RIR PARA NÃO CHORAR (2)

 A LEI DA SOBREVIVÊNCIA 

Você pode sobreviver, mas sobrevivência não é vida.

Osho

Guru indiano

Em Angola não existe emprego, nem bem nem mal pago. O bem pago, está reservado a poucos e a muitos portadores de “sangue azul”. Para o resto, só trabalho de candonga, de servente-cachico, de esquema. O roubo costuma ser a solução, porém o crime não compensa, sabe-se. Como fazer, se o comércio, a indústria e a agricultura não evoluíram como era desejado?

JACQUES ARLINDO DOS SANTOS

A saga continua. Nesta semana, no dia 24, partiu para sempre a famosa Tina Turner. A cantora norte-americana era a diva do rock, uma lenda mundial da música e referência a seguir. O mundo sentiu essa perda. Falou-se dela nesses termos.

Para a variante desta semana do tópico “Rir para não chorar”, escolhi um tema particular. Trata-se da lei da sobrevivência. Onde cabe a luta há muito travada pelo povo angolano, uma batalha que perdura até agora. É normal que ao falar-se do povo, se aborde a sua massa mais vulnerável, a classe mais numerosa e a mais desgraçada. Por esse facto, a prosa de hoje vai andar, salvo o exagero compreensível, por vielas tortuosas da miséria humana. Percorrerá essas vias com um sorriso. O sorriso que traz nos lábios quem a escreve, o mesmo sorriso amargo que se conhece em muitos de nós, igual àquele que se mostra alegremente quando não se quer chorar.

Estamos inseridos num mundo que conhecemos perfeitamente, e cada vez melhor ainda. Onde a ameaça da perda das liberdades fundamentais do cidadão está aí e a sua aplicação parece cada vez mais iminente. De todo, é um mundo cão. Fazemos parte duma sociedade onde impera sem dó nem piedade a lei do mais forte. Aqui, nos nossos lados, vivemos sem paralelos que definam a vida do pobre. Encontramos, sim, campo ideal para se aplicar com êxito a teoria de Charles Darwin. A que ilustra como a luta pela sobrevivência começa. Em Angola, ela desponta no primeiro momento em que se inicia a vida das pessoas. 

Assim sendo, será necessário criarem-se cenários específicos para se falar sobre a sobrevivência das nossas populações? Estamos fartos de saber como ela é difícil e, destarte, dispensam-se estudos para a sua leitura. A resposta para a questão é simples. Está retratada nas inúmeras situações que nos afligem dia atrás de dia, e que, só podem acontecer numa sociedade distante da democracia. Longe da única via que conhecemos, capaz de proporcionar felicidade real ao povo. Efectivamente, só se vê o que vemos, num regime totalitário e insensível como o que vigora em Angola. Onde vivem milhares de cidadãos que passam os dias sorrindo para o mundo, vivendo em permanente pranto interior, com os seus dramas escondidos. Arrastando-se diariamente, cantando e rindo para não chorar, travando lutas incríveis para buscar o básico alimento, o pão nosso de cada dia. Nas sanzalas mais recônditas como nas capitais de províncias, escasseia um elemento fulcral da cadeia que constrói a dignidade da pessoa. O trabalho remunerado. 

Em Angola não existe emprego, nem bem nem mal pago. O bem pago, está reservado a poucos e a muitos portadores de “sangue azul”. Para o resto, só trabalho de candonga, de servente-cachico, de esquema. O roubo costuma ser a solução, porém o crime não compensa, sabe-se. Como fazer, se o comércio, a indústria e a agricultura não evoluíram como era desejado? Só um certo funcionalismo público dá emprego, fica-se com a sensação disso. Na educação e na saúde sentem-se as carências que conhecemos. Um quadro difícil de entender, quando se anunciam projectos megalómanos, de muitos milhares de milhões de dólares. Serventia para o povo miserável? Nada no horizonte, nicles, bola, zero! Só dá vontade de rir, já nem vale a pena chorar. Há desconforto na governança quando o povo se manifesta. Caramba, quanto cinismo!

Virão dias melhores, suspira-se. A perspectiva da implantação de mais quatrocentos e tantos municípios no país será um “vê se te avias” em matéria de empregos. Mais funcionalismo público pela certa. Vai ou não vai? Com essa medida, a vida vai certamente melhorar. Não dá mesmo vontade de rir?

