JAcQUEs TOU AQUI!

E.T. – Na última crónica desta coluna cometi um erro. Um lapso cívico. Esqueci o Presidente José Eduardo dos Santos e o 28 de Agosto, o seu dia. Hoje, estou aqui, a penitenciar-me.
Fui crítico do Presidente Dos Santos. Na época em que, por nítido descontrolo, a sua governação enveredou por erros indesculpáveis, difíceis de serem explicados. Jamais deixarei de o condenar por isso. Não obstante, respeitei sempre o Chefe de Estado que, em momentos cruciais da vida do país, nos orgulhou, dignificando o nome de Angola. Respeito a sua memória, como reprovo a forma como foi afastado do poder. Não merecia, de modo nenhum, o que lhe aconteceu, nem antes, nem depois da sua morte. Há coisas que não se podem esquecer.
Para esquecer, faz-se de tudo, diz quem foge da preservação de coisas passadas. Há quem, para esquecer, opte por olhar as ondas do mar. Calmo e sereno, como convém. Outros observam imagens da mansidão de vastos campos. Em Angola faria sentido contemplar-se um extenso cafezal florido em fazenda mecanizada. Resultaria, certamente.
Não sou dos que esquecem. Nem passado, nem presente. Mas jamais recorrerei à serenidade do mar, de rios que sejam, na tentativa de inventar o êxtase na contemplação de águas. Prefiro aceitar a realidade dos factos que se produzem à minha volta. Lembrarei melhor o que é ou foi bom, não esquecendo o indesejável que a vida já deu e oferece ainda. Recordarei as cenas que alegraram, como amaldiçoarei sempre, e essas mais que todas as outras, as que há décadas amargam a existência dos angolanos. As mais violentas, as que perduram e não consigo esquecer por nada desta vida.
Apesar de se viverem tempos em que o narcisismo impera até à medula de certos indivíduos, nunca me pus a olhar para qualquer lago com o intuito de ver espelhada a minha imagem nas suas águas. Mas gosto de falar das coisas boas que já fiz. Não me canso de o fazer. Serão irrelevantes para alguns, já mo disseram várias vezes, contudo, importantes para mim, como é bom de ver. Posso dizer que sou um tipo de manias. Sou inventivo, de muitas ideias. “Mas não és um idiota”, dir-me-ia o bom do Almeida e Silva, no seu jeito peculiar de dizer as coisas.
Quando criamos a Chá de Caxinde, pus-me à frente do projecto. Fui apoiado por uma dúzia de companheiros, não eram mais. Na proclamação, no Hotel Panorama, é que já éramos cem. Bem contados. Muitos já partiram, infelizmente. Mas ainda cá estão a fazer-me companhia, a Ana Edith Viegas d’Abreu, o Raul Lindorfo Fernandes, o Olinto Cardoso, o Guerreiro Dias, a Hermínia Clington, o Albérico Passos. Todos me consideram ainda o tipo da ideia, não o idiota.
Por essa altura, tinha esquecido que na primeira metade do primeiro dos anos sessenta – já ia longe o tempo maldito, o da violência avulsa e cruel – havia criado, no Dondo, o Bambu Futebol Clube, constituído por malta apaixonada pelo futebol (Toninho Kikuamanga, Churchill Brás, Albino Rodrigues, Boy Vasconcelos, Ramos Vaz, Pio Gourgel, Beto Couto, Velhinho Pedro, Silvério Quiosa entre outros). Escolhemos equipamento branco com gola e mangas debruadas a azul-marinho. Fui o autor do desenho do seu emblema (BFC, em azul, com letras cheias num círculo da mesma cor). Meti-me neste e noutros ânimos por via do meu empreendedorismo (como está na moda dizer-se agora) e capacidade de liderança – as verdades devem ser ditas, que diabo – mas também graças ao convívio que mantive com Toneca Campos, em Calulo – tinha de ser – na altura em que fui seu empregado, teria eu 14 ou 15 anos de idade.
António Pacheco de Campos, o Toneca, era uma pessoa incomparável. Se a história for justa e não utilizar o sectarismo que a costuma caracterizar, não deixará de ser recordado um dia pelo que fez naquele tempo difícil. Distancio-me dos novos convencionalismos sociais, faço apenas prevalecer o meu pensamento. Daí dizer, nunca se sabe!
