A BAJULAÇÃO E OS TEMPOS MODERNOS

Nas “engraxadorias” montadas artisticamente nestes tempos modernos de hoje, onde se impinge até a ideia de que o ar que respiramos é obra do grande chefe, contrariamente aos “Tempos Modernos” do filme de Charlot, realça-se apenas a vontade de subir, a ânsia de ser rico e poderoso, de adquirir status e estendê-lo à sua casta.

Tenho uma amiga muito especial. Uma senhora nota 10 que classifico de excepcional. É psicóloga de profissão. Naturalmente, gosto muito dela e a terapeuta que é sabe disso. Tem um defeito. Não acredita muito nos outros. Maka de psicanalista! A propósito do tema bajulação, tem dúvidas quanto a ser assim tão nefasta como a pintei na crónica que abordou levemente o fenómeno. Parece-lhe mais um absurdo, ridículo e coisa de mau gosto, do que um verdadeiro problema. Coisa de psicóloga? Talvez. Segundo ela, todo o mundo gosta de ouvir elogios e elogiar é uma das formas de fazermos com que gostem de nós. De acordo. A evidência é real.

O erro, diz ela, está na aceitação dessa bajulação sem sentido que se vai verificando por aí. Exagerada, absurda e ridícula, como se fosse merecida. Ridícula!, incentivo-a. Uma loucura!, corrobora ela. A psicolinguista (escreve e adora ler), não deixou de afirmar que, afinal, as chefias que conhecemos, ontem como hoje, não são tão diferentes assim na sua actuação. Os PCAs e os PCEs continuam a alimentar-se disso e aí baseiam as suas decisões. Uma estupidez, tropical para o nosso caso, vou insinuando, e mesmo que não fosse, nada há a fazer, né? Conformemo-nos então. O que não implica que fiquemos por aqui, mudos e quedos.

Para bajular bem há que ter uma certa queda, quem não a tem, não joga na selecção, opinou um amigo meu dado a futebóis, um acompanhante assumido das maka polémicas que vou levantando. Não posso deixar de estar de acordo com ele, é preciso mesmo ter muito jeito e talento para se ser Bajulino de boa qualidade.

Esgrimindo o assunto, li há tempos uma matéria curiosa acerca da tal bajulação do nosso incómodo. Numa bem explorada prosa, o articulista brasileiro referiu que uma corrente de estudiosos põe a culpa de tudo o que respeita ao “puxa-saquismo” nos chimpanzés. Explicou que (cito)… organizados por hierarquia de comando desde que surgiram na Terra, até hoje os primatas mais fraquinhos passam dias e noites paparicando os mais fortes. Para esses primos dos humanos o ritual inclui beijar os pés do chefão, levar oferendas meio bestas como folhas e gravetos e até entrar em fila para fazer cafuné nos nobres pêlos do mandatário, (fim de citação).

Pensando nessa bizarria, concluo que o comportamento animal que conforma a bajulação, leva também a que se diga a respeito dela muita coisa sem nexo, à toa e sem sentido, mais até do que sobre qualquer outro assunto. Brincando mas a propósito, direi que a possível excepção será mesmo o orgasmo feminino, um alvitre acerca do vinho tinto, lançado numa das suas famosas crónicas, pelo brasileiro Luís Fernando Veríssimo. Vénias para ele! Diga-se de passagem que se trata dos melhores escribas deste género discursivo em quem me inspiro em muitas ocasiões.

Uma crise tão instalada e a nível tão geral como a que vivemos, é fértil a mostrar as mais variadas situações. Destacam-se as que sujeitam figuras públicas à crítica da sociedade. Pela inconveniência de palavras e atitudes de gente que tem obrigação de ser elegante. Nessa sociedade, são, todavia, visíveis situações mais desagradáveis. As que castigam seriamente a vida das populações e onde não são raros os momentos de desespero sentidos pela maioria perante necessidades primárias e de toda a ordem; e onde entre as de maior visibilidade se instalam aquelas que permitem o exercício da graxa desavergonhada, numa prática consentida que, convenhamos, empurra quase sempre os seus protagonistas para vexames desnecessários.

