CONVERSA NA MULEMBA
A estratégia do bagre para se proteger dos inimigos e conseguir as suas presas consiste em turvar as águas onde se encontra. Essa não pode ser a estratégia para a construção de uma Angola democrática, condição para o seu desenvolvimento.
Dificilmente poderiam as eleições de 24 de Agosto de 2022 ser consideradas justas e transparentes, pela utilização sistemática por uma das partes de enormes facilidades disponibilizadas por instituições do Estado que, por lei, deveriam ser neutras e imparciais. Instituições que fecharam os olhos a violações reiteradas das leis e da Constituição, de que o exemplo da parcialidade da comunicação social foi apenas um, testemunhado por toda a sociedade.
Sobre o assunto já muito se escreveu, e bem. O amadurecimento político dos angolanos foi bem expresso no modo como votaram e não votaram, no controlo popular do voto e nas finas análises que nos foram dadas a conhecer, sobretudo através das redes sociais, pois tudo o que não seja bajulação ao poder, ainda que tenha qualidade, continua proscrito na comunicação social pública. Os consumidores desta não podem perceber, outro exemplo, a dimensão do efeito da abstenção na legitimidade da vitória do MPLA. Na realidade, se tivermos em conta os números dos potenciais eleitores e da abstenção, mesmo tendo em conta as insuficiências na elaboração da base de dados e as “compensações” pela manutenção dos falecidos, apenas cerca de 30% dos eleitores angolanos votaram no MPLA. Pouco, muito pouco para reclamar “a força do povo” ou a legitimidade de outrora.
A 7-9-2012, no rescaldo das eleições desse ano, escrevi nesta coluna “a distribuição de votos em Luanda mostra que a marcha da Jamba para Luanda está a ser feita sem armas e facilitada pelo MPLA”. Cinco anos mais tarde, analisando os resultados da disputa eleitoral de 2017, sublinhei também aqui que o crescimento da UNITA, passando de 16 deputados para 50, aliado aos 48% de votos do MPLA na capital, confirmava “algo que disse em 2012: a marcha da UNITA para Luanda pode ser conseguida sem ter de disparar um tiro”. Daí que tenha sugerido ao MPLA que deveria reflectir com profundidade sobre tais resultados.
Durante o período 2017-2022 não me apercebi que o partido no poder tivesse feito isso. Ou melhor, perante os bem-sucedidos primeiros tempos do ciclo lourencista – que sintomaticamente coincidiram com um período de apagamento do partido – achou por bem não ser necessário “corrigir o que estava mal”. Pelo contrário, alheio aos sinais da sociedade, as políticas e as realizações que haviam provocado o desgaste da sua imagem não foram alteradas de modo significativo. Não percebeu que era fundamental aprofundar a análise sobre a corrupção e o papel do partido na sua evolução, acabar com partidarização do Estado, realizar as eleições autárquicas para favorecer a participação, abrir as portas à meritocracia para o preenchimento de cargos de responsabilidade na Administração Pública, melhorar o desempenho do Estado e aproximá-lo aos cidadãos através do diálogo, apoiar decididamente as micro, pequenas e médias empresas e promover a abertura da comunicação social.
Noutra vertente, a insistência em políticas agrícolas e a consequente ausência de políticas de desenvolvimento local que pudessem suster a migração de jovens rurais para os centros urbanos teve efeitos devastadores na diversificação da economia e no aumento da pobreza. Indiferente aos inúmeros exemplos de países africanos e ao desafio demográfico, insistiu em medidas contraproducentes, como, por exemplo, a construção de centralidades e hospitais nos centros urbanos, em detrimento de investimentos robustos na agricultura e em agro-indústrias promotoras de emprego intensivo, na formação profissional e na satisfação das necessidades sociais básicas nos municípios. Na verdade, as poucas mudanças da política agrícola foram tímidas, pouco coerentes e tardias, sem articulação nem integração com o PIIM como a designação deste sugeria. O relativo sucesso do Projecto Kwenda mostra que o caminho do combate à pobreza deveria ser diferente e mais consistente, pois é fundamental o investimento em instituições, sem as quais as realizações estarão condenadas ao fracasso.
