TCHIPOKE NO DOMBE GRANDE E PRECONCEITO DAS ELITES

Quando vejo os gastos antipatrióticos com o luxo despudorado dos governantes, procuro perceber se eles acreditam que sem educação não haverá país.

POR FERNANDO PACHECO

No passado mês de Novembro uma reportagem aparentemente banal abalou a opinião pública em Angola: os agricultores de feijão (tchipoke na língua umbundu) do Dombe Grande estavam a ser financiados por comerciantes ambulantes congoleses. Tais comerciantes, conhecedores das dificuldades dos agricultores angolanos acederem a financiamentos, dispuseram-se a resolver o problema mediante o compromisso de aquisição preferencial do produto final, que seria transportado para a RDC. O negócio, no actual contexto, deve ser vantajoso para ambas as partes, caso contrário não se efectuaria. Acredito que na fronteira os interesses do Estado angolano devem ser salvaguardados, e se não o forem, a responsabilidade não será de quem vendeu. O argumento dos críticos era o de que se tratava de exportação ilegal do “nosso” feijão e de fuga ao fisco, pondo em causa a nossa segurança alimentar.

A nossa história, e a de outros povos, está repleta de relações, usualmente desvantajosas para os agricultores, entre estes e comerciantes. O Estado angolano, mais de vinte anos decorridos desde o final da guerra, não teve arte nem engenho para desatar um nó que persiste desde essa altura – como incentivar os agricultores familiares a produzirem mais, com mais qualidade e em circunstâncias menos penosas. Nunca será demais dar a conhecer que o governo, nos primeiros anos deste século, atirou para o lixo o Plano de Recuperação da Agricultura, elaborado com assistência técnica da FAO, e a Estratégia 2025, para abraçar os projectos agrícolas de média e larga escala que, como se sabe, foram um estrondoso fracasso. Cerca de dois mil milhões de dólares depois, os resultados eram irrisórios, as fazendas foram vendidas ao desbarato e menos de 10% dos agricultores familiares beneficiavam de alguma assistência técnica e financeira.

Os dados do Censo Agropecuário e Pescas de 2020 – já tratados nesta coluna noutras ocasiões – são reveladores do abandono a que estão sujeitos os habitantes dos agregados populacionais rurais. Importa, no entanto, fazer lembrar que das 23 mil aldeias recenseados, apenas 14% têm posto de saúde e 36% escola primária, e que 75% da área cultivada do país (cerca de seis milhões hectares) é feita com energia humana, por agricultores familiares, e no Bailundo, segundo o ministro da Agricultura há menos de dois anos, havia agricultores que nem enxada possuíam, pelo que tinham de recorrer a quem as alugasse, pasme-se! Os serviços, incluindo o comércio, encontram.se a uma distância intolerável da população que se dizia noutros tempos ser a aliada da classe dirigente do país, e que agora desejaria apenas que fossem considerados cidadãos desejosos de verem concretizados os seus direitos constitucionais.

Perante a ausência de mecanismos de financiamento formais, quer públicos, quer privados, as cooperativas e os agricultores do Dombe Grande fizeram o que quaisquer outros fariam: agarraram a oportunidade que se lhes deparou. Noutras regiões do país essa prática não é nova. Comerciantes congoleses, vindos da RDC ou residentes em Luanda, compram feijão e outros produtos, principalmente no Uíge, em Malanje, no Cuanza Sul e no Bié. A prática repetida permitiu a criação de confiança entre compradores e vendedores e o consequente capital social que lhes permite trabalhar com benefícios mútuos. Há muitos anos entrevistei um grupo de agricultores em Cacuso (Malanje) que vendiam mandioca, ainda na terra, a comerciantes congoleses. É a falta de entendimento destas particularidades, ou a recusa em admitir a sua ignorância, ou ainda o seu preconceito em relação a pessoas consideradas “atrasadas”, que não permite às lideranças do país, públicas ou privadas, encontrarem caminhos e mecanismos para lidar com fenómenos de carácter informal próprios de uma sociedade e de uma economia como a nossa.

Dizem as estatísticas que 80% da população angolana vive do e no informal. Estudos realizados em Angola e Moçambique por investigadores portugueses e de cada um desses dois países mostram que as leis aprovadas são ignoradas por, ou não dizem respeito a, quase 90% da população. Daqui se infere que, tal como se fala de africanizar o Estado e a democracia – entendida não como um regresso descabido às origens, mas como um mergulho na realidade sociocultural de cada país e dos seus povos, algo que os nossos juristas e economistas, em geral, também por preconceito, estão longe de fazer –, a organização da sociedade não pode remeter para a exclusão cidadã a esmagadora maioria da população. No caso da agricultura, essa população representa “só” 80% dos alimentos produzidos. O estatuto de uma cooperativa ou de uma comissão de moradores não pode ser algo que os seus membros não entendam, mas sim um instrumento que permita a apropriação e o domínio para devido uso. Se houvesse essa preocupação, os agricultores familiares teriam mais eficácia e eficiência na sua actividade e Angola sairia a ganhar.

Então, porque tal não acontece? Os factos evidenciam que as elites angolanas, quer as governantes ou políticas em geral, quer as técnicas e empresariais ou outras, olham para esse segmento da população – a que Marx chamaria erradamente lúmpen – como os portugueses olhavam para os indígenas de um certo tempo, ou para os excluídos de todos os tempos. As evidências são inúmeras. Para além das já referidas acima, pergunta-se o que leva a que, no quotidiano, se considere que o município se resume à sede e até mesmo à parte urbanizada da sede, como ainda há poucos dias o Administrador de um município se orgulhava com o facto de o seu município já ter água canalizada e energia eléctrica, quando isso apenas sucede com o tal casco meio urbanizado. São as mesmas razões que levam à despreocupação com os camponeses, as quitandeiras, os transportadores e com outros actores do mundo informal. They don`t matter! A não ser quando há eleições.

São frequentes os vídeos e fotografias de “escolas” que desse nome só têm os alunos e, de vez em quando, os professores. Quando vejo os gastos antipatrióticos com o luxo despudorado dos governantes, procuro perceber se eles acreditam que sem educação não haverá país. Acreditam sim. Mas apenas o “seu” país. Um governante dizia abertamente a um amigo, que tinha os filhos a estudar no exterior desde a instrução primária, porque “com a educação dos filhos não se pode brincar”.

Uma reportagem no insuspeito Jornal de Angola, edição do dia 29-10-23, assinada por Yara Simão, espelha o que digo. Passa-se no município do interior que mais financiamento público e privado deve ter recebido depois da independência, desde aproveitamentos hidroeléctricos a fazendas públicas e privadas com tecnologia de ponta, como mandam as regras da falta de bom senso. “Da vila de Cacuso até à empresa Biocom, o percurso é feito em 20 minutos. Pelo caminho, fazendas e terrenos baldios. Há muitas casas de adobe. Uma escola, de cor rosa, chama a atenção, por falta de portas, janelas, carteiras, alunos e professores. – Isso é o quê? pergunta a repórter a uma menina que aparentava ter 15 anos. – É a nossa escola, mas não dão aulas faz muito tempo – respondeu, correndo, sem sequer dar tempo para nova pergunta e dizer o nome. Ali, literalmente, não há desenvolvimento…”. A falta de “desenvolvimento” é o resultado do preconceito que as elites angolanas têm em relação ao “povo”, os não-cidadãos que têm o azar de continuam a não ter a sorte de serem contemplados com os benefícios mínimos da independência.

Novo Jornal, 20/1/24


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