A propósito da nova ‘tentativa de assalto’ ao espaço de acção cidadã

A estratégia do governo/partido/Estado para o controlo da sociedade civil segue duas vias paralelas. A primeira consiste em criar OSC3 sob sua tutela e ao seu serviço; a segunda consiste em estruturar um quadro legal que lhe permita legitimamente controlar o espaço da sociedade civil e as organizações que aí actuam.

CESALTINA ABREU*

Quase como ‘nota de rodapé’ no finalzinho de uma notícia sobre a iniciativa legislativa da UNITA sobre a liberdade de reunião e de manifestação, a ANGOP revela o que, mais uma vez, estava/está a ser feito à revelia dos directamente envolvidos e interessados: no meio do antepenúltimo parágrafo, depois de informar que o referido projecto de lei havia sido aprovado naquele dia (15), refere:

“De igual modo, as comissões especializadas da Assembleia Nacional, em razão da matéria, apreciaram, na generalidade, a Proposta de Lei do Estatuto das Organizações Não-Governamentais (ONG). O acompanhamento do exercício de actividade das ONG após o registo, será assegurado por uma Entidade da Administração do Estado a determinar pelo Presidente da República enquanto Titular do Poder Executivo. Competirá a essa entidade da administração do Estado, acompanhar e supervisionar as actividades das ONG de acordo com os seus programas de actividades e garantir, entre outros, que as mesmas não possam ser usadas por organizações terroristas que se passem por entidades legítimas.

Tendo em conta as iniciativas locais das comunidades beneficiárias e a política social e económica definida pelo Executivo, as acções das ONG poderão incidir, entre outros, na assistência humanitária e social, saúde, educação, nutrição e segurança alimentar e ambiental, desminagem, protecção e promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais(1).”

Antes mesmo de entrar na inconstitucionalidade da pretensão de limitar, regular e controlar tudo e todos, própria de autoritarismos totalitários, importa chamar a atenção para o seguinte:

. O argumento de proteger contras eventuais usos por organizações terroristas traduz uma ideia inaceitável e preconceituosa de “menoridade/incapacidade” de tomar decisões, agir, decidir o que escolher, de incompetência para decidir os caminhos a seguir. É comovente a preocupação maternal do regime de nos proteger dos terroristas!… Pasme-se, logo nós, que (sobrevivemos) resistindo diariamente aos efeitos de um regime de terror… enfim!

. Por outro lado, se são ONGs – Organizações não-governamentais -, por definição não caberá ao Governo regulamentá-las na sua constituição, gestão e actividade;

. Mas o óbvio é que o projecto visa a sociedade civil, ‘aquela’ que tem incomodado, denunciando situações de injustiça, desrespeito, fraude, entre outras constrangedoras ao regime, e por isso é preciso “domesticá-la”. Importa distinguir sociedade civil de ONG, já que a colagem entre a ideia de sociedade civil e as ONG’s serve os objectivos da ideologia neoliberal, excluindo outras formas de organização da sociedade civil, designadamente associações diversas, movimentos sociais, grupos de cidadãos e cidadãos-activistas, entre outras. O argumento recorre à origem das ONG’s numa esfera fora da alçada do Estado para as apresentar como naturalmente livres da sua influência e do seu poder, transformando-as nos actores legítimos da sociedade civil, ignorando as profundas diferenças entre elas, particularmente ao nível dos seus vínculos com organizações populares, ou de suporte a interesses do grande capital ou fonte de emprego de intelectuais(2).

A Sociedade civil é o campo da vida social voluntária, organizada, auto-criadora, auto- sustentada, circunscrita pela ordem legal (Constituição) e por um conjunto de regras partilhadas, distinguindo-se da sociedade em geral como entidade intermediária agindo na esfera pública, que se posicionam num campo crítico de independência e geração de alternativas em relação aos poderes instituídos, sem contudo pretender o alcance do poder político, mas visando colocar na agenda pública questões de interesse comum / bem público, agindo na mediação entre os diversos actores sociais, através de estruturas horizontais de solidariedade e cooperação (redes, plataformas, alianças, etc.), bastante distintas das lógicas corporativas e hierarquicamente organizadas das outras formas de organização social, estado, mercado e família. Em síntese, engloba as diversas formas através das quais a cidadania se organiza politicamente para intervir na sociedade e usa a sua capacidade de mediação para promover a expansão dos espaços públicos de deliberação.

A estratégia do governo/partido/Estado para o controlo da sociedade civil segue duas vias paralelas. A primeira consiste em criar OSC3 sob sua tutela e ao seu serviço; a segunda consiste em estruturar um quadro legal que lhe permita legitimamente controlar o espaço da sociedade civil e as organizações que aí actuam.

Deixando para outro momento princípios constitucionais que esta pretensão subverte, importa ter presente que, desde a independência, a construção do Estado em Angola segue a lógica da apropriação dos recursos e dos rendimentos gerados pela sua exploração, em benefício das elites no poder e suas redes clientelistas, visando financiar a sua manutenção no poder, produzindo (e reproduzindo) uma crescente desigualdade e a exclusão económica e social da maioria da população, que apenas sobrevive dentro deste sistema, encontrando-se igualmente marginalizada politicamente devido à ausência de um processo inclusivo de construção da paz social, de (re)conciliação nacional de facto e de criação das condições para o exercício, efectivo, da cidadania. Uma cada vez mais pequena minoria é privilegiada enquanto a grande maioria é empurrada para uma situação de pobreza acentuada e crescente(4).

1 ANGOP: AN vota Projecto de Lei de Liberdade de Reunião e Manifestação. 15-05-2023 | Fonte: Angop

2 MESCHKAT, Klaus. (1999), “Una critica a la ideología de la ‘sociedad civil’”, in P. Hengstenberg, K. Kohut, G. Maihold (org.), Sociedad Civil en America Latina: representación de intereses y governabilidad, Caracas, Nueva Sociedad.

3 OSC= organizações da sociedade civil

4 HODGES, Anthony (2002) Angola: Do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem, Principia, Lisboa, Portugal, p. 264. KIBBLE, Steve (2006), “Angola: From Politics of Disorder to Politics of Democratision”.

Sobre a autora:*Cesaltina Abreu é cientista social. Graduada em Agronomia, com Especialização em Botânica e Protecção de Plantas pelo IAC (International Agricultural Centre), Wageningen, Holanda (1975), detém vários títulos académicos com uma investigação conduzida na intersecção entre a Sociologia Política e o Desenvolvimento Sustentável, na Universidade de Newcastle, no Reino Unido, com o tema “Contribuição das Ciências Sociais para os programas de doutoramento do CESSAF (Centro de Excelência em Ciências para a Sustentabilidade em África)”.Fez mestrado e doutoramento em Sociologia, pelo IUPERJ – Rio de Janeiro, Brasil.

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