ÁFRICA NA II GUERRA MUNDIAL

A liberdade pode ser roubada, mas nunca esquecida.

AUTOR: JOAQUIM SEQUEIRA

Quando a Segunda Guerra Mundial incendiou o mundo, a África não ficou à margem, embora as suas vozes muitas vezes sejam abafadas nas páginas dos livros.

Sob o sol implacável e as luas silenciosas, milhões de africanos foram arrancados dos seus vilarejos, convocados ou forçados a vestir uniformes que não carregavam as suas bandeiras.

Homens do Senegal, Mali, Marrocos, Nigéria, Quénia, Etiópia e de tantas outras terras marcharam por desertos e florestas, lutaram em campos gelados da Europa e sob as tempestades do Pacífico. Foram chamados “tirailleurs” (soldados nativos recrutados para defender o império colonial francês), “askaris” (soldados nativos recrutados para defender o império colonial), “spahis” (soldados nativos integrados na cavalaria ligeira do exército do império colonial francês), nomes estrangeiros que tentavam moldar a sua identidade à conveniência dos impérios coloniais.

Carregavam armas pesadas, mas também o peso da distância, da saudade, e de uma guerra que, no fundo, não lhes pertencia.

As suas mãos cavaram trincheiras na Itália, arriscaram a vida na campanha da Birmânia, resistiram no deserto da Líbia. Na Etiópia, o povo de Hailé Selassié ergueu-se contra a invasão fascista italiana, lembrando ao mundo que a África não era apenas fornecedora de corpos, mas também guardiã da sua própria liberdade.

Quando a guerra acabou, muitos voltaram para casa com medalhas frias e promessas vazias. Tinham combatido o racismo nazi… para regressar às correntes invisíveis do colonialismo. Mas a sua coragem ficou gravada, não nas praças da Europa, mas na memória viva dos descendentes, nas canções de guerra, nos murmúrios das velhas aldeias, onde se recorda que o sangue africano também regou o solo da vitória.

Era uma participação silenciosa para os vencedores, mas ensurdecedora para a história. Porque, no eco da Segunda Guerra, ainda ressoam os passos dos soldados negros que lutaram numa guerra de outros e, sem saber, também semearam o início da sua própria luta pela independência.

Angola, então presa nas correntes do império colonial português, não empunhou bandeiras próprias na Segunda Guerra Mundial, mas a guerra, como um vento distante, porém implacável, também soprou sobre as suas terras. Não houve batalhas épicas travadas no seu chão, mas as minas e plantações angolanas sentiram o peso do conflito. Do subsolo, extraíam-se os diamantes que reluziam nos cofres de quem financiava a guerra; das matas e campos, saíam a borracha, o café, o algodão, que alimentavam máquinas e exércitos distantes. Nos portos, navios carregavam o suor dos trabalhadores “contratados”, enquanto o Atlântico escondia silhuetas de submarinos alemães à espreita.

Portugal, artificialmente neutro, jogava o seu jogo de equilíbrio frágil, mas as colónias, como Angola, pagavam um preço silencioso. Jovens eram enviados para trabalhos forçados em obras e plantações, pois a economia colonial precisava de produzir mais, sempre mais, para atender aos que lutavam. Não se viam espingardas ou canhões nas ruas de Luanda, mas a guerra estava ali, disfarçada de quotas de produção, de ordens vindas de Lisboa, de noites em que o medo e a incerteza se espalhavam como neblina.

E, quando as bombas cessaram na Europa, Angola permaneceu na mesma prisão de séculos, mas com uma chama nova: muitos dos que viveram aqueles anos perceberam que o mundo estava a mudar… e que, talvez, chegasse também o tempo de lutar pela própria liberdade.

O papel de Angola na guerra não se mede em batalhas, mas no eco invisível de um esforço forçado, e na semente silenciosa que, anos depois, germinaria em revolta.

Os senegaleses, filhos do Sahel e das marés de Dakar, marcharam para uma guerra que não era deles, mas que exigia a sua carne e o seu fôlego como se fosse. Chamavam-lhes “Tirailleurs Sénégalais”, mas não vinham apenas do Senegal. Eram homens de várias colónias da África Ocidental “francesa”, reunidos sob um nome que apagava as suas origens, como se a cor do uniforme fosse mais importante do que a da pele.

Eles partiram, muitos ainda jovens, deixando aldeias poeirentas, mães de olhos fundos e esposas com crianças nos braços. Cruzaram mares para lutar em terras geladas, para avançar por florestas e campos que nunca tinham sonhado ver. Empunharam armas pesadas na defesa da França, na Campanha da Itália, na libertação da Provença, no avanço final contra o nazismo. Nos desertos do Norte da África, enfrentaram o sol que queimava até ao osso; nas montanhas da Europa, o frio que cortava como lâmina.

Mas a guerra, ingrata, não lhes deu o mesmo abraço que aos soldados brancos. Alguns, capturados pelos alemães, sofreram execuções sumárias, porque a pele negra era alvo de ódio ainda mais cruel.

