A cultura é o melhor conforto para a velhice.
Aristóteles (Filósofo grego)
E.T: – o 2º artigo da série “Insistindo” iniciada no passado domingo, só virá a público na próxima semana. Entendi que a matéria de hoje não pode nem deve ser adiada. Apresento aos leitores o meu pedido de desculpas.
Ao escolher o título desta crónica, ao contrário do que possa parecer, não pensei na lição de Coimbra. Aquela que a letra do fado enaltece. Apesar de todo o simbolismo que a envolve, não pensei. Em primeiro lugar, porque não há comparação possível entre Coimbra e o meu Calulo. Como também seria absurdo, associar a Calulo, o lente e a faculdade, citados no dito fado. Talvez, quem sabe, a rapidez dos novos tempos acelere o surgimento do dia em que possa falar de Universidade.
Há outros elementos na canção. O sonho e a tradição. Sendo que aos de Calulo ainda não foi retirado o direito de sonhar, porque não fantasiar? Poderá a ilusão não ser alicerçada na tradição que o fado evoca. Na velhíssima herança de Coimbra dos doutores e dos seus encantos. Mas poderá assentar no realismo que eu não costumo abandonar. Calulo, os seus encantos e velhos costumes, pertencem-nos. Por isso, é legítimo que sonhemos. Porque tudo é possível acontecer enquanto há vida. Enquanto há capacidade de sonhar e de ter esperança.
Vem este intróito a propósito do evento ocorrido em Calulo, entre 25 e 28 do corrente mês. Designou-se Encontro Internacional Conjunto e agrupou a Associação dos Crioulos de Base Lexical Portuguesa e Espanhola, o Grupo de Estudos de Línguas em Contacto. Juntaram-se em Jornada Internacional Científico-Pedagógica, o Instituto Superior Politécnico do Libolo, e o 8º. Encontro Internacional do Projecto Libolo, a celebrar este ano o seu 10º. aniversário. Este agrupar de entidades e projectos levou a que se falasse em Congresso, o que na verdade, não era. Mas, fosse Encontro, Conferência, Simpósio ou Reunião, o importante consistiu na efectivação da reunião que elegeu a linguística, a tradição oral e a variante do Kimbundu falado no Libolo, entre outras temáticas, como centro das suas atenções. Se Calulo seria o local certo para a realização deste tipo de evento? Porque não? Contrario o pensamento de uma amiga minha que se arraigou à velha ideia de que Angola é Luanda e a capital a Mutamba. Nada disso, minha amiga! Livre desse complexo, não me preocupo também com questões redutoras das nossas capacidades. A qualidade dos nossos académicos, posso afirmá-lo agora, no final deste Encontro, não destoou, de modo nenhum, da apresentada pelos nossos ilustres visitantes. Um número razoável de técnicos angolanos apresentou-se dignamente e em posição de igualdade no conhecimento dos temas em discussão, abordados por académicos, homens e mulheres oriundos de dezanove países representados. Alguns dos temas proferidos em língua estrangeira. Os estudantes interessados e o povo em geral, também aproveitaram.
Em encontros dessa natureza, sejam conferência, colóquios, simpósios ou congressos, as várias comunicações que se produzem e os debates subsequentes, provocam necessariamente o interesse mas também o conhecimento mútuo, levando a que os participantes aprendam uns com os outros com as suas experiências.
Foram abordados temas que nos transportaram em viagens interessantes pelo mundo e por Angola, dos tempos das tribos indígenas aos dos povos impacientes da actualidade. Foi oportunidade para verificar nestes dias de cacimbo, com um sentimento misto de alegria e orgulho, que podemos, com iniciativas do género, adubar os jardins da nossa esperança e plantar muita flor para colher no futuro. Uma dessas plantas foi, no âmbito do Encontro, o lançamento da primeira pedra para a edificação do Museu do Libolo. Para além da recolha de acervo da riquíssima história da nossa região, o Museu irá albergar, em devido tempo, o Centro Internacional de Pesquisa em Humanidades, devidamente integrado no Projecto Libolo como no Instituto Superior.
Como cidadão desta terra incomparável, tenho, em face dos acontecimentos citados, mil e um motivos para estar com o meu ego catapultado para os píncaros da satisfação. Essa alegria decorre igualmente de outros aspectos que observei nesta minha visita à terra que me viu nascer. Calulo, para além de estar uma urbe bastante limpa, aparentemente disciplinada, está a desenvolver pelas autoridades locais um plano de recuperação dos passeios da zona urbana da vila. Louvável, a todos os títulos. Nota-se que as coisas se fazem sem alarde e sem causar transtorno, o que é bastante positivo. Parece aquela casa que agasalha, acolhe e oferece amor, lugar para comer e dormir. Mas, infelizmente, nem tudo são rosas. Existe o outro lado da moeda que evidencia miséria, fome e até morte. O desemprego, a falta de dinheiro, a morte inexorável e anunciada de edifícios que marcaram épocas de beleza estrutural da nossa vila, que era para nós, libolenses, a terra mais alegre do mundo. “O Brasil é um pouco parecido com o nosso Libolo”, assim falava a vaidade de um velho calulense a quem chamavam de Santos Rato.