Ora, quando se dá permissão à exibição de comportamentos pouco recomendáveis, está-se a contribuir para o surgimento de ideias empobrecidas e, entre elas, a do triste bajulador, altamente criticada pelo povo. Poderia enumerar vários exemplos para o nosso caso particular, mas bastar-me-á mostrar uma imagem. Uma simples foto disseminada nas famigeradas redes sociais, para retratar como a falta de cuidado e respeito para com a sociedade pode fazer ruir um edifício de credibilidade, por mais hábil e forte que tenha sido a sua construção. Uma entre muitas que são, infelizmente, exibidas por membros do Governo angolano. Não somente do actual, também dos anteriores.

Escolhi aquela que mostra um alto responsável a ser protegido da água da chuva por provável servidora pública. De guarda-chuva empunhado, a cachica resguarda o muhata dos pingos da chuva, numa imagem bem elucidativa dos hábitos que vigoram. Com as mãos completamente livres, o governante, num triste exemplo de prepotência, ilustra o percurso de uma chefia descuidada a permitir gestos de servilismo deprimentes e desnecessários.

A menos que a iniciativa tenha partido da moça, e aí estaríamos perante situação tripla de bajulação, puro descaramento e baixeza humana, o mais provável, porque sabemos como as coisas funcionam entre nós, é ter

partido mesmo de um gesto de arrogância do governante ou, porque não, dos seus auxiliares, normalmente resguardados nas cercanias dos acontecimentos. Uma imagem apenas, mas suficiente para mostrar o clima de perpétua precariedade social em que nos encontramos envolvidos.

Mas, mandando-me para o antigamente, lembro o famoso filme “Tempos Modernos”, realizado e interpretado por Charles Chaplin em 1936, onde Little Trump, o personagem (Vagabundo) vivido por Charlot, tenta sobreviver no mundo industrializado daquela época. Revolução Industrial, Grande Depressão, capitalismo, nazi-fascismo, imperialismo, maus tratos aos trabalhadores, estavam então no auge. Mostrava, mais coisa, menos coisa, alguns aspectos da vida, iguaizinhos aos que vemos hoje em dia. Destacavam-se as mesmas dificuldades dos desafortunados, porém e apenas, num contexto diferente. Mas, admitamos que qualquer semelhança possa ser pura coincidência.

O escondido amor por Ellen (Paulette Goddard) mostrado em várias cenas, com Vagabundo a expor-se voluntariamente para proteger a amada, poderá ser considerada também uma forma de bajulação, porém, esta é uma adulação linda, baseada em sentimentos nobres. Com essa bajulação não me importaria de conviver e, sem dúvida nenhuma, tudo faria para abolir o decreto de poderosos poderes destinado a punir os bajuladores, sugerido por mim na anterior crónica.

Nas “engraxadorias” montadas artisticamente nestes tempos modernos de hoje, onde se impinge até a ideia de que o ar que respiramos é obra do grande chefe, contrariamente aos “Tempos Modernos” do filme de Charlot, realça-se apenas a vontade de subir, a ânsia de ser rico e poderoso, de adquirir status e estendê-lo à sua casta. Eternamente, se possível. Já não existem os personagens simples e honestos como o Vagabundo que se limitava a elogiar e não tinha outro objectivo na vida que não fosse o de conquistar o amor de Ellen.

Muito duvidoso sobre o que o futuro nos reserva, não perco nunca a esperança de viver novos tempos. Os nossos “Tempos Modernos”. Com ela no pensamento, despeço-me da minha amiga psicóloga e de todos os meus amigos e estimados leitores. Sem bajulação, espero-vos no próximo domingo, à hora do matabicho.

Lisboa, 7 de Novembro de 2023