CONVERSA NA MULEMBA
O mais chocante é a indiferença para com a pobreza e o menosprezo dos pobres, na linha da indiferença para com os descaminhos da cidadania.

A 16 e 17 de Junho, teve lugar, em Luanda, uma conferência para lançamento do livro Angola Pós Santos. Uma Antologia sobre Continuidade e Mudança, resultado de um programa de investigação independente sobre a situação económica, social e política de Angola. Levado a cabo por cerca de 30 investigadores angolanos e noruegueses, ligados a universidades e institutos de investigação dos dois países, este projecto teve ainda a colaboração de um pequeno grupo de académicos internacionais com vasta experiência de trabalho sobre o nosso país. O livro é uma antologia de 17 textos através dos quais grande parte de Angola é analisada pelo espelho retrovisor, com foco no período que se seguiu à saída de José Eduardo dos Santos do poder. A sua edição foi financiada, tal como a maior parte dos estudos, pela Embaixada do Reino da Noruega em Angola. Correspondendo a um momento de debate livre e entusiástico de inegável valia, esta conferência foi marcada pela ausência de académicos, políticos e jornalistas que não só poderiam ter ajudado a enriquecer a discussão como, seguramente, muito teriam ganhado com o conhecimento adquirido.
No ambiente pairaram sempre as promessas de mudança de João Lourenço, em 2017, e as esperanças que elas despertaram. Desde a intenção expressa de vir a ser o reformador da economia ao estilo de Deng Xiao Ping, à assunção de uma sociedade mais aberta e pluralista, com particular incidência na sociedade civil e na comunicação social, passando pelo combate à corrupção, tudo promessas que tantos elogios mereceram. Pairou, também, em jeito de conclusão, a convicção de que as promessas não foram cumpridas na generalidade, tendo havido recuos acentuados na implementação de políticas inicialmente consideradas audazes, enquanto os grandes problemas do País permanecem sem solução. Ainda que no epílogo do livro seja dito que se deixa aos leitores a liberdade de ajuizarem se João Lourenço teria sido bem-intencionado no propósito de mudanças ou se apenas enganou o público com a ilusão dessas mesmas mudanças, as evidências apontam para um “eduardismo” sem José Eduardo dos Santos. Lembrando o que o escritor italiano Giuseppe di Lampedusa (1896-1957), fez saber no seu romance O Leopardo, sobre a decadência da aristocracia siciliana, durante o Renascimento, a única mudança permitida é a sugerida pela personagem príncipe de Falconeri: “tudo deve mudar para que tudo fique na mesma”.
Como escrevi no Novo Jornal de 15/9/23, perante os problemas que afligem o País, João Lourenço, em vez de fechar a torneira da água que inunda a sala, tem-se limitado, teimosamente, a limpá-la, não fazendo o que deveria ser feito: fechar a torneira. Como não o faz, pouco adiantam as limpezas da sala, frequentemente expressas com a mudança de figurantes, com a cooptação de actores políticos e sociais e com a propaganda.
Na verdade, para além de factos e números espelhados ao longo dos artigos do livro em questão, há evidências fartas, suportadas por fontes oficiais, do Executivo e do FMI e do Banco Mundial. O caso da pobreza é um bom exemplo. O número de angolanos em pobreza extrema aumentou quase 3,5 milhões, entre 2018 e final de 2023, atingindo 13,2 milhões (Expansão de 25/10/24). É verdade que, em oito anos, a excessiva dependência do sector petrolífero, a redução do preço do petróleo e o fraco desempenho da agricultura, da pecuária, das pescas e da indústria transformadora, que se vão desenvolvendo de forma positiva, mas a um ritmo lento, determinaram uma queda de 36% do PIB por habitante que passou de 4.629 USD (2017) para 2.961 USD em 2024. A fortíssima redução das receitas deveria obrigar João Lourenço a tomar medidas eficazes de redução da despesa. Exceptuando algumas medidas tímidas decorrentes da Covid, o que se assistiu foi ao aumento da despesa e da dívida pública. Foi a construção de hospitais onerosos, sem garantias de condições de funcionamento, e de outras obras do mesmo tipo, mas também foi a insignificante redução do aparelho administrativo e a inaceitável manutenção do corpo de funcionários e de pessoal de segurança individual e de protocolo absolutamente injustificada. Foi o escândalo do despesismo com as viagens presidenciais, quer ao estrangeiro, quer ao interior do País. Foi tudo isto, mas o mais chocante é a indiferença para com a pobreza e o menosprezo dos pobres, na linha da indiferença para com os descaminhos da cidadania.
