O TRIÂNGULO DO CAOS. ENTRE O DIREITO À MANIFESTAÇÃO E O RISCO DA DESORDEM

A democracia constrói-se com pontes e oportunidades de diálogo — não com lojas saqueadas e bens destruídos, muito menos com posicionamentos autoritários e prepotentes.

POR SÉRGIO CALUNDUNGO

Tal como um incêndio precisa de três elementos para deflagrar — combustível, comburente e fonte de ignição —, a violência em protestos sociais resulta da convergência de três forças. Compreender esta dinâmica é essencial para proteger o direito à manifestação sem cair no abismo da desordem.

O primeiro elemento, o combustível, são as tensões sociais acumuladas: desigualdades económicas, falhas nos serviços públicos e desconfiança nas instituições que muitas das vezes agem como se desconhecessem a nossa realidade. Em Angola, como em muitos outros contextos, estas realidades funcionam como lenha seca à espera de uma faísca. Sem este pano de fundo de descontentamento legítimo, os protestos dificilmente descambam em violência.

O segundo elemento, o comburente — o oxigénio que alimenta a chama — manifesta-se hoje na forma de polarização tóxica, desinformação viral nas redes sociais, nos órgãos de informação controlados pelo Estado e erosão do diálogo público. Quando discursos inflamados e mensagens de ódio se sobrepõem às reivindicações iniciais, o protesto perde o seu rumo. Este “ar” contaminado transforma a frustração colectiva em raiva cega, levando alguns a justificar moralmente a destruição.

O terceiro vértice do triângulo é o calor — o estopim que desencadeia o caos. Pode ser uma decisão governamental impopular, como foi a questão do aumento do custo dos combustíveis, uma acção policial percebida como abusiva ou mesmo abusiva, a infiltração de grupos violentos, a manipulação política do desespero ou a instrumentalização política da desordem. É neste momento crítico que uma greve ou manifestação pacífica, como foi o caso da anunciada pelos taxistas em Luanda, se transforma num cenário de violência urbana: vidas perdidas, montras partidas, viaturas danificadas, património público e privado vandalizado. A causa nobre perde-se na fumaça, servindo os interesses de quem instrumentaliza politicamente a desordem.

Tal como nos grandes incêndios, as consequências são devastadoras. Quando o fogo consome a razão, os actos de vandalismo — ainda que marginais e não representativos da maior parte dos cidadãos — contaminam o debate público, desviam o foco das reivindicações sociais e alienam a opinião pública. Pior ainda, podem ser usados pelas vozes habituais para justificar publicamente repressões desproporcionadas. O resultado é um ciclo vicioso: a violência gera desconfiança, que por sua vez alimenta novos focos de conflito. A democracia, que depende do exercício de direitos como o protesto e a manifestação, torna-se refém do caos.

Mas extinguir este incêndio é possível. Se esta for sua genuína pretensão, as autoridades angolanas podem agir com base em três estratégias concretas, atacando cada vértice do triângulo:

1.⁠ ⁠Arrefecer o discurso: Priorizar o diálogo em detrimento do confronto. O Executivo e os parceiros sociais devem criar canais de escuta activa, reconhecendo as causas do descontentamento sem legitimar a violência.

2.⁠ ⁠Sufocar a desinformação: Promover transparência nos meios de comunicação, incluindo os públicos e tutelados pelo poder Executivo. As plataformas digitais e os media estatais devem evitar narrativas inflamadas que incitem ao ódio.

3.⁠ ⁠Isolar os radicais: Distinguir claramente os manifestantes e grevistas pacíficos dos grupos violentos. As forças de segurança devem ser incentivadas a actuar com proporcionalidade, reprimindo actos criminosos sem criminalizar o direito legítimo à greve ou manifestação.

Apesar dos desafios, é — ou deveria ser — possível, na Angola de hoje, preservar o direito à manifestação e ao protesto, rejeitando ao mesmo tempo o caos. Protestar ou manifestar-se é um direito fundamental e deve ser encarada como um dos maiores desafios de uma Angola independente. A violência, porém, destrói não só o património comum, mas também a própria causa que diz defender.

Quebrar o Triângulo do Caos exige coragem cívica: recusar a polarização, exigir responsabilidade das instituições e proteger os espaços de diálogo. Só assim evitaremos que o fogo do protesto legítimo se transforme em cinzas de divisão. A democracia constrói-se com pontes e oportunidades de diálogo — não com lojas saqueadas e bens destruídos, muito menos com posicionamentos autoritários e prepotentes.

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