Entretanto, para que o povão servil sorria e não chore, o Governo criou o Projecto Kwenda destinado a ajudar cidadãos carentes, a viverem muito abaixo dos níveis de pobreza admissíveis (cerca de oitocentas mil pessoas, essencialmente rurais, já beneficiam dele). Dizem que o Projecto funciona bem. Se sim, parabéns a quem o dirige! Espero que haja orçamento para o manter por muito mais tempo. Porém, é legítimo perguntar-se se os menos de 12 mil kwanzas mensais que lhes tocam resolvem problemas? Para a malta miserável do mato até é capaz de ser uma dádiva. Vai ficar muito grata e dirá muito obrigado, uns trocados de favor nunca fizeram mal a ninguém. São estes fenómenos sufocantes que me fazem rir. Quando o que me apetece é soltar o pranto que trago amarrado na garganta. 

Entretanto e sem choro, como explicar o caso dos cidadãos que ficam anos sem exercer a sua profissão e depois de ter beneficiado durante anos de um conjunto de boas regalias são reformados com a categoria de ministro, governador, deputado, director ou administrador, recebendo, em consequência, uma óptima pensão, de muitos zeros à frente dos 12 mil kwanzas da mensalidade dos camponeses famintos? Nesse entretanto, outros que deram o “cabedal” fazendo tudo pela Nação, assumindo cargos de responsabilidade no início da construção do país nas suas áreas de actividade, contentam-se na velhice com pensões miseráveis, na ordem de 500 mil kwanzas. Com a moeda nacional em queda descontrolada, como se pode hoje, viver decentemente com esse dinheiro? Perguntam os antigos quadros. Se pensarmos na mesada dos rurais, ficamos sem palavras. Mas ganhamos noções firmes acerca das gritantes diferenças existentes entre os angolanos. Há-os de vária qualidade. Existem os de primeira, os intocáveis, e os de quinta ou sexta categoria, a ralé. Gaita! Foi isso o que se combinou e o que se prometeu? Face a tanta falta de decência, obrigo-me a rir, fazendo enorme esforço para não chorar. Conduzo então o pensamento para outras situações.

É neste país que enfrenta a maior crise alimentar do mundo e lidera esse ranking por quatro anos seguidos; é nesta sociedade onde se vê gente a arrotar pescado, bifes e marisco regados com whisky e champanhe, mas onde também é possível aos membros do governo e do partido poderoso criarem fortunas, sem que alguém peça esclarecimentos acerca de como conseguiram amealhar tanto; é nesta comunidade onde tudo isto acontece, numa sociedade bárbara, onde se ri da miséria do povo, numa comunidade desestruturada e sem controlo, que se desenvolve a sociedade angolana da actualidade. 

Mas, será que cabe apenas ao governo a culpa das coisas que acontecem e deste momento incrível que se vive? Os partidos da oposição e os próprios cidadãos, a tão citada “sociedade civil”, não são culpados de nada? Com as bocas fechadas e as opiniões a divergirem a cada passo e a fazer meditar sobre o “onde penso ter razão hoje, posso não ter amanhã”, chega-se a ponto de se pensar que somos levados a crítica inconsequente e sem sentido. Assim, não espanta que se pergunte se ainda é permitido falar, se é legítimo falar-se destas coisas. 

Encontro algum espaço entre as lágrimas que escondo e os sorrisos que lanço a quem me olha, para enviar recados ao meu íntimo. Temos sido vítimas da irresponsabilidade de muitas chefias de várias gerações. Desde o tempo dos sobas de antigamente, quando a aguardente era mercadoria importante no negócio dos escravos, até aos governantes de hoje, desavergonhadamente preocupados com os seus interesses mercantis e a darem forma estranha ao modo como influenciam a vida das populações. Vão caminhando impunemente, enricando e limitando a nossa cidadania. Paralelamente vão descurando a previdência social das classes mais desfavorecidas da nossa população.

Basta por hoje. Despeço-me respeitosamente dos meus estimados leitores. Um forte kandandu para todos. Espero-vos no domingo próximo, à hora do matabicho.

Lisboa, 28 de Maio de 2023

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