempos de Nova Lisboa-Huambo, descobri o amor quase obstinado do Mário Rui pelo rigor musical. Pelo meio ficaram os anos venturosos do conjunto Os Jovens, onde acompanhou a irmã Ana Paula – que viria a ser mãe de Luaty Beirão – e outros dois Mários, Bento e Eduardo, dos encontros e afinidades musicais com Fausto (A Preto e Branco) e Bonga (Angola 72) em Portugal e na Holanda, e os do início da sua afirmação como investigador de eleição da música angolana, principalmente tirando partido da relação marcante da sua trajectória – aquela que viria a tecer com Liceu Vieira Dias (1919 1994), tempo depois do regresso do mestre do Tarrafal. Com este, Mário Rui aperfeiçoou a sua compreensão técnica, política e espiritual da cultura musical angolana.
Em 1973 as nossas vidas cruzaram-se de novo – e para todo o sempre. No Huambo, para onde ele foi, contrariado, cumprir serviço militar obrigatório no exército português, após regresso da Europa. Naturalmente, aproximou-se do círculo de estudantes, funcionários e militares que lá viviam, angustiados pelas dificuldades na aproximação aos naturais, para com eles partilharem as suas preocupações políticas e o seu alinhamento com o perfume da independência que já pairava no ar. Para se fintar a tenebrosa PIDE, a música era o pretexto e o encobrimento para os okusungina em casa do Maninho Saraiva (1947-1975) onde os temas centrais da conversa e discussão eram invariavelmente Angola e a independência. Mário Rui levou para tais encontros o seu saber sobre música e instrumentos musicais populares e as preocupações em busca de uma identidade angolana de estética musical. Sempre atapetado por uma paixão quase doentia por Angola. Foi por insistência do Mário Rui que rasgamos as noites da Kalomanda e encontramos na sua loja o Fernando Tchikambi, putativo autor da canção popular Fernando e Joaquina da Kalomanda (“Canções Populares de Nova Lisboa”, de Alfredo Margarido, Casa dos Estudantes do Império – Lisboa – 1964). Terminava o período (1950-1975) por ele designado de “Fortalecimento da nova identidade cultural” na sua arrojada proposta de periodização da Música Popular Angolana, a que se seguiria “A liberdade política na forma de expressão musical (1974-1975), “Música e mensagem política” (1975-1992) e “Novas tendências (1992-2003).
À festa da independência seguiu-se o auto-exílio em Paris. Levado para lá pelas primeiras desilusões do pós-independência (não confundir com a independência) e sobretudo com o ostracismo a que o seu mestre Liceu foi votado. Enfrentou muitas dificuldades com o auxílio e o amor da São, companheira da vida. Mas não esmoreceu e continuou as suas lutas, que desaguaram a determinada altura na investigação linguística e consequente publicação do “Ensaio de Mário Rui Silva para uma gramática comparativa, Português-Kimbundu, para falantes de língua portuguesa”. Na nota introdutória da gramática escreveu Mário Rui: “… no meu exílio voluntário senti muitas saudades da minha terra e as pessoas com quem eu me relacionava mais eram os meus conterrâneos”. Foi do contacto com o músico congolês Kapya que Mário Rui percebeu as semelhanças entre o kishwahili, talvez a língua mais falada em África segundo ele, e o kimbundu, que havia despertado o seu interesse nos idos de 1969. Foi a propósito da sua forte ligação ao kimbundu que tivemos a última discussão, pois ele nunca perdoou as minhas dificuldades na aprendizagem do kimbundu. Escreveu ele via whatsapp (o nosso meio de comunicação principal nos últimos anos), já zangado, como tantas vezes acontecia: “Uma pessoa que sabe tão bem português, como tu, tem capacidade para aprender outra língua. Basta ter vontade. (…) Ok, xal´etu kiki, ficamos assim”. Mas porque nunca discutimos um contra o outro, pouco tempo depois escreveu: “Recebi os livros (de minha autoria), obrigado meu amigo do antigamente. Se tiver acabado o projecto sinfónico angulanizandu Angola talvez vá até aí em 2024. Gostaria de poder viajar Luanda-Kalulu (sic) e irmos conversando pelo caminho sobre tudo”. Claro que irei a Calulo com ele, para conversarmos sobre tudo o que nos ligava e também sobre as minhas dificuldades com o kimbundu.
Entre Paris e Luanda, sua terra natal, Mário Rui escreveu outros livros, como “O ensino da Música” (2013), “Estórias para a História da Música em Angola” e ainda o argumento do filme de Jorge António “Angola – Histórias da Música Popular”, de 2005. O governo angolano procurou redimir-se do ostracismo dando-lhe o Prémio Nacional de Cultura e Artes de 2022.
Alguém, a esse propósito, escreveu: “A melhor notícia que recebi de Angola no último ano. Um gigante, um homem bom e honesto a quem Angola obrigou ao exílio em França por tempo demais. Finalmente a homenagem que lhe é merecida. Muito grata a quem partilhou esta notícia. O Mestre Mário Rui Silva é um vulto da música de Angola, um patriota como poucos, mas acima de tudo um homem bom”.
Até sempre, Kamba Dyamie! Que prazer imenso foi viver contigo!
PS – Quando escrevia este texto mais uma notícia triste me abalou. Deixou os amigos que lhe restavam a Clara Gonçalves, uma pessoa rara e brilhante, que muito nos ajudou nos primeiros anos de independência a pensar desenvolvimento. Indirectamente, contribuiu para tecermos a ideia da ADRA, apesar de ausente fisicamente de Angola desde 1978, pelo reiterado disparate dos poderes angolanos de não saberem aproveitar os verdadeiros amigos.
Novo Jornal, 12 de Julho de 2024