Saudades do João Lourenço dos primeiros tempos

Desistiu de ser o protagonista de uma transição para uma Angola melhor para ser apenas um sucessor de José Eduardo dos Santos.

Fernando Pacheco

As reacções ao discurso do Presidente da República sobre o Estado da Nação revelam em certa medida as confusões existentes em Angola entre as funções de Titular do Poder Executivo e de Presidente da República. Se ao primeiro, na circunstância, era permitido um balanço da actividade do Governo, já ao segundo era exigido algo mais, uma análise do estado da arte que permitisse aos cidadãos perceber o resultado ou o efeito da actividade governativa e de outras incidências na sua vida. Sendo justo, por exemplo, ressaltar a mitigação dos efeitos da pandemia em comparação com o sucedido noutros países e a solução de muitos imbróglios económico-financeiros e sociais que vinham de trás, seria, como foi, inaceitável não chamar a atenção para os gravíssimos problemas que afectam a Nação na sua globalidade e não dar uma ideia sobre como encará-los. Entre eles a fome, a pobreza, o desemprego, os males que perduram na educação, o desprezo pela malária e por outras doenças dos pobres, a anemia do crescimento económico depois de anos de recessão e só possível pela ajuda recebida do preço do petróleo, o baixíssimo nível de investimentos na economia não-petrolífera, a saída crescente de jovens para o exterior em busca de emprego ou de condições de vida e de trabalho mais aliciantes, a procura de assistência médica no estrangeiro, a debilidade institucional, o funcionamento da justiça, a violência doméstica, o abuso sexual de crianças, a prostituição infanto-juvenil, a vandalização dos bens públicos, a fragilidade da prestação de serviços ao público, a escandalosa situação de milhões de angolanos sem bilhete de identidade, entre muitos outros que ficam por citar.

Estamos todos recordados da onda de optimismo que varreu o país nos primeiros tempos da presidência de João Lourenço. Um conhecido empresário chegou a dizer que estava a sentir o mesmo entusiasmo que o 25 de Abril lhe havia provocado, na perspectiva da independência. Apoiei os primeiros actos de governação com entusiasmo e aqui escrevi bastante sobre isso, pois corrigir o que estava mal, e muito estava, era bastante desafiante e estimulante. A partir de certa altura, porém, começaram o que chamei, aqui também, os regressos indesejáveis, que representavam, afinal, a recuperação do pior que tinha o partido no poder: o domínio exacerbado do aparelho de Estado e da sociedade, o sectarismo, a arrogância e a hostilização da oposição e da sociedade civil não subserviente. E João Lourenço desistiu de ser o protagonista de uma transição para uma Angola melhor para ser apenas um sucessor de José Eduardo dos Santos.

A deriva a que se assistiu ganhou contornos políticos mais expressivos com o inexplicável adiamento da institucionalização das autarquias e consequentes eleições, depois de longos anos de promessas, pelo menos desde 2014 para ser simpático, de que estavam a ser criadas as condições para tal. Não que eu creia que elas possam, por si sós, resolver todos os problemas dos cidadãos, como por vezes se tenta, erradamente, fazer crer, mas porque elas terão outras valias, como, por exemplo, permitir uma certa partilha do poder – que tanto parece amedrontar o MPLA – e a ampliação do exercício de poder, e o consequente ganho de experiência, por parte de um leque mais alargado de cidadãos. 

Um novo paradigma exige a realização urgente de eleições autárquicas, não sendo de aceitar mais subterfúgios, como se pretende uma vez mais com a criação de uma comissão que ninguém percebe para que servirá, para além do insistente, pecaminoso – mas já previsível com o resultado das eleições gerais –, adiamento.

Foi esse conjunto de fenómenos que ditou a penalização do MPLA nas urnas e principalmente em Luanda, o que constituiu uma surpresa para a sua liderança, mas não para quem estava atento e ia assinalando a evolução dos acontecimentos. Conjunto de fenómenos que conformam o Estado da Nação real e deveria preocupar o Presidente da República levando-o a enunciar a sua perspectiva para a correcção de males antigos que no seu primeiro mandato não encontraram solução.

É certo que o Presidente falou de um novo paradigma para o crescimento e desenvolvimento, mas nada no discurso permite vislumbrar que visão estratégica pode dar origem a tal paradigma que vá além da aposta nas infra-estruturas assentes no betão. Se é verdade que estas são fundamentais para darem suporte físico ao desenvolvimento, falar delas sem o indispensável complemento do investimento nas instituições que possam conceber aquelas e zelar pelo seu bom funcionamento, e para que elas conduzam tal desenvolvimento, é transmitir a ideia de que não haverá mudança alguma de paradigma.

A 18 de Fevereiro do corrente ano escrevi nesta coluna “Num aspecto vale a pena ter em conta a abordagem de Daron Acemoglu e James A. Robinson no seu laureado livro “Porque falham as Nações”. As elites dominantes do País, que exercem o poder há longo tempo, recriaram instituições políticas e económicas do passado que geram instituições extractivistas, isto é, que visam extrair os rendimentos e a riqueza de segmentos da sociedade, para benefício de outros. São essas instituições que reproduzem a desigualdade e a pobreza e a exclusão crescentes em Angola. São instituições deste tipo que explicam o crescimento das ideologias populistas e radicais da extrema-direita no mundo democrático e são bem vistas por muitos dos youpies que estão a dominar o Estado angolano.” Um novo paradigma que não tenha isto em conta será sempre um velho paradigma.

Um novo paradigma terá de estar alinhado com a participação dos cidadãos e consequentemente com a democracia, entendida pela satisfação equilibrada dos direitos cívicos e políticos, por um lado, e os direitos económicos, sociais e culturais, por outro. Na experiência socialista ensaiada em Angola entre 1975 e 1992 não foi valorizada a participação cidadã nem a democracia, não se permitiu a emergência e a actividade da sociedade civil nem se criaram autarquias locais – e isso foi uma das razões do insucesso. Estou hoje convencido de que mais importante do que o poder popular como foi tentado, era o controlo popular, isto é pelos cidadãos, do poder. Por outro lado, a experiência da maior parte dos países africanos permite pensar que a corrupção e a apropriação dos bens públicos pela classe política têm sido possíveis pela ausência de controlo da actividade governativa pela imprensa, pela sociedade civil, pelos cidadãos. E sem esse controlo o desenvolvimento será um sonho permanentemente adiado.

Um novo paradigma exige a realização urgente de eleições autárquicas, não sendo de aceitar mais subterfúgios, como se pretende uma vez mais com a criação de uma comissão que ninguém percebe para que servirá, para além do insistente, pecaminoso – mas já previsível com o resultado das eleições gerais –, adiamento.

Um novo paradigma terá de afastar no curto prazo a ideia de construção de “dubais” nos diversos sectores e, tendo em conta as fragilidades institucionais e humanas em termos de capacidades e competências, apostar em actividades económicas pouco exigentes nessas matérias, como a agricultura extensiva e a indústria transformadora ligeira, procurando assegurar o tripé da sustentabilidade: socialmente justo, economicamente equilibrado e ambientalmente duradouro. 

Novo Jornal, 21/10/22

One Comment
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