Hoje, sou obrigado a ver o ruir da estrutura do edifício da Escola nº. 39 de João de Barros, onde há mais de 70 anos estudei da 1ª. à 4ª. classe da Instrução Primária. Sempre foi dos mais emblemáticos da vila. Não há desculpas para justificar o estado em que a conseguiram transformar. Inútil, sem aproveitamento, simplesmente abandonado. Os edifícios como as pessoas, estão a precisar de muitos cuidados que só o desenvolvimento é capaz de oferecer. Mas também são necessárias doses de patriotismo, coragem política, capacidade de governar, para o conseguir. Surgirão? Atendendo à nossa complicada situação sócio-política-económica, é difícil. Mas também pode ser que sim, que se consiga, talvez mais cedo do que supomos. Estou em crer que pode acontecer.
Pode acontecer se o patriotismo a que atrás aludo, implicando coragem e bom senso, for colocado ao serviço do país, neste caso do Libolo. Recordo que as inúmeras propriedades agrícolas do município que constituíram sempre a base do seu desenvolvimento económico e social, foram entregues a políticos que, provavelmente por falta de vocação, as votaram ao abandono. Fazendas de enormes potencialidades encontram-se hoje desactivadas, sem qualquer tipo de serventia. Se me permitem o exagero, trata-se de crime. Que provoca a miséria de milhares de conterrâneos nossos, o que não deve ser tolerado nem consentido. Calulo e o Libolo de um modo geral, só poderão voltar a ser a potência rural e comercial de antigamente, quando o bom senso tomar conta dessas pessoas ou das que mandam no país, as quais, em determinado momento das suas vidas, pensaram ser fazendeiros de brincadeira, de faz de conta.
Situação assim, só é possível num país desorganizado, com o fraco nível de autoridade do nosso. Exigem-se, pois, estratégias adequadas e tomadas de posição das autoridades, no sentido dessas terras serem entregues a quem, efectivamente, as possa trabalhar.
Enquanto isso, o Libolo passa a ser, a breve trecho, centro privilegiado da ciência em Angola. Volto ao Encontro que concentrou a atenção dos libolenses na semana finda. Os patronos esmeraram-se no apoio a esta manifestação cultural de grande significado. Envolveram-se de corpo e alma e só duas palavras podem sintetizar o respeito que sinto pelo que foi realizado. Muito obrigado. As autoridades foram impecáveis na recepção aos visitantes. As Igrejas também marcaram presença. Difícil escolher o que mais nos agradou. Se a qualidade das intervenções em debate, se os livros e os objectos de arte em exposição, se a gastronomia, se a música interpretada pelos jovens integrantes da Orquestra Filarmónica Maria Carolina, se o empenho de homens e mulheres de Calulo, nomeadamente os responsáveis da Fundação Maria Carolina, do Instituto Politécnico do Libolo, do Clube Recreativo do Libolo e do Hotel Ritz, para que tudo estivesse bem. Luz não faltou, água só de vez em quando falhou. Tudo lindo de se ver. Pessoalmente, fiz um recuo no tempo, cerca de sessenta anos de lembranças inesquecíveis. Todas as paredes e cantos do Clube Recreativo transportaram-me a um passado incrível, com imagens no modo CinemaScope. Recordando as festas de fim de ano e os arraiais de Santo António. O futebol do meu tempo. Os espectáculos, os filmes, os grandes actores da época que por ali passaram. Até João Villaret declamou em Calulo. Os mais novos recordarão coisas recentes como, por exemplo, as quatro vitórias do Recreativo do Libolo no Girabola.
Tinha pensado em não mencionar nomes, mas entendo que tenho a obrigação de referir, pelo menos, os seguintes: O professor doutor Carlos Figueiredo, calulense, e a professora brasileira, dra. Márcia Oliveira, coordenadores do Projecto Libolo e das acções que lhe foram dando vida, culminadas com este magnífico Encontro. O arquitecto Troufa Real, natural de Luanda e autor da maquete do futuro Museu de Calulo.
Enfim, o Libolo saiu vencedor deste Encontro. Orgulhoso dos seus filhos e dos seus amigos, soube agradecer e tem-nos, de certeza, no coração. Realmente, não restam dúvidas. Calulo é uma lição, igual à outra que reza o fado de Coimbra.
Despeço-me dos meus leitores. Até ao próximo domingo, já com o número dois da série “Insistindo”. À hora do matabicho.
Calulo-Libolo, 30 de Julho de 2023
[…] Fonte: Kesongo […]