E, no final do livro e dos debates, a inevitável pergunta: para onde vai Angola? O panorama pode não ser totalmente pessimista, mas o bom senso não permite agitar a bandeira do optimismo que tem, ao longo dos anos, sido o grande responsável pela ausência de reformas sérias e pela manutenção de métodos e práticas impeditivos da melhoria da eficácia e da eficiência das instituições. A manutenção do sistema tal como se apresenta significa a manutenção de uma ideologia errática e intencionalmente indefinida, associada à espoliação das riquezas minerais e de todas as outras e à captação das divisas pelas elites dirigentes, o que explica a obsessão pelo betão e pelo despesismo e a preocupação última com a manutenção do poder a todo o custo. Uma ideologia que se assume capitalista, mas que não pode ser considerada neoliberal. Talvez com uma espécie de capitalismo, não de Estado, mas com o Estado, seguindo o modelo “soviético” no que ele tinha de pior, a idolatria em relação à liderança e ao que é grande e mais vistoso, sem preocupação, não só com a disponibilidade e boa gestão dos recursos, mas também com a participação dos cidadãos em geral e dos actores económicos em particular.
No complexo e imprevisível mundo de hoje, o mesmo podendo ser dito em relação a Angola, manda o bom senso que se devam procurar, através de um diálogo estruturado e argumentado com apelo à ciência e às evidências empíricas, soluções com o maior pragmatismo possível. Foi dito na conferência uma verdade que se apresenta como uma bomba ao retardador: desde que existimos como país, insistimos em não dar seguimento a qualquer “projecto” iniciado. A Estratégia de Longo Prazo 2050, que já começa a ser esburacada, indica que para que o actual PIB por habitante não baixe, ou seja, para que não fiquemos mais pobres, o actual PIB tem de crescer quase três vezes. Como conseguir isso? Oito anos de mandato de João Lourenço não são os 38 de José Eduardo dos Santos, é certo, mas as tendências, os métodos, as expectativas são as mesmas ou estão num nível mais baixo. Isto significa que o MPLA já mostrou à evidência que “desconseguiu”. Mas também é verdade que sem ele ou contra ele não haverá condições de melhorar a governação e o funcionamento das instituições. Então, porque não tentar um pacto, um contrato social, que permita extirpar os males do sistema, que até estão razoavelmente identificados? E esta solução será desde logo facilitada se a base do pacto for o cumprimento e o respeito da Constituição de 2010, até que se consiga uma outra melhor.
Os actuais sistemas políticos, em África, pecam por não estarem enraizados na realidade social e cultural da maioria da população. Estes factos, aliados à pobreza e falta de perspectiva para atender aos problemas da população, têm permitido a emergência detentações autocráticas e ditatoriais, com o argumento, já antigo, de que os africanos não estão preparados para a democracia. O que defendo é que se deve alimentar um debate sobre a necessidade de se africanizar a democracia e o Estado na sua diversidade de poderes e de contrapoderes. Isso não é impossível e pode permitir que os direitos humanos cívicos e políticos, por um lado, e os económicos, sociais e culturais, por outro, estejam em equilíbrio e possam ser enriquecidos com traços como os mecanismos de solidariedade e outros e efectivamente respeitados.
*Novo Jornal, 20 de Junho de 2025