DAS MEMÓRIAS DA NOITE DE 10 DE NOVEMBRO DE 1975…

A cada ano que passa, acalento a esperança de que cada dia 11 de Novembro seja o tal 1.º dia de uma nova Dipanda, para a Paz e a Justiça Social! Sem fome e sem Medo! Para todos os angolanos. Para uma Angola da qual nos orgulhemos, hoje e sempre!

CESALTINA ABREU

Há 49 anos, estive no Largo 1.º de Maio para participar na proclamação da independência de Angola e depois, fui para o Largo do Palácio, para onde se dizia teria ido Agostinho Neto, a família e dirigentes do MPLA.

Tenho bem presente os muitos e intensos sentimentos que nem conseguiria descrever por palavras. Um misto de alegria pelo que, finalmente, iria acontecer em algumas horas, e de apreensão por eventuais desmandos oportunistas que pudessem ocorrer e que dessem espaço a violências de vária ordem. Bem, no fundo, a tristeza de continuar sem notícias sobre o meu irmão, o João Paulo, “largado” à sua sorte como muitos outros jovens, pelos “valorosos comandantes” do CIR Kwenha no Huambo. A apreensão, ainda, pelos efeitos dessa ausência de notícias, de informações, essa falta de cuidado em responsabilizar-se por seres humanos que, independente da idade, haviam tido a coragem de aderir à luta armada para assim contribuir para o alcance do sonho maior dos angolanos de então, a independência. Nesses meses – de finais de Agosto até Novembro – nenhuma informação se conseguiu obter sobre o que teria acontecido. Obviamente que a resposta “estamos em guerra e não temos condições de obter essas informações” era considerada “aceitável” dadas as circunstâncias. Volvidos 49 anos, e olhando em redor, procurando estudar o nosso contexto a partir da centralidade da sua maior riqueza “as pessoas”, “os angolanos/as”, compreendo que afinal, aquele descaso é estrutural, está no DNA da força política que ‘manda’ neste país desde então. É só olhar!

Também havia apreensão relativamente ao que estaria a acontecer, naquele momento histórico, em outras partes do país. E o discurso de proclamação, mais uma vez, traçava uma tendência que até hoje se mantém: nós, e os outros. Nós, os que temos o poder, e os nossos “pares” e todos os outros que a esse(s) poder(es) devem submeter-se. Apesar da alegria do momento, a incerteza sobre as escolhas plasmadas nos discursos, no Hino e nas coberturas jornalísticas. E a discrepância, gritante e descarada, entre o que se diz e o que se faz!

Com consciência de combates duramente travados nas proximidades de Luanda, e apesar das apreensões, temores e medos, e das tristezas e sentimentos de dor e de perda, devidos à situação de guerra, de divisão e de incerteza relativamente ao futuro, eu queria muito acreditar que estávamos realmente no limiar de uma nova etapa, que marcaria positivamente todos os angolanos, independente da sua condição social, da cor da pele, da crença religiosa e das preferências políticas e desportivas. Apesar de tudo, e de todos os cépticos com que então me cruzei, eu nunca imaginaria que a Angola com todo o potencial que lhe conheço – com destaque para a sua maior riqueza, a diversidade social e cultural da sua população –, a um passo de se tornar mais um país independente na arena internacional, iria estar, 49 anos depois, tão profundamente descaracterizada, pautando-se pela negativa, em todos os domínios da vida política, social, económica e cultural, nacional e internacionalmente.

Angola, uma adulta com 49 anos, escuta os seus filhos questionarem o próprio valor da Dipanda, porque as promessas da luta contra o colonialismo e pela libertação não se concretizaram, na perspectiva da criação de uma sociedade inclusiva, justa, livre e solidária, promovendo a cidadania, o bem-estar e o progresso social numa base universal. Algo deu muito errado e nós, todos, temos de reflectir sobre a razão desse falhanço estrondoso. Com honestidade e coragem temos de ser capazes de aprender com tudo o que aconteceu desde a noite de 10 de Novembro de 1975 – e o seu passivo, obviamente -, e (re)começar!

Aos dias seguintes… do 11 de Novembro de 1975 ao 11 de Novembro de 2024, a pergunta que não quer calar: o que nos falta? … Falta a Dipanda!

Daqui a pouco, vou começar a escutar as mesmas músicas que, há muitos anos, os meus vizinhos partilham bem alto neste dia – Teta Lando: Eu Vou Voltar e Funge de Domingo.

Também me preparo para que esta seja mais uma noite insone, como há 48 anos, embora por razões distintas: em 75 era a expectativa do “E agora?”, e a tristeza em saber do meu irmão e de ter boas notícias da recuperação do meu pai. Hoje, para além da gripe, será certamente devido à indignação do “sonho adiado”. Tá onde, a Dipanda?