Consciente ou inconscientemente, aquele homem de origem portuguesa, mas nascido no Libolo, quis transformar o microterritório do Mussafo, um bairro da periferia, numa imitação de um Brasil dos pobres, imaginário, mestiço, habitado por gente identificada com a música e outros valores gentílicos. O samba e o baião estavam na dianteira, com Carmélia Alves e trepa no coqueiro/tira coco/jipe, jipe/nheco, nheco/no coqueiro olirá/, Jackson do Pandeiro (a chorar ainda a morte do suicida Getúlio Vargas “ele disse muito bem/o povo de quem fui escravo/não será mais escravo de ninguém”), Luís Gonzaga com a sua sanfona nordestina, lá no meu sertão/pro caboco ler/ tem que aprender/ um outro abc/ comandavam uma legião de outros mestres como Sivuca e cantadores do género Zabumba não jogo não, capoeira não. No futebol, Toneca baptizou de Sabará, Vavá, Didi, Garrincha, Cabeção, Lulu (cara chapada do Pelé, até no penteado), uma série de jovens. No fundo, lamentava que o bieno João Gusmão e o luandense Zuza, dois dos melhores futebolistas que passaram por Calulo, não tivessem envergado as cores verde e branca do seu Palmeiras. Implantou a sede da agremiação no quintal da sua própria residência e era lá que a farra acontecia. Ambientes de marcante simbolismo representavam a felicidade da malta desfavorecida que, simultaneamente, punham em transe a classe salazarenta dominadora. Não duvido que se os factos ocorressem nos dias de hoje, fossem estudados por mestres em sociologia.
Com pouco mais de 170 centímetros de altura, Toneca Campos era bom jogador de futebol, embora baixo para defesa-central. Alternava a posição com a de interior direito. Hoje não teria hipóteses de brilhar. Nem ele, nem Fernando Candolas, nem Ruy Aníbal, Isidro ou Valério Amorim, os craques da época. Zeca Santos, que foi o maior de todos, ainda jogava comigo nos juniores, onde também estavam Queirós, Mário Pacheco e Sabará.
Toneca era o capitão e, praticamente, dono do Palmeiras (Associação Desportiva Palmeiras) que disputava o campeonato do Libolo com mais três equipas (Fortaleza Futebol Clube, Botafogo do Cassequel, Vasco da Gama da Cabuta e Associação Desportiva do Quissongo).
Em 1958, disputávamos o nosso primeiro campeonato, no Estádio Inacabado Dr. Neto de Miranda. Eu era o capitão dos juniores e usava a camisola oito, o mesmo número utilizado por Toneca. Zeca Santos era naturalmente o dez. Meu irmão Bito, seis anitos, era a mascote das equipas do Palmeiras. Equipava-se a preceito e entrava em campo com os jogadores. Entretanto, na Suécia, Pelé e Garrinha faziam miséria no Campeonato do Mundo. Por Calulo, passavam de vez em quando uns senhores da capital que visitavam o Mussafo e falavam com certos funcionários públicos sobre o colonialismo, fazendo confusão na cabeça de alguns. Pouca gente sabia dessas coisas libertárias, só mesmo alguns mais velhos.
No dia em que celebramos dupla vitória, da equipa principal e dos miúdos, Zeca Santos pediu-me ao ouvido os meus golos (já não me lembro se o regulamento permitia isso). Como assim? Serviriam para agregar aos seus e assim receber o troféu de melhor marcador. Eu, na condição de capitão, receberia a taça da conquista do campeonato. Disse-lhe que sim, dei-lhe os meus golos que não eram poucos e, do alto da tribuna, ambos gritamos: “Saudações, saudações, saudações”. Lá em baixo, a malta perfilada e eufórica, respondeu em coro: “Saudações da ADP”. Que bonito!
Mais lindo ainda, setenta anos depois, poder recordar, como se de um filme se tratasse. O que recordarão os que nos substituirão no tempo? Coisas boas, espero sinceramente.
Há dias recebi um telefonema inesperado. Surpresa. A voz, apenas a voz, do meu velho amigo, José Augusto Vaz, o Ramos do Dondo, apareceu-me depois de muitos anos de silêncio. Foi no decorrer de uma boa conversa cheia de saudade, que me fez recordar o Bambu, de cuja lembrança me tinha afastado há muito. Não escondi uma lágrima que me molhou o rosto. Ele não viu, não podia ver.
Com o carinho e a amizade de sempre, despeço-me dos amigos, parentes e leitores, com os meus habituais cumprimentos. Até ao próximo domingo à hora do matabicho.
Forte da Casa, Portugal, 7 de Setembro de 2025

De pé, da esquerda para a direita: Cabeção, Garrincha, Zeca Candolas, Fernando Candolas, Zeca Fernandes e Ruy Aníbal; Agachados, pela mesma ordem: Didi, Toneca, Vavá, Lourenço e Jaburu.
Com a bola, Bito Pacheco, a mascote do clube










