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Ainda estava longe o fim do século passado. Nós, angolanos, andávamos eufóricos com a conquista da nossa Independência. Depois do prolongado recolher obrigatório, a farra começou a despontar. Já não era considerada atitude contra-revolucionária. Primeiro devagarinho, escondida, por causa da guerra que apertava. Depois, oficializou-se. Era necessário dançar e brincar o Carnaval. Foi por essa altura, fins da década de setenta e início dos anos oitenta, que a melodia nos chegou aos ouvidos. O sambista Jorginho do Império lançou com êxito a música cujo título faz a epígrafe desta crónica. Dizia-se que Miltinho já a cantara antes, mas eu não sei.
Nunca me esqueci dela. Animou, e de que maneira, as farras em Luanda! Do tempo do “Povo Maravilhoso” em que a dancei entusiasticamente no quintal do José Pedro Tonet. Quando o ano de mil novecentos e noventa e nove, citado na letra deste sucesso carnavalesco, ainda estava distante no nosso pensamento. Estava longe, mas passou depressa. Hoje, já vemos esse ano a uma distância de quase três décadas, e apercebemo-nos de como o tempo é cruel. Até na lembrança das coisas boas.
Caio no samba e na sua cadência vou até às estrofes da letra. E confirmo os efeitos que o tempo fez em mim. No físico, não na alma. Em ritmo de samba lento e embalado no presságio de Jorginho do Império, de Carnaval em Carnaval passado, eu mudei, naturalmente. Na verdade, o Vou chegar mais cedo em casa pra curtir sua paixão, não foi só retórica de samba. Passei, sim, a chegar mais cedo em casa, pra curtir mais a paixão da família, dos livros, de Angola. Ao mesmo tempo, vi partir, entre muitos outros companheiros da Festa Grande, Mateus Pelé do Zangado, Idalina Costa, Zecax, Ruy Mingas, Zeca Amorim, Dina Stella, Olga Baltazar, Paim, o Rei do Unidos do Caxinde e até o próprio Chá de Caxinde, cujo óbito se está a tentar fazer. Nesse mar de tristeza, perdi também e mais tarde, a minha Rainha, a minha inesquecível companheira, o meu destaque, a Ana Paula.
Se é o samba que me atrasa/ eu vou vender meu violão/ não vou parar no bar da praça/ pra falar de futebol/ deixo a madruga e a cachaça/ troco a lua pelo sol.
Como é bom recordar o passado! Suspiro ao envolver-me assim, na magia do Carnaval e nas palavras que fazem o belo verso do samba. Mas o samba nunca, nem mesmo o nosso semba, me fizeram atrasar em nada. Estive sempre presente nos momentos importantes, a tempo e horas. Também pra falar de futebol, do meu Benfica e dos nossos Palancas Negras. E quanto ao violão, que pena! Nunca aprendi, jamais conseguiria dedilhar cordas, como o fazia perfeitamente o mestre Mendes Ribeiro. Já agora e na senda dos segredos desvendados, nunca fui de bares, e de cachaça, só de vez em quando, no remanso de um boa feijoada, das que preparava o Jejé Belo ou o João Cunha Baptista. Ainda hoje, não viro costas a um cheirinho do “Velho Barreiro” ou a uma aguardente de medronhos e, confesso, meus amigos. Nunca me caíram mal. Admitindo que no antes de noventa e nove fui fã confesso de madrugadas farristas, hoje já não madrugo numa festa! Penso mais na relação que, ano atrás de ano, Carnaval levando Carnaval, vou tendo obrigatoriamente com o sol.
Aos meus amigos lá da esquina/ vou dizer que envelheci/ que o bandolim já não afina e a viola eu já vendi/ que você chora todo dia e seu pranto me comove/ deixa passar o carnaval de mil novecentos e noventa e nove.
É claro que envelheci. Noto isso ao atravessar os compridos corredores do hospital. O tendão de Aquiles picando, já não posso mais dar passadas. Curiosamente, as enfermeiras que me assistem lembram-me o Carnaval. Na banda e no nosso Carnaval havia sempre uma enfermeira a desfilar, com a sua caixa de primeiros socorros. Caracterizavam-se por serem sempre gordinhas, não sei porquê. Nos hospitais de cá, as enfermeiras não são tão gordas, algumas são esbeltas como certas porta-estandartes, porém nunca com a nossa pioneira Nelinha Palma, e até mostram sorrisos lindos e prometedores nos rostos, como se estivessem a brincar ao Carnaval. Fico mesmo comovido. Podem escrever que estou a falar verdade.
Olhando com tristeza para as cenas carnavalescas que ocorrem no mundo da alta política, da interna e da internacional, vou cantarolando baixinho: Deixa passar o Carnaval, que aí você vai ver como é que eu vou mudar.
Cumprimento os meus queridos amigos e particularmente os meus estimados leitores. Com um abraço fraterno, despeço-me de todos com o desejo sincero de um Feliz Carnaval. Até ao próximo domingo, à hora do matabicho.
Lisboa, 2 de Março de 2025
Je vous parabenise pour vous articles.