Como o 11 de Novembro de 1975, este deveria ser o dia do começo de uma nova Angola. Mas importa salientar que não estou a pensar “em fazer tudo de novo”. Seria desgastante e, muito provavelmente, mal-sucedido como até agora. Eu estou a pensar que deveria ser “tudo novo”. Mas isso não tem a ver com “um lugar novo”, ou uma “nova coisa”, mas sim com “uma nova mentalidade”. Podem velhas cabeças cheias de vícios, limitadas por uma miopia galopante e orientadas por uma ganância ainda maior, assumir uma nova mentalidade?

Eu não acredito que quem, ainda hoje, mal conhece Angola na sua maravilhosa e promissora diversidade, e continua a responsabilizar todos os ‘inimigos’ – do colonialismo, à guerra-civil, passando pela pandemia, a baixa do ‘brent’ e, mais recentemente, a queda da produção de petróleo e a dívida (que representa 85% da receita em 2023 e 97% em 2024, mas não caiu do céu!! …) e, agora, os ‘inimigos internos’ -, pelo adiamento sine die do país, seja capaz de operar uma mudança de mentalidade em si e de a promover nos que mantém em redor.

Em que momento, se perdeu a ideia da Universalidade que orientou a luta de libertação? Porque essa ideia de universalidade criava as bases, com os princípios de liberdade e de humanização, para corrigir distorções produzidas pela dominação colonial, pelo esclavagismo e pelo ‘apartheid’, criando as condições e as oportunidades para sociedades inclusivas, igualitárias e socialmente justas.

Em que momento os libertadores transformaram-se, eles próprios, em opressores e ‘donos’ das sociedades pelas quais diziam lutar? Em que momento se esqueceram os Manifestos e outras proclamações dos movimentos de libertação? Precisamos reapropriar-nos desses legados e fazer deles as nossas inspirações para reorientarmos as energias e capacidades de luta na nossa sociedade.

Angola está na situação desesperante em que se encontra devido às opções políticas – entre as quais a própria guerra-civil e a sua duração – que transformaram uma economia exportadora de alimentos, com uma indústria em crescimento, e de facto em diversificação (embora dependente do terreiro do paço), numa economia mineralizada, dependente da extracção de recursos não renováveis! Não só não se corrigiram as distorções herdadas do colonialismo como se agravaram e se expandiram as desigualdades de condições e de oportunidades que hoje nos caracterizam. Foram o desgoverno e a corrupção que conduziram o país ao estado em que se encontra. Foi a cegueira de quem deveria governar, e o silêncio e o consentimento dos governados, que produziu o resultado que temos hoje.

Então, é preciso curar a cegueira, que parece incurável porque conveniente. O caminho é escolher quem veja, e escute, bem… e só diga o que, de facto, se propõe executar. Chega de mentiras! Por outro lado, é necessário dispor-se, e preparar-se, para intervir no espaço público e para o público. Aprender a comunicar, promover a produção de conhecimento, reconhecer nesses conhecimentos as bases para a formulação de propostas alternativas para as escolhas políticas em nome do bem-comum. Saber “falar” demonstrando e reformulando, ajustando, negociando, criando as condições para que, de facto, se possa corrigir o que está mal.

Mas isso implica fazer, realizar, mudar a realidade actual. Traduzir em decisões políticas as respostas às necessidades reais deste país nas suas múltiplas dimensões. Demonstrar no OGE o que de facto é prioritário com vista à Mudança. Por exemplo, investir seriamente na educação (os 20% de Dakar), na criação de um sistema de saúde a partir da base e não do topo (os 15% de Abuja), nos serviços básicos de saneamento, no ordenamento do território e na habitação. A acontecer, está a investir-se em desenvolvimento humano. Promover a agricultura familiar – a montante e a jusante -, a produção do sector primário (os 10% da SADC), a indústria (começando pela transformação primária), e fazê-lo numa perspectiva em que as opções das gerações futuras não sejam limitadas pelas decisões de hoje.

Precisamos destas acções, dispensamos discursos mentirosos.

Angola está doente, muito doente. Precisa de cuidados intensivos para sair do CTI e, então, transformar o seu enorme potencial em realidade, em dignidade para todos os angolanos.

Precisa de uma Paz assente na justiça, na inclusão, na verdade, e no cuidado para com o outro.

A cada ano que passa, acalento a esperança de que cada dia 11 de Novembro seja o tal 1.º dia de uma nova Dipanda, para a Paz e a Justiça Social! Sem fome e sem Medo! Para todos os angolanos. Para uma Angola da qual nos orgulhemos, hoje e sempre!

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