E, quando a vitória chegou, muitos receberam soldos menores, medalhas que pouco pesavam frente à humilhação. A ferida mais funda veio de imediato: em 1944, em Thiaroye, dezenas de veteranos foram massacrados pelo exército francês quando exigiram um pagamento justo. O sangue derramado manchou não só a terra, mas a honra de quem juravam servir.

Mesmo assim, o seu legado vibra. Os passos dos “Tirailleurs Sénégalais” ecoam como tambores na história: homens que carregaram, além do peso da guerra, o fardo do colonialismo e, ao fazê-lo, acenderam no coração de toda a África a certeza de que era preciso lutar não só pelas guerras dos outros, mas, um dia, pela própria liberdade.

Os malianos, herdeiros das areias douradas do Saara e das águas vastas do Níger, foram chamados, ou arrastados, para uma guerra que acontecia longe das suas aldeias, mas que se infiltrava em cada batida dos seus corações. Sob a bandeira tricolor da França colonial, partiram como parte dos “Tirailleurs” da África Ocidental “francesa”, um exército de muitos povos reunidos sob um nome que escondia as suas verdadeiras pátrias.

Homens de Bamako, Tombuctu, Ségou, Kayes deixaram o cheiro da terra molhada pela chuva para enfrentar o pó de desertos estrangeiros e a neve de montanhas distantes. No Norte de África, combateram o avanço das forças do Eixo sob o sol inclemente da Líbia e da Tunísia. Na Europa, marcharam por campos encharcados, avançaram pelas ruínas da Itália, libertaram cidades na França que, antes, conheciam apenas como nomes estranhos em mapas coloniais.

Não foram apenas soldados: foram carregadores, construtores de estradas, escavadores de trincheiras: peças silenciosas de uma engrenagem de guerra que raramente se lembrava dos seus nomes. Muitos nunca voltaram, caídos em terras onde o vento não trazia o som do djambé ou o aroma do arroz com ginguba. Os que retornaram encontraram promessas não cumpridas, soldos atrasados, e o peso amargo de ter derramado sangue pela “liberdade” de outros, enquanto a sua própria terra continuava acorrentada.

Ainda assim, o eco dessa participação não se perdeu. O Mali, ainda colónia, guardou na memória o sacrifício dos seus filhos, e dele nasceram sementes de consciência e revolta. Porque, nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial, os malianos aprenderam que o inimigo não estava apenas no campo de batalha… mas também nas estruturas que os enviaram para lutar.

Os marroquinos, filhos das montanhas do Atlas, dos souks perfumados e das areias do deserto, foram arrancados do compasso das suas vidas para marchar sob bandeiras que não eram as suas. Marrocos, então protectorado francês, viu milhares dos seus homens vestirem o uniforme estrangeiro e partirem como “Goumiers” (soldados marroquinos, de origem campesina, que apoiaram as tropas francesas durante a guerra de Marrocos), “Tirailleurs”, “Spahis”, nomes militares que soavam duros, mas que não apagavam a melodia árabe/berbere que vibrava nas suas vozes.

Eles combateram onde o mundo queimava mais: nos desertos do Norte de África, onde a areia se misturava com a pólvora; nas montanhas da Itália, onde o frio cortava até a alma; nas planícies e aldeias da França, a libertar cidades cujas ruas eram tão distantes quanto as estrelas sobre o deserto.

Os Goumiers marroquinos eram temidos pela coragem e resistência, escalavam penhascos na escuridão, avançavam por terrenos onde tanques não ousavam passar. Carregavam espadas e espingardas, e uma reputação quase lendária, moldada tanto pela bravura quanto pelas sombras de actos controversos que a guerra, com a sua moral distorcida, alimenta sempre.

Quando a bandeira nazi caiu, muitos marroquinos voltaram para casa não como heróis celebrados, mas como súbditos ainda colonizados. Tinham derramado sangue pela “libertação” da França, mas encontraram Marrocos ainda preso às correntes do protectorado. Entretanto, algo mudara: o mundo que haviam visto e a luta que travaram acenderam a certeza de que a liberdade não podia ser apenas para outros povos.

Assim, o papel dos marroquinos na Segunda Guerra Mundial foi escrito com areia, suor e sangue: uma história de coragem distante, que se tornou também o prelúdio da própria batalha pela independência.

Os nigerianos, filhos das savanas do Norte e das florestas húmidas do sul, foram convocados pelo império britânico para uma guerra que parecia um trovão distante, mas cujo eco chegava até às aldeias e cidades às margens do Níger. A Nigéria, então colónia, tornou-se fonte de soldados, trabalhadores e recursos para sustentar o esforço britânico.

Homens jovens, arrancados do trabalho nas plantações e oficinas, vestiram o uniforme cáqui do Royal West African Frontier Force. Partiram em navios, deixando para trás o som dos tambores e o cheiro da mandioca no fogo, para lutar em frentes distantes. Na África Oriental, ajudaram a libertar a Etiópia do jugo fascista; na Birmânia, enfrentaram selvas sufocantes, mosquitos e chuvas incessantes na luta contra o Japão. Marcharam por pântanos, subiram montanhas e atravessaram rios que nunca tinham visto, levando consigo não só armas, mas também uma determinação silenciosa.