Já há muito se adivinhava, mas confirmou-se a inversão de papéis entre os dois grandes partidos angolanos em matéria de popularidade. Os comícios (acho execrável e atentatório ao conceito de cidadania a designação “acto de massas”) da UNITA, principalmente em Luanda, apresentavam a espontaneidade e a criatividade que outrora eram apanágio do MPLA. O entusiasmo transbordava quando aparecia Chivukuvuku, esse mesmo que o Tribunal Constitucional destratou quando negou sistematicamente o reconhecimento do seu novo partido, mas não fez o mesmo a outros com muito menor experiência e inserção popular. Mas até nisso a capacidade analítica do MPLA se mostrou pobre. O voto em Chivukuvuku dispersaria o voto dos eleitores e tal seria benéfico para o ainda eterno maioritário.
Ao contrário do que aconteceu noutras ocasiões, não foram efusivas as comemorações da vitória do MPLA, pelo indisfarçável sentimento dos seus apoiantes de que se tratava de uma vitória de Pirro devido à derrota clamorosa em Luanda, pelo número de votos inferior ao dos militantes (ou será que afinal estes estão sobredimensionados?) e porque as dúvidas sobre a verdade eleitoral pairam sobre a cabeça de muitos dos seus membros. O modo sobranceiro como foram tratadas as reclamações dos partidos pela CNE e pelo Tribunal Constitucional, não aceitando divulgação das actas-síntese e a contagem de votos, agravou as desconfianças e a credibilidade do processo. Diz-se que quem não deve não teme e que a mulher de César não precisa apenas de ser honesta, tem de parecê-lo em qualquer circunstância. A reputação do MPLA sai destas eleições fortemente chamuscada.
Imagino o dilema em que se encontra a liderança da UNITA perante os cenários de ceder à pressão de largos sectores de apoiantes para que os seus deputados não tomem posse na Assembleia Nacional, ou de assumir uma atitude de Estado e aceitar, embora contrafeita, a decisão do Tribunal Constitucional. Uma recusa poderá comportar riscos políticos e financeiros imprevisíveis e beliscar uma imagem de Estado que vem construindo a duras penas. Por outro lado, tem de reflectir que o seu projecto de mudança não foi suficientemente convincente para mais de 50% dos eleitores. Assim, a sua presença na Assembleia Nacional numa situação de maior conforto do que a anterior poderá permitir uma acção profícua em batalhas fundamentais que se avizinham, começando pelas eleições autárquicas que se deseja aconteçam com a maior brevidade possível.
Finalmente, o actual momento político sugere que neste próximo mandato sejam encaradas mudanças ensaiadas no início do mandato anterior e incompreensivelmente abandonadas na parte final, o que valeu uma perda significativa da popularidade do Presidente. Refiro-me principalmente ao combate à corrupção e à impunidade, à realização das eleições autárquicas, ao diálogo com a sociedade e à abertura da comunicação social. Acrescentando que o pacto de regime ou de convivência democrática que há muito venho propondo inclua uma revisão da Constituição, a despartidarização de tribunais e órgãos de regulação e do Estado em geral, os mecanismos de concertação social e ao impulso do desenvolvimento local como base da diversificação da economia. A maioria absoluta confere o poder de governar, mas os 44% de votos da oposição permitem legitimidade para negociar as questões estratégicas da Nação.
A estratégia do bagre para se proteger dos inimigos e conseguir as suas presas consiste em turvar as águas onde se encontra. Essa não pode ser a estratégia para a construção de uma Angola democrática, condição para o seu desenvolvimento.
In Novo Jornal, 16/9/22