UMA REFLEXÃO SOBRE TOLERÂNCIA

Exercitamos a nossa vida quotidiana em ambiente autoritário, que desrespeita a diversidade e impõe a visão monolítica de uma memória colectiva que desde há 49 anos se pretende hegemónica e que recorre ao argumento da força, sempre que necessário, para se impor à força dos argumentos.

CESALTINA ABREU

É frequente escutarmos referências à Tolerância como a aceitação e o respeito pelos valores e princípios dos outros, o que remete para a ideia do que é necessário para a coexistência e a convivência pacíficas de todos envolvidos. Tais referências recorrem a uma abordagem educativa/pedagógica que, contudo, é insuficiente. Ou seja, não se pode, apenas, fazer um apelo à Tolerância sem mobilizar o Respeito – pelo que é digno de respeito -, para que, então, tal ferramenta da consciência política que permite criar ambientes plurais, de jure e de facto.

O exercício da Tolerância, por cada um de nós, é entendido pelos outros como aquilo que estamos dispostos a aceitar. Ora, para começar, tolerar não significa aceitar o que se tolera. Mais, é preciso ter consciência que o ‘Ser Tolerante’ tem limites, e um deles, é não tolerar a intolerância. É não aceitar populismos, fascismos e outros ‘ismos’ cada vez mais presentes nas nossas sociedades!

A capacidade de comunicação entre actores sociais concretiza-se através de construções discursivas que contribuem para a produção das representações sociais, como o particularismo e o universalismo. Estas são construções sociais fundamentais à existência, e ao fortalecimento, de um ambiente sociopolítico capaz de promover a definição de uma Nação, por exemplo a angolana, em termos multiculturais, e a sua integração ‘no tempo do mundo’. Mas esse processo precisa assentar seus caboucos num clima de crescente confiança entre indivíduos e grupos sociais (1) e basear-se no respeito pelas suas identidades históricas e socioculturais, na partilha do poder, nas garantias de participação e de representação, e na opção por um regime político que promova a autonomia local ou regional. Mas isto requer vontade política, e o engajamento da maior diversidade possível de actores sociais, para que o potencial de mudança encontre terreno fértil à sua concretização, aproveitando as oportunidades da interacção e as sinergias na região, no continente e no planeta.

A perspectiva de constante re-adaptação da estrutura contemporânea que confere flexibilidade e movimento às culturas no contínuo ciclo de mudança do processo de modernização, cria oportunidades para a negociação de novos pactos sociais, incluindo consensos de fins e de meios, e dissensos com base no respeito e reconhecimento dos mesmos enquanto ‘desacordos morais’ (2). A inclusão de uma vasta gama de desacordos morais dignos de respeito, oferecendo a oportunidade de defender posições de dissenso com seriedade moral, criaria as condições para a aprendizagem de convivência com a diferença, de que tanto carecemos!

A construção colectiva de mútuos entendimentos, os consensos, sobre o percurso de Angola e a construção social de, entre outros:

  1. Um passado – memória social – no qual todos se revejam;
  2. Uma visão de futuro projectada a partir desse passado comum e dos caminhos para a alcançar;
  3. Um projecto de organização da vida colectiva em sociedade;
  4. Uma intersubjectividade colectiva autora desse projecto de vida – por exemplo, a “angolanidade”, até hoje adiada, pressupondo a aceitação dos dissensos moralmente aceitáveis, que antes referi, e até de conflitos (3), naturais em ambiente de diversidade de objectivos e de interesses que caracteriza as sociedades modernas.

O respeito pelas diferenças e a acomodação dos dissensos abrem espaços para a manifestação de valores locais, e criam a oportunidade para incluir, como válidos, os debates e os discursos que, aos diversos níveis e envolvendo os mais variados tipos de actores sociais, se manifestam na esfera pública em oposição aos discursos predominantes. Neste entendimento, a esfera pública é constituída por vários públicos, os quais recorrem aos respectivos sistemas de valores para produzir representações sobre a realidade, formular críticas sobre os problemas identificados e apresentar propostas de solução, nas quais por norma se incluem.

A sociedade civil é um espaço fundamental para a formação democrática da opinião pública, enquanto expressão do consenso ou de dissenso com respeito às instituições, veiculada pelos órgãos de comunicação social. Esta função surge particularmente valorizada, devido à situação de indefinição que prevalece na desejada transição de um regime (4) totalitário (no qual a sociedade civil foi absorvida pelo Estado/partido e onde prevalecia apenas uma opinião, a oficial), para um regime que, embora se anuncie pluralista no discurso, continua a mostrar extrema dificuldade em lidar com a diferença de opinião e de formas de estar em sociedade.

Voltando ao papel ‘educativo’ dos habituais discursos sobre Tolerância, importa concebê-los de maneira que realmente cumpram a sua função social. Isso implica que os políticos, os académicos, os profissionais dos meios de comunicação, e a sociedade civil, se preparem para desempenhar tal função na nossa sociedade tão carente de valores e princípios democráticos de facto, e os pratiquem em todas as ocasiões que se lhes apresentem. Essa preparação subentende a interiorização dos mesmos valores e princípios e a coragem necessária para os exercitar na sua vida quotidiana em ambiente autoritário, o qual desrespeita a diversidade que nos caracteriza e impõe a visão monolítica de uma memória colectiva que desde há 49 anos se pretende hegemónica e que recorre ao argumento da força, sempre que necessário, para se impor à força dos argumentos.

Referências

(1) Há muitos estudos sobre a importância da Confiança na sociedade, como meio e como bem público; quem estiver interessado poderei passar algumas referências de autores que venho consultando nos meus trabalhos;

(2) Igualmente, para esta abordagem sobre a construção social de consensos e a inclusão dos dissensos dignos de respeito. Poderei passar algumas referências a quem estiver interessado;

(3) O mesmo para a importância do discurso na ‘tradução’ das vontades e dos interesses políticos e na produção de conhecimento;

(4) O conceito de “regime” é usado aqui para significar um arranjo institucional, no caso autoritário de partido-estado.

04 Junho 2023

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