Não foram apenas combatentes, foram carregadores, construtores de estradas e pontes, mecânicos improvisados, sustentando uma máquina de guerra que girava muito longe de casa. Alguns nunca regressaram; outros voltaram marcados pelas doenças, feridas e memórias que não se contavam nas praças das aldeias.

Quando a guerra terminou, descobriram que a vitória não lhes trazia liberdade. Mas o contacto com outros povos, a percepção das contradições do discurso britânico, que pregava a luta contra a tirania enquanto mantinha o colonialismo, plantou sementes. Sementes que, poucos anos depois, germinariam nos movimentos nacionalistas e na luta pela independência.

O papel dos nigerianos na Segunda Guerra Mundial foi o de soldados de um exército estrangeiro, mas também de portadores de uma chama nova, aquela que acende quando um povo percebe que não pode viver eternamente a lutar nas guerras dos outros, sem travar a sua própria.

Os quenianos, guardiães das planícies douradas e das montanhas que tocam as nuvens, viram-se, de repente, arrastados para o turbilhão de uma guerra que não haviam escolhido. Sob o domínio britânico, a colónia do Quénia tornou-se uma engrenagem vital no esforço de guerra: os seus portos, campos e estradas serviram de base para campanhas militares, e o seu povo, convocado ou forçado, partiu para lutar em terras distantes.

Muitos vestiram o uniforme cáqui do King’s African Rifles, marchando para a África Oriental, onde ajudaram a expulsar as forças italianas da Somália e da Etiópia. Outros foram enviados muito além do horizonte conhecido, até às selvas da Birmânia, para enfrentar o Japão em combates sufocantes, onde o ar era tão pesado quanto o silêncio antes de um ataque. Enfrentaram o calor escaldante do deserto, a humidade opressora da selva, doenças tropicais e a solidão de estar tão longe da terra natal.

Não foram apenas combatentes: muitos quenianos trabalharam como carregadores, engenheiros improvisados, mecânicos e construtores de estradas, sustentando a máquina de guerra britânica com as suas mãos calejadas e corpos exaustos. E quando voltaram, não encontraram reconhecimento digno, mas sim o mesmo peso do colonialismo que os havia enviado para a guerra.

Mas a Segunda Guerra Mundial deixou marcas invisíveis. Ao combater lado a lado com homens de outros continentes, ao ouvir falar de liberdade e direitos enquanto viviam sob domínio estrangeiro, muitos quenianos despertaram para uma nova consciência política. Dessa experiência, brotou um sentimento que, anos depois, alimentaria o fogo da luta pela independência, ecoando nos gritos do movimento Mau Mau e nas ruas de Nairobi.

Assim, o papel dos quenianos na guerra foi mais que militar: foi o prelúdio da sua própria batalha, aquela travada não nas selvas da Birmânia ou nas areias da Somália, mas no coração da sua própria pátria.

Os etíopes entraram na Segunda Guerra Mundial não como súbditos de um império europeu, mas como um povo que lutava pela própria sobrevivência e pela dignidade da sua nação.

Quando as tropas fascistas de Mussolini invadiram a Etiópia, em 1935, a terra de Hailé Selassié foi mergulhada numa guerra feroz.

Enquanto o mundo hesitava, e a Liga das Nações pouco mais fazia do que oferecer palavras, os etíopes, armados muitas vezes apenas com coragem, lanças e armas antigas, enfrentaram tanques, aviões e gás venenoso.

A Etiópia caiu, mas não se ajoelhou. Durante cinco anos, a resistência ecoou nas montanhas, nos vales, nas aldeias escondidas. Guerreiros irregulares, os Arbegnoch (resistentes etíopes), os “patriotas”, emboscavam colunas italianas, destruíam linhas de abastecimento, mantinham viva a chama de uma nação livre. Enquanto isso, o imperador exilado percorria o mundo, apelando por ajuda, carregando no peito não só a dor do seu povo, mas também a convicção de que a liberdade da Etiópia era parte da liberdade de todos os africanos.

Quando a guerra global se acendeu, a Etiópia tornou-se um dos primeiros campos de batalha africanos contra o fascismo. Em 1941, com o apoio das forças britânicas e de soldados vindos de outras colónias africanas, a resistência etíope avançou, cidade após cidade, até que a bandeira verde, amarela e vermelha voltou a tremular sobre Addis Abeba. A Etiópia foi a única nação africana a reconquistar a independência durante a guerra, tornando-se um símbolo vivo de que o colonialismo não era invencível.

O papel dos etíopes na Segunda Guerra Mundial foi, assim, profundamente singular: não combateram apenas para cumprir ordens de um mestre estrangeiro, mas para expulsar o invasor e afirmar, diante do mundo, que a África também podia escrever a sua história com as próprias mãos. E, nessa vitória, deixaram gravada a mensagem que ecoaria por todo o continente: a liberdade pode ser roubada, mas nunca esquecida.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

